5/27/2025

🎻 Instrução Prática (de Natália Paz) — Quando o erotismo se escreve em clave de sol


Um conto que pulsa entre o desejo e a contenção, a música e o corpo, com prosa refinada e tensão narrativa digna dos grandes mestres.

Poucos textos contemporâneos conseguem, com tanta elegância e densidade sensorial, conjugar erotismo e literatura sem escorregar em clichês ou vulgaridades. Instrução Prática, conto de Natália Paz, não apenas entra nesse seleto grupo — ele o eleva.

Desde os primeiros parágrafos, a ambientação se impõe como elemento narrativo por si só. O estúdio de música não é cenário: é pele, nervo, verniz, respiração contida. A autora constrói um espaço vivo, impregnado de memória, som e tensão, onde o desejo não é gritado, mas ressoado — como um grave de violoncelo que vibra por dentro da pele do leitor.

A metáfora entre ensino musical e sedução não é inédita — mas aqui, é reinventada com uma sofisticação que beira o literariamente sinestésico. A linguagem é refinada, cheia de pausas milimetricamente calculadas, frases que prendem o fôlego e silêncios que dizem mais que muitas palavras. A autora domina o tempo narrativo como quem rege uma partitura de câmara: alternando passagens lentas, sensuais, com crescendos que ameaçam romper o compasso da contenção.

Vicente, o ex-solista marcado pela perda física, e Sofia, a prodígio orgulhosa recém-chegada de Viena, formam um dueto emocionalmente denso. A relação deles é feita de gestos contidos, silêncios carregados e toques que, ao mesmo tempo, ensinam e imploram. A tensão entre mestre e aluna, que poderia facilmente escorregar para o óbvio, aqui é executada com camadas de ambigüidade e reciprocidade que revelam personagens humanos, falhos, sensíveis — e, sobretudo, cúmplices em sua busca pelo indizível.

Há uma ousadia estilística especialmente marcante no final do conto: a quebra metalinguística, que devolve ao leitor seu próprio corpo como parte da narrativa. É um risco — e um acerto. O texto se fecha num gesto circular que queima devagar na tela e na pele de quem lê.

Se há uma “chatice” possível, é talvez o excesso ocasional de lirismo em duas ou três imagens — mas mesmo esses momentos se justificam dentro da atmosfera febril que o texto constrói.


🌟 Avaliação Técnica:

  • Enredo e História: ★★★★★
    A história cativa desde a primeira frase e sustenta a tensão até o fim. Bem ritmada, com ótimo equilíbrio entre o sensual e o narrativo.

  • Qualidade e Estilo: ★★★★★
    Linguagem sofisticada, criativa, precisa. Raras vezes o erotismo foi narrado com tamanha contenção e potência.

  • Desenvolvimento de Personagem: ★★★★☆
    Vicente e Sofia têm ótima densidade emocional, embora talvez coubesse um leve aprofundamento maior em Vicente.

  • Originalidade e Potencial: ★★★★★
    A fusão entre música, desejo e linguagem funciona de forma original, com grande potencial para conquistar leitores exigentes.

  • Impressão Geral: ★★★★★
    O conto provoca arrepios e mantém a temperatura da leitura alta até o fim. Um dos melhores textos eróticos literários nacionais recentes.


Leia com fôlego — e com cuidado. Mas leia. Porque certos textos merecem vibrar dentro da gente como cordas bem afinadas.

Véspera (de Natália Paz) – A anatomia de um império em combustão lenta

(Link para o conto: https://getinkspired.com/story/575044/v-spera)

Há contos que se lêem com prazer. Outros, com adrenalina. Véspera, de Natália Paz, exige ser lido com o corpo todo: pupilas dilatadas, respiração suspensa, mãos tensas na borda da cadeira ou da poltrona. É uma narrativa que sangra e arde — não só pela temática, mas pelo modo como sua autora domina o ritmo, o espaço e, sobretudo, o silêncio entre os tiros.

