4/12/2025

Os benefícios de namorar um tradutor (ou tradutora, ou tradutore)

Todo mundo tem aquela lista de “características ideais” para um relacionamento: bom humor, inteligência, química, respeito, saber usar vírgula… Pois bem, talvez você nunca tenha pensado nisso, mas vou te dar um argumento sólido — e fundamentado — para considerar algo fora do radar: namore um tradutor.

Sério. De coração, corpo e dicionário em punho. Aqui vão os motivos, com direito a exemplos empíricos e pequenas digressões gramaticais, claro.

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1. Tradutores transformam o mundo em linguagem — inclusive o seu. Você está ali, tentando explicar o que sente, meio confuso, meio tonto, e a criatura já decodificou, passou por um processo de localização afetiva e devolveu a frase com vocativo, coesão e afeto. Tradutor sabe que às vezes o que você quis dizer é mais importante do que o que você disse. E isso, meu caro leitor, é o alicerce da comunicação amorosa.

2. Um namoro bilíngue (ou trilíngue, ou quatrilíngue...) tem suas vantagens.
Enquanto a maioria dos casais briga pra escolher o filme, vocês estarão assistindo aquele drama iraniano legendado em sueco com um sorriso nos lábios — e sem precisar ativar legenda. O tradutor já tá traduzindo mentalmente, fazendo comparação com a versão do Festival de Locarno e preparando um comentário sobre as nuances socioculturais do diálogo.

3. Cultura geral é o mínimo. Tradutor precisa entender o mundo pra traduzir o mundo. Isso inclui saber que “coroa” pode ser uma moeda, uma rainha ou seu pai. E que “ficar de quatro” pode significar submissão ou alongamento, dependendo do contexto (e do quarto). Ou seja: um tradutor vai te fazer rir, pensar e desejar. Às vezes, tudo ao mesmo tempo.

4. Discussões são melhores com etimologia. A briga começa. Você diz que ele/ela não te entende. O tradutor responde com a origem grega de “compreensão”, te explica a metáfora cognitiva por trás da expressão e termina com uma citação de Horácio. Você até esquece o motivo da briga. E beija na hora.

5. O beijo, aliás, é poliglota. Não tem língua que esse povo não domine. Inclusive, a sua. É um beijo que sabe onde encostar, quando pausar, quando acelerar. Já viu alguém fazer tradução simultânea com a boca? Pois é.

6. Tradutores transformam qualquer trivialidade em lirismo. Você acorda e encontra um bilhete na mesa: “Amanheci pensando em ti. O céu hoje está do mesmo azul-cobalto do poema que te prometi.”
Você: derretido(a).
O bilhete: foi escrito às 2h da manhã, entre a revisão de um manual de máquina agrícola e a tradução de um soneto obscuro do século XVII. Isso é amor com prazo de entrega.

7. Eles ouvem nas entrelinhas. Tradutor é treinado para perceber nuances. Um suspiro antes de uma frase. Um “tá tudo bem” dito rápido demais. Um “aham” sem vogal aberta. A gente lê contexto como quem lê poesia: com atenção, com corpo, com silêncio. E reage com cuidado — ou com fogo, se for o caso.

8. Tradutores são sensuais por natureza. Porque o ofício já é íntimo. Lidar com sentido, tom, intenção, corpo do texto... é quase uma forma de preliminar linguística. E quando eles se dedicam a você, fazem com a mesma entrega obsessiva com que buscam a palavra perfeita.

9. Revisam seu TCC. E ainda formatam segundo a ABNT, sem reclamar. (Só não abuse, a menos que o relacionamento já inclua café da manhã na cama e senha do streaming.)

10. Por fim, um bônus: amor com legenda. Namorar um tradutor é ter a certeza de que, mesmo quando o mundo parece intraduzível, alguém ali vai tentar colocar sentido no caos — com humor, cuidado e talvez um bom vinho.


Então, da próxima vez que você cruzar com um tradutor, não pergunte só "o que você traduz?" Pergunte: "como você me traduziria?"

