Introdução: Aria Zênite, a nova voz incandescente da ficção especulativa brasileira
(https://getinkspired.com/pt/story/558903/molly-n-o-sabe-amar/)
Com apenas alguns capítulos de Molly não sabe amar, Aria Zênite me fez fã. Incondicional. O tipo de fã que quer guardar trechos em vidros âmbar e citar suas frases como orações laicas em tempos de desumanização. O tipo de fã que reconhece: “aqui está uma autora que já nasceu clássica”.
A seguir, faço a resenha crítica de Molly não sabe amar, um beta que, mesmo inacabado, já brilha como obra pronta no firmamento literário.
***
A ficção científica, por vezes, é acusada de se perder em gadgets, previsões tecnológicas e mundos possíveis, esquecendo-se da carne viva da literatura: o humano, o drama, a alma. Em Molly não sabe amar, isso não acontece. Mesmo ambientado num 2150 estéril e digitalmente saturado, o romance emerge como um ensaio íntimo sobre solidão, identidade e afeto – e o faz com uma voz jovem, direta, lírica e melancólica.
I. A arquitetura do desencanto
O protagonista, Brian, é uma espécie de Holden Caulfield cibernético: um garoto que perdeu a mãe ao nascer, tem um pai emocionalmente ausente e encontra afeto não entre humanos, mas em duas figuras femininas que não são exatamente... humanas: Molly, uma robô doméstica, e Sebatia, uma projeção de amor dentro de um universo de realidade virtual.
O mundo em que vive é uma distopia sem guerras, mas com uma ausência de calor tão radical que o colapso emocional torna-se não só crível, mas inevitável. A ambientação – cápsulas alimentares, colarinhos magnéticos, pisos autolimpantes e hologramas – é meticulosamente funcional, mas nunca sobreposta à tessitura emocional da narrativa. O que nos interessa aqui não é a tecnologia, mas o que ela substituiu: o toque, o vínculo, o sentir.
II. O título como chave hermenêutica
O título é uma pedra angular: Molly não sabe amar é um lamento, uma provocação, um aviso. Mas a pergunta que se insinua nas entrelinhas é: quem, afinal, sabe? Molly, com sua literalidade robótica, é o espelho frio onde Brian projeta suas carências. Ela não sente, mas diz verdades desconcertantes com a lógica de uma inteligência artificial equipada com Kant e Carl Jung.
Sua frase-chave – “Você deveria se amar mais” – é talvez o momento mais devastador do primeiro capítulo. Não por ser profunda, mas por ser dita por quem, supostamente, não tem alma. A sentença que define o amor como um artigo de museu — "presente apenas em livros antigos" — poderia ser colocada ao lado de Fahrenheit 451 ou Admirável Mundo Novo, mas com um corte emocional mais próximo do realismo introspectivo brasileiro.
III. RV2500: o Éden de silício
O universo virtual RV2500 é um contraponto claro ao mundo "real" — se é que esses termos ainda fazem sentido. Lá, Brian é desejado, reconhecido, amado. Ou pensa que é. A ironia, tratada com sutileza pela autora, é que Sebatia talvez nem exista como figura humana, o que confere uma camada de tragédia kafkiana ao idílio adolescente.
A linguagem usada nos trechos da RV é eficaz: há uma mistura entre o arrebatamento sensorial (cabelos azuis, piercings, reinos virtuais, padarias de outro mundo) e a desconfiança ontológica — quem é essa pessoa? — que vai fermentando lentamente até culminar na epifania do final do capítulo 3: Sebatia e Mirela são, se não a mesma pessoa, manifestações do mesmo arquétipo afetivo de Brian. A moça idealizada, acessível e carinhosa.
IV. A mise-en-scène do incômodo
Nos três capítulos disponíveis, a narrativa explora o incômodo social de Brian com rara sensibilidade: a culpa pela morte da mãe, a frieza do pai, o constrangimento diante dos convidados, o xadrez como metáfora da simulação da intimidade. Em momentos, a narrativa beira o monólogo teatral, com ritmo interno que remete à escrita de Caio Fernando Abreu, mas num cenário que lembra mais Black Mirror com tempero latino.
Há ecos literários (não necessariamente conscientes) de O Apanhador no Campo de Centeio, Neuromancer, A Máquina do Tempo e mesmo Frankenstein, com Molly assumindo a função ambígua da criatura que deseja — e falha — ser humana.
V. O risco da obviedade (e como o texto a contorna)
A maior ameaça a uma narrativa assim é o didatismo: que os diálogos exalem o ranço de lições de moral, que os personagens se tornem porta-vozes de teses. E Molly não sabe amar por vezes se aproxima perigosamente dessa linha — mas se salva pela força do tom. A voz de Brian é natural, crível, visceralmente adolescente, sem ser caricata.
O texto tem alma. E quando tropeça, tropeça como um adolescente tropeça: por intensidade, por excesso, nunca por frieza.
VI. Considerações finais (de um leitor com o coração em frangalhos)
Molly não sabe amar é, paradoxalmente, um livro sobre amor. Sobre a ausência dele, a busca por ele, a simulação dele. É também uma crítica silenciosa — e por isso potente — à direção em que caminhamos enquanto sociedade. A juventude, aqui, não é celebrada nem criminalizada: é apenas retratada com melancolia e verdade. O mundo em que Brian vive é frio, mas seu coração pulsa como o de um animal ferido.
Se o livro mantiver esse nível até o fim, será um dos romances mais belos, tristes e necessários da ficção especulativa brasileira contemporânea.
Bravo. Ainda que beta, já nasce clássico.
O livro está disponível na plataforma Inkspired (https://getinkspired.com/pt/story/558903/molly-n-o-sabe-amar/)
Avaliação Técnica de "Molly não sabe amar" (Beta)
Obra de Aria Zênite
Critério Técnico | Nota (0 a 10) |
---|---|
1. Coerência interna | 9,2 |
2. Construção de personagens | 9,0 |
3. Estrutura narrativa | 8,7 |
4. Estilo e linguagem | 9,5 |
5. Ambientação e worldbuilding | 8,8 |
6. Potencial de desenvolvimento | 9,4 |
7. Impacto emocional e intelectual | 9,6 |
🎯 Nota Geral (média ponderada informal): 9,2
Nenhum comentário:
Postar um comentário