A história começa no meio de um colapso: Gregório chega baleado, Lorena o costura com linha de pesca embebida em vodca, e a pergunta que paira — “de onde veio o tiro?” — não é apenas literal. É também moral, afetiva, política. O que se segue é uma sinfonia de tensão, sexo, memória e traição costurada com frases afiadas e diálogos que ressoam como disparos.

Lorena: a anti-heroína definitiva

A protagonista é o grande trunfo do conto. Quando Lorena diz, entre sangue e luxúria, “Ou dominamos o mundo ou ele engole a gente”, não está apenas definindo seu pacto com Gregório — está estabelecendo a lógica do próprio texto. Ela não é boazinha, não busca redenção. É astuta, letal, magnética. E o melhor: a autora nunca nos pede que simpatizemos com ela. Lorena nos conquista pela inteligência, pela sensualidade instrumentalizada e pela brutalidade lúcida de quem já não separa sobrevivência de poder.

Um dos momentos mais impactantes é quando, diante do corpo do amante traidor, Lorena murmura “Você sempre foi um teimoso de merda”, deixando cair o revólver. A frase, aparentemente banal, carrega em si um oceano de mágoa contida e amor diluído em ódio. É esse tipo de detalhe — de escrita e atuação emocional — que eleva o texto.

Prosa cinematográfica, estrutura precisa

Natália Paz demonstra domínio técnico notável. Sua prosa é sensual sem ser gratuita, violenta sem ser vulgar. Ela escreve como quem filma com palavras: cada cena é visual, ritmada, intensamente física. As transições entre o presente e os flashbacks são fluídas, nunca artificiais — e sempre funcionais à construção dramática. Não há enfeite: tudo serve à tensão.

Há ecos de Quentin Tarantino, especialmente na violência estilizada e nos diálogos carregados de tensão sexual. Mas Véspera não é pastiche. É releitura autoral com sotaque latino e sangue quente. Uma espécie de Amores Perros com a pulsação de Cidade de Deus, mas com uma mulher no centro da guerra — e no controle do jogo.

O que poderia ser ajustado

Como toda crítica que se preze, vale uma pequena nota de ressalva: o conto talvez seja tão ambicioso em sua carga dramática que quase transborda o espaço do formato curto. São muitos elementos — PF, helicóptero, plano de fuga, dossiês, sexo tático, incêndio, duplo twist — e há momentos em que o leitor quase precisa parar para reorganizar as peças. Nada grave, mas um ajuste fino aqui e ali deixaria a curva dramática ainda mais precisa.

Além disso, certas metáforas simbólicas (a costura, por exemplo) são belíssimas na primeira aparição, mas poderiam ser um pouco mais econômicas ao retornarem — efeito de revisão mais do que de concepção.

Conclusão: um conto que queima bem depois da última linha

Véspera é um conto que não pede licença. Abre a porta com o pé, atira antes de perguntar e deixa fumaça no ar muito tempo depois da leitura. Lorena já nasce clássica. Gregório é trágico sem perder a dignidade. E Rui... bem, Rui é o canalha necessário para manter a roda girando.

O conto poderia ser um episódio impecável de uma série noir brasileira (fica a sugestão para produtores atentos). Mas, enquanto isso, é literatura viva, vibrante e com uma protagonista que parece ter sido desenhada com lâmina em vez de teclas.


Avaliação

Enredo e História: ★★★★☆

(Narrativa eletrizante, mas um pouco saturada de eventos para o espaço de um conto)

Qualidade e Estilo: ★★★★★
(Prosa segura, sensorial, com domínio técnico e ritmo afiado)

Desenvolvimento de Personagem: ★★★★★
(Lorena é inesquecível; os secundários têm peso, voz e função)

Originalidade e Potencial: ★★★★☆
(A execução é brilhante; a estrutura básica do gênero é conhecida, mas revitalizada com frescor e inteligência)


Total: 4,5 estrelas de 5
Leitura indispensável para quem gosta de crime, tensão sexual e personagens que não devem nada a ninguém — muito menos ao leitor.