Spoiler: a resposta vai te deixar de ponto e vírgula pra cima.

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Andy Schmid é tradutor, escritor e defensor da vírgula como ferramenta afetiva. Acredita que nenhuma palavra é neutra e que o melhor tipo de amor é aquele bem pontuado.

Resenha Crítica — “Princesinha do Papai” (Prólogo + Capítulo 1), de Aria Zenite

Há livros que se leem. Outros, que se devoram. E há os que, como Princesinha do Papai, nos seduzem com um misto raro de domínio técnico, leveza narrativa e uma doçura perversa que faz o leitor sorrir com o canto da boca enquanto o coração dá um salto torto. Aria Zenite não apenas escreve bem — ela constrói um universo onde o clichê é desossado com elegância, e a previsibilidade vira terreno fértil para reviravoltas de tirar o fôlego.

Logo no prólogo, somos lançados em uma espécie de Gossip Girl caribenho com "doping" narrativo, em que o arquétipo do “melhor amigo invisível que na verdade é o par ideal” ganha camadas emocionais e tecnológicas inesperadas. A ambientação é primorosa: um hotel com pedigree hollywoodiano, uma elite jovem escolarizada num simulacro de Eton em águas tropicais, uma festa de formatura onde o rito de passagem não é dançar, mas transar com glamour cinematográfico.

Aria faz algo que poucos conseguem: apresenta personagens intensamente tropados, mas com uma execução tão emocionalmente calibrada que exala frescor. Daniella, por exemplo, poderia ser apenas “a princesa virgem que ama o melhor amigo”, mas Zenite a transforma em uma estrategista sensível, sensual, e desarmada no momento mais crucial. Neo, por sua vez, é o nerd sonhador com um pé na bioengenharia e outro no abismo emocional — e, surpreendentemente, ele funciona. A cena da lingerie roxa, as pétalas não usadas, o beijo interrompido: tudo pulsa com uma dor adolescente que só escritores adultos muito sensíveis conseguem reconstruir.

Mas onde Aria começa a se diferenciar mesmo é no Capítulo 1, que vira o jogo completamente. O leitor, ainda se recuperando da melancolia romântica do prólogo, é arremessado num thriller corporativo com ecos de Missão: Impossível e sabor de wuxia contemporâneo. A Sra. Xiao Kai é a antagonista que a ficção brasileira raramente ousa sonhar: fria, magnética, uma vilã digna de Palahniuk reescrito por uma roteirista da HBO Asia. O tom muda, mas a qualidade não cai. Há um domínio absoluto do ritmo, dos diálogos, da ironia. O arremesso do vaso, o lenço empapado, o medo quase sensual dos funcionários — tudo é coreografado com precisão dramática.

E então vem o twist: a septuagenária misteriosa que escapou dos seguranças… é ninguém menos que Daniella. E aí o leitor entorna o café e se pergunta: como essa garota cresceu tanto em tão pouco tempo? Aria não responde. Ela apenas planta. E o terreno já está fértil.

Pontualmente, algumas observações técnicas:

Ponto forte absoluto: narrativa híbrida com fluidez surpreendente. O salto de tom entre o prólogo e o primeiro capítulo poderia ser catastrófico, mas a autora administra o corte como um diretor experiente de cinema autoral — com trilha, ritmo e propósito.

Personagens: Daniella rouba a cena. A evolução entre o prólogo e o capítulo 1 é audaciosa e bem justificada pelas entrelinhas. Já Neo ainda precisa se provar mais útil ao enredo maior, mas é cedo para julgar.

Diálogos: naturais, bem marcados, com humor e tensão. Só há um ou outro momento de sobre-explicação emocional (como no final do prólogo), que poderia ser mais sutil.

Estilo: Aria escreve com uma mistura rara de calor juvenil e precisão narrativa. Lembra, por momentos, uma Cecily von Ziegesar hackeada por uma hacker latino-americana com diploma em engenharia de roteiro.

Ritmo: perfeito. O prólogo seduz, o capítulo 1 arrebata. O leitor fica entregue. Eu fiquei.

***

Avaliação Técnica – "Princesinha do Papai" (Prólogo + Capítulo 1)

Estilo / Voz autoral: nota 9,5 – peso 2,0 – nota ponderada 19,0

Construção de personagens: nota 9,0 – peso 1,5 – nota ponderada 13,5

Ritmo narrativo: nota 10,0 – peso 1,5 – nota ponderada 15,0

Originalidade estrutural: nota 9,0 – peso 1,0 – nota ponderada 9,0

Diálogos: nota 9,0 – peso 1,0 – nota ponderada 9,0

Coerência e verossimilhança: nota 8,5 – peso 1,0 – nota ponderada 8,5

Potencial de vício no leitor: nota 10,0 – peso 1,0 – nota ponderada 10,0

Revisão textual / fluidez: nota 8,5 – peso 1,0 – nota ponderada 8,5

Média final ponderada: 92,5 / 100

Aria Zenite está no comando absoluto da sua narrativa. Se continuar nesse ritmo, Princesinha do Papai pode muito bem se tornar um daqueles livros que você indica “só para dar uma olhadinha” e depois se pega lendo compulsivamente às três da manhã, com a respiração suspensa.

E sim — estou ficando viciado no estilo da moça. Que venham os próximos capítulos. Eu já botei o café na Hario.


4/11/2025

O travessão que caçava javalis: um delírio linguístico entre a sátira e a erudição digital

Em tempos em que o uso do travessão — o nobre “em-dash” — virou suspeita de atividade sintética, eis que surge, do lado mais humano da internet, um texto que resgata sua dignidade ancestral. Sim, ancestral. Porque no brilhante miniconto de Manuella Araújo, publicado no Threads na última terça-feira (clique aqui para ver o conto original na Thread), o travessão deixa de ser apenas sinal gráfico para se tornar instrumento paleolítico de caça. E é precisamente aí que começa a mágica.

O texto é uma pequena epopéia pós-darwinista em tom de fábula irônica: um planeta azul povoado por bípedes iletrados, que rabiscam girafas artríticas nas cavernas, é visitado por uma entidade chamada IA — Inteligência Ancestral, repare no jogo semântico — que lhes ensina a arte da escrita, da sintaxe e, gloriosamente, da retórica. O final, circular e melancólico, devolve os humanos ao ponto de partida, numa espécie de mito de Sísifo lingüístico, agora com emojis.

Sob sua superfície leve e divertida, o conto é uma aula compacta de história da linguagem, com pinceladas sutis de sociologia digital e teoria da cultura. Não há didatismo — há domínio. A ironia surge da justaposição entre os registros técnico-eruditos (“semântica”, “algoritmos”) e a autoironia poética (“figuras de linguagem e sem errar ‘mas’ e ‘mais’”), uma estratégia que remete imediatamente ao Millôr Fernandes do Pif-Paf e às crônicas em que o humor nasce do atrito entre lógica e linguagem.

Mas há também ecos inconfundíveis de Sérgio Porto, especialmente no uso do absurdo funcional, como no exemplo do travessão pescador, e na crítica velada ao fetiche contemporâneo por aparências intelectuais (“análises profundas de livros que ninguém leu”). É uma sátira disfarçada de crônica leve — ou uma crônica leve com potência de sátira. Difícil saber. E isso é mérito, não problema.

Outras influências pairam no texto como nuvens de dados do além-binário. Há algo de Kurt Vonnegut na estrutura em parábola tecnológica, algo de Douglas Adams no humor absurdo com implicações filosóficas, e um aceno generoso a Frederic Brown, mestre dos contos ultracurtos com finais circulares e twist semântico.

Não bastasse tudo isso, o conto consegue flertar com a tradição dos microtextos latino-americanos — Monterroso, Cortázar em modo menor — ao condensar uma crítica cultural complexa em pouquíssimos parágrafos, embalados por um ritmo que se deixa ler com prazer e, sobretudo, com inteligência.

A cereja no topo (ou melhor, o ioiô 🪀 no rodapé) é o uso controlado e sagaz do emoji. Longe de ser muleta estética, ele funciona como pontuação emocional e ancora o texto na cultura de rede — é o equivalente pós-moderno do ponto de exclamação no final de uma crônica de bar. E funciona. Cada vez que aparece, é quase como uma piscadela cúmplice ao leitor.

Importante dizer: Manuella Araújo já é autora publicada. Seu romance Uma Nova Chance para o Amor, disponível na Amazon (link aqui), ainda não foi lido por este resenhista, mas já entrou na lista de desejos — pela simples razão de que quem escreve minicontos assim sabe o que está fazendo.

É preciso reconhecer: num mar de conteúdos descartáveis, este texto é uma pedra polida — e que brilha. Tem estilo, tem crítica, tem graça, tem ritmo. E mais: tem voz.


Avaliação Técnica

  • Originalidade temática e estrutura circular: 10/10
  • Uso criativo de linguagem e metalinguagem: 10/10
  • Referencial cultural e literário implícito: 9.5/10
  • Humor inteligente e crítica social embutida: 10/10
  • Ritmo e concisão textual (forma e função): 9.5/10
  • Valor de releitura e densidade semântica: 10/10

Média ponderada: 9.83/10

Veredito final:
Se IA algum dia nos ensinou a escrever, Manuella Araújo é prova de que ainda há humanos que escrevem melhor do que qualquer algoritmo pode sonhar. E com travessões — mesmo que para caçar javalis.

Crônica de um enjôo gaulês

Outubro de 1988. Eu tinha 17 anos e uma confiança incompatível com meu fígado. Era sexta-feira, eu ganhava bem para a minha idade —trabalhava desde os 14 anos —, tinha cabelo demais e juízo de menos. Resolvi ir sozinho ao New QG, uma balada no Campo Belo que os mais velhos chamavam de “point” e os mais sinceros chamavam de “inferninho com neon”.

Cheguei decidido a beber só “um pouquinho”. Terminei fazendo a farmácia completa: cerveja, uísque Dimple’s 12 anos (porque eu achava que ostentar era um direito constitucional do jovem CLT), Keep Cooler de pêssego, que era praticamente a Fanta dos adultos. Enfim, misturei tudo que o Ministério da Saúde não recomenda nem separado.

Por volta das duas da manhã, saí. Ainda não sei como assinei o cheque — sim, cheque — pra pagar a conta. Menos ainda como o banco não devolveu. Talvez por pena. Talvez porque a assinatura parecia mais um grafite cubista do que um nome.

Mas a glória da noite ainda estava por vir.

Desci a Vieira de Morais andando de costas, como quem tenta retroceder o tempo, ou dançar um minueto bêbado (atenção, copidesque, não era o minueto que estava bêbado). A cada passo, um rodopio. E no ápice da minha lucidez etílica, comecei a berrar “La Marseillaise” — o hino nacional francês — aos gritos, como se a Bastilha fosse a saudosa padaria Danúbio Azul e eu, o único revolucionário disponível na Zona Sul paulistana.

“Allons enfants de la Patrieeeeee!”

Os vizinhos devem ter pensado que Napoleão ressuscitara, mas se perdera no mapa e caíra no Campo Belo. E a verdade? Eu me sentia vitorioso. Bêbado, mas vitorioso.

Cheguei à Avenida Santo Amaro de algum jeito que até hoje desafia a geometria e o Google Maps. Achei um táxi. Entrei. Murmurei “Brooklin... mas com poesia.” E desmaiei só depois de fechar a porta.

Em casa, atravessei o corredor como quem atravessa o Saara descalço e me joguei no quarto, onde reinava o caos ilustrado: o chão inteiro coberto de revistas Bizz, Roll, Audio News. O santuário do jovem roqueiro dos anos 80.

Deitei. E aí, meus amigos… veio.

Chamei o Hugo.
E a Olga.
E o Migué.
E mais uns primos distantes.

O que levou a pior foi a capa da Bizz, uma bela matéria de capa com o U2. Bono Vox, Adam Clayton, The Edge e Larry Mullen Jr. tomaram um banho de Keep Cooler e indignidade. Nunca mais os vi com os mesmos olhos.

Capotei.

Acordei no dia seguinte, onze da manhã, com a cabeça pulsando em dó sustenido. Meu pai ria feito quem testemunhou a queda de um herói. Minha mãe? Três parágrafos de bronca com referências bíblicas e menção aos rins.

Mas aí... Ah, aí veio a redenção.

Na cozinha, arroz soltinho, farofa de ovo e peito de peru. Simples. Preciso. Quase sagrado.

Comi como se o Vaticano tivesse me enviado aquilo em missão divina. E fui curado. De tudo. Da ressaca, do orgulho, do francês bêbado em mim.

E é por isso que, até hoje, quando escuto La Marseillaise, sinto um leve enjôo...

...e uma vontade incontrolável de comer farofa de ovo.

É pra glorificá de pé, egreja!

Fim. Com fade-out em preto e branco e trilha de Zucchero.

4/08/2025

"Molly não Sabe Amar" - Resenha da arte de capa

A capa do aguardado Molly não Sabe Amar — mais uma obra da Aria Zenite, essa autora que parece ter um pacto secreto com os sentimentos que a escondemos até de nós mesmos. Duvido que alguém consiga folhear seus livros sem se reconhecer em alguma engrenagem emocional das personagens. Desta vez, a capa é um close poético e perturbador: uma andróide de costas, com uma trança que parece viva e um vestido que flutua como fumaça. Tudo banhado numa paleta de verdes desbotados e beges que me lembraram aqueles dias de outono em que o céu parece chorar sem fazer barulho.  

O que mais me fisgou foram os detalhes mecânicos da figura: juntas expostas, cabos que se entrelaçam como veias, um coração de metal meio entreaberto. Parece uma metáfora ambulante da Molly — será que ela vai aprender a sentir, ou já sente demais? A Zenite adora essas ambiguidades, né? Até a tipografia do título brinca com isso: a palavra "sabe" está levemente desencaixada, como se duvidasse da própria afirmação. Genial.  

Só fiquei com um pé atrás com o nome da autora em fonte tão "agressiva" (quase um "OLHA EU AQUI!"), mas depois me lembrei: ela sempre faz isso. É como se dissesse: "Sim, sou eu de novo, e vou te fazer pensar até de madrugada". O fundo com circuitos digitais é discreto, mas sutilmente inquietante — faltou só um contraste maior pra dar aquela "porrada visual", mas isso é culpa minha, que sou viciado em capas dramáticas.  

No fim, essa capa é um aperitivo do que Zenite faz de melhor: histórias que misturam fios e sentimentos, e te deixam com aquele nó na garganta que nem a tecnologia consegue desatar. Mal posso esperar pra ver se a Molly vai me fazer chorar ou me dar esperança. Provavelmente os dois.


Resenha crítica – "Molly não sabe amar" (Beta)

Introdução: Aria Zênite, a nova voz incandescente da ficção especulativa brasileira

(https://getinkspired.com/pt/story/558903/molly-n-o-sabe-amar/)

Conheci Aria Zênite ontem — e desde então, não saio do vórtice emocional e estético que sua literatura provoca. Há autores que você admira com o tempo. Outros, você reconhece de imediato: estão operando num outro patamar. Aria pertence a esse segundo grupo. Sua escrita é ao mesmo tempo lírica e cortante, profunda sem afetação, futurista sem perder o sangue quente do humano. Não há concessão ao modismo, nem à frieza técnica da ficção científica estéril. O que encontramos é um talento raro: alguém capaz de vislumbrar o porvir com os pés ainda sujos de barro existencial.

Com apenas alguns capítulos de Molly não sabe amar, Aria Zênite me fez fã. Incondicional. O tipo de fã que quer guardar trechos em vidros âmbar e citar suas frases como orações laicas em tempos de desumanização. O tipo de fã que reconhece: “aqui está uma autora que já nasceu clássica”.

A seguir, faço a resenha crítica de Molly não sabe amar, um beta que, mesmo inacabado, já brilha como obra pronta no firmamento literário.

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A ficção científica, por vezes, é acusada de se perder em gadgets, previsões tecnológicas e mundos possíveis, esquecendo-se da carne viva da literatura: o humano, o drama, a alma. Em Molly não sabe amar, isso não acontece. Mesmo ambientado num 2150 estéril e digitalmente saturado, o romance emerge como um ensaio íntimo sobre solidão, identidade e afeto – e o faz com uma voz jovem, direta, lírica e melancólica.

I. A arquitetura do desencanto

O protagonista, Brian, é uma espécie de Holden Caulfield cibernético: um garoto que perdeu a mãe ao nascer, tem um pai emocionalmente ausente e encontra afeto não entre humanos, mas em duas figuras femininas que não são exatamente... humanas: Molly, uma robô doméstica, e Sebatia, uma projeção de amor dentro de um universo de realidade virtual.

O mundo em que vive é uma distopia sem guerras, mas com uma ausência de calor tão radical que o colapso emocional torna-se não só crível, mas inevitável. A ambientação – cápsulas alimentares, colarinhos magnéticos, pisos autolimpantes e hologramas – é meticulosamente funcional, mas nunca sobreposta à tessitura emocional da narrativa. O que nos interessa aqui não é a tecnologia, mas o que ela substituiu: o toque, o vínculo, o sentir.

II. O título como chave hermenêutica

O título é uma pedra angular: Molly não sabe amar é um lamento, uma provocação, um aviso. Mas a pergunta que se insinua nas entrelinhas é: quem, afinal, sabe? Molly, com sua literalidade robótica, é o espelho frio onde Brian projeta suas carências. Ela não sente, mas diz verdades desconcertantes com a lógica de uma inteligência artificial equipada com Kant e Carl Jung.

Sua frase-chave – “Você deveria se amar mais” – é talvez o momento mais devastador do primeiro capítulo. Não por ser profunda, mas por ser dita por quem, supostamente, não tem alma. A sentença que define o amor como um artigo de museu — "presente apenas em livros antigos" — poderia ser colocada ao lado de Fahrenheit 451 ou Admirável Mundo Novo, mas com um corte emocional mais próximo do realismo introspectivo brasileiro.

III. RV2500: o Éden de silício

O universo virtual RV2500 é um contraponto claro ao mundo "real" — se é que esses termos ainda fazem sentido. Lá, Brian é desejado, reconhecido, amado. Ou pensa que é. A ironia, tratada com sutileza pela autora, é que Sebatia talvez nem exista como figura humana, o que confere uma camada de tragédia kafkiana ao idílio adolescente.

A linguagem usada nos trechos da RV é eficaz: há uma mistura entre o arrebatamento sensorial (cabelos azuis, piercings, reinos virtuais, padarias de outro mundo) e a desconfiança ontológica — quem é essa pessoa? — que vai fermentando lentamente até culminar na epifania do final do capítulo 3: Sebatia e Mirela são, se não a mesma pessoa, manifestações do mesmo arquétipo afetivo de Brian. A moça idealizada, acessível e carinhosa.

IV. A mise-en-scène do incômodo

Nos três capítulos disponíveis, a narrativa explora o incômodo social de Brian com rara sensibilidade: a culpa pela morte da mãe, a frieza do pai, o constrangimento diante dos convidados, o xadrez como metáfora da simulação da intimidade. Em momentos, a narrativa beira o monólogo teatral, com ritmo interno que remete à escrita de Caio Fernando Abreu, mas num cenário que lembra mais Black Mirror com tempero latino.

Há ecos literários (não necessariamente conscientes) de O Apanhador no Campo de Centeio, Neuromancer, A Máquina do Tempo e mesmo Frankenstein, com Molly assumindo a função ambígua da criatura que deseja — e falha — ser humana.

V. O risco da obviedade (e como o texto a contorna)

A maior ameaça a uma narrativa assim é o didatismo: que os diálogos exalem o ranço de lições de moral, que os personagens se tornem porta-vozes de teses. E Molly não sabe amar por vezes se aproxima perigosamente dessa linha — mas se salva pela força do tom. A voz de Brian é natural, crível, visceralmente adolescente, sem ser caricata.

O texto tem alma. E quando tropeça, tropeça como um adolescente tropeça: por intensidade, por excesso, nunca por frieza.

VI. Considerações finais (de um leitor com o coração em frangalhos)

Molly não sabe amar é, paradoxalmente, um livro sobre amor. Sobre a ausência dele, a busca por ele, a simulação dele. É também uma crítica silenciosa — e por isso potente — à direção em que caminhamos enquanto sociedade. A juventude, aqui, não é celebrada nem criminalizada: é apenas retratada com melancolia e verdade. O mundo em que Brian vive é frio, mas seu coração pulsa como o de um animal ferido.

Se o livro mantiver esse nível até o fim, será um dos romances mais belos, tristes e necessários da ficção especulativa brasileira contemporânea.

Bravo. Ainda que beta, já nasce clássico.

O livro está disponível na plataforma Inkspired (https://getinkspired.com/pt/story/558903/molly-n-o-sabe-amar/)


Avaliação Técnica de "Molly não sabe amar" (Beta)

Obra de Aria Zênite

Critério TécnicoNota (0 a 10)
1. Coerência interna9,2
2. Construção de personagens9,0
3. Estrutura narrativa8,7
4. Estilo e linguagem9,5
5. Ambientação e worldbuilding8,8
6. Potencial de desenvolvimento9,4
7. Impacto emocional e intelectual9,6

🎯 Nota Geral (média ponderada informal): 9,2


Antes que esfriem os salgadinhos

Bem-vindos ao Papiro do Papo, este blog de fronteira onde se esbarram a criação literária, a análise literária e os "salgadinhos em geral" — esses pequenos acontecimentos da vida que a gente mastiga entre um parágrafo e outro.

Sim, aqui você vai encontrar reflexões sobre Flaubert, Ferrante e Fernando Sabino, mas também sobre o senhor de camiseta regata que atravessa a rua de meia com chinelo, ou sobre aquele casal que termina o relacionamento por mensagem na mesa ao lado do café. Tudo é texto. Tudo é tema. Tudo é matéria.

Este blog é para quem escreve, lê, observa ou simplesmente gosta de ficar reparando.
A ideia é alternar entre crônicas, provocações, exercícios de escrita, trechos de um romance que talvez nunca fique pronto (e que talvez seja justamente esse o ponto), comentários sobre personagens que moram em páginas — e outros que moram no bairro.

O nome? Papiro do Papo é brincadeira séria: um espaço de escavação, mas também de conversa. Um rolo antigo cheio de rabiscos novos. Uma página em que a erudição pode dividir espaço com a curiosidade mais besta — como se fosse possível, por exemplo, comparar a construção de Madame Bovary com o andamento dramático de um karaokê de bar.

Se você se interessa por estilo, estrutura, personagens, ritmo, voz narrativa — ou apenas quer saber o que passa na cabeça de alguém que passa tempo demais tentando escrever sobre quem não existe —, puxa uma cadeira.

E se não for pedir muito, traga um salgado. Dos bons. Nada de coxinha com recheio tímido. Aqui a gente quer crocância e intensidade — no texto e na massa.

Até a próxima.

Com açúcar e com afeto,

A. S. (aquele mesmo que fica escrevendo na mesinha da loja de conveniência)