7/14/2025

🧠 Como é que se vive depois de trinta anos de afeto?

Ou: Manual provisório do homem recém-só e intencionalmente irrecuperável

Sou um homem que atravessou três décadas de vida afetiva sem intervalos comerciais. Um relacionamento que começou em 1996 e terminou em 2014. Outro que começou em 2012 e terminou oficialmente em 8 de julho de 2025. Sim, houve sobreposição. Não, não vou explicar.

A verdade é que, pela primeira vez desde 1993, quando Itamar Franco ainda sorria e os celulares pesavam o mesmo que uma jaca, estou absolutamente só. Não “sozinho esperando alguém”. Só. Sem preâmbulo, sem rodapé, sem intenção. E, mais importante: sem projeto de mudança.

A questão não é sentimental, nem dramática. É topológica. Eu não estou ferido, apenas estou fora do mapa.

Por isso, achei justo escrever este pequeno manual de coping para quem se vê nessa estranha e inédita posição:

🧠 Como é que se vive depois de 30 anos de afeto contínuo? (Ou, como alguns amigos mais toscos diriam: “e agora, vai fazer o quê da vida?”)


I. A solidão ritualizada (com guardanapo de pano)

O primeiro erro é tentar “preencher o vazio”. A grande virada vem quando você percebe que o vazio não está pedindo nada. Ele só quer ser respeitado. Então, em vez de combatê-lo com barulho, preencha-o com rituais privados:

  • Um vinho decantado só para você, numa terça à noite.

  • Um jantar lento, com mise en place, mesmo que seja para uma única boca (a sua).

  • Um disco inteiro, ouvido no escuro, sem distrações, como se fosse uma missa laica. (Sim, leitorada, "disco" mesmo, ainda que no Spotify, Deezer, streaming, o lo que sea. Sou declaradamente antigo).

A solidão, quando ritualizada, vira território. E território se habita, não se decora com flores artificiais denominadas "expectativa amorosa".


II. Escrever como quem faz uma autopsia (e não à espera de um milagre)

Escreva, mas não para exorcizar fantasmas. Escreva como quem anota os dados do óbito de uma fase. Escreva assim:

“Hoje, não senti falta de dividir o sofá.”
“Não precisei negociar onde almoçar no domingo.”
“Não precisei justificar meu silêncio. Aleluia.”

Transforme isso num inventário. Você vai descobrir que boa parte da “companhia” era negociação, barulho, redundância. A ausência, nesse caso, é música ambiente, um belo Muzak.


III. Abster-se não é falência — é decisão editorial

Quando eu digo que não quero me envolver, não é blefe. Não é trauma. Não é medo de me machucar. É simplesmente o reconhecimento de que meu sistema operacional não roda mais esse tipo de aplicativo.

Eu olho para a idéia de “relacionamento” com o mesmo entusiasmo de um day trader que virou monge budista e olha para as cotações da B3, Dow Jones, NASDAQ e quejandos: pode até ser útil para os outros, mas ele não se vê mais ali.

E, sinceramente, isso não é triste, e sim libertador. É como parar de tentar ser fluente num idioma que nunca fez sentido.


IV. Sexo? Talvez. Amor? Só em condições atmosféricas experimentais

Não me tornei assexuado. Mas virei um hedonista vigilante.

Nada contra aventuras, corpos, noites interessantes. Desde que tudo venha sem embalagem emocional, sem promessas de cafoço (não falo brunch nem amarrado) no domingo, e sem aquela conversa fiada do tipo “o que nós somos?”.

Somos dois mamíferos adultos dividindo calor. E isso basta.


V. Crie um figurino para sua nova fase

Você não precisa se reinventar. Mas pode se estilizar.

Crie uma estética. Uma playlist para os dias bons. Um figurino para as noites de "entrega narcisista". Um perfume que diga “sou meu próprio date”. Isso não é vaidade — é identidade pós-romântica.

Vista-se como quem foi salvo de um naufrágio e agora bebe uísque em paz no litoral.


VI. Fuja dos "bons samaritanos"

Você vai encontrar gente querendo te “salvar”.

Vão dizer: “você vai mudar de idéia”, “é só fase”, “ainda vai encontrar alguém”.

A essas pessoas, ofereça um sorriso educado e o caminho da porta. Você não está doente, nem perdido. Só está onde está e, pela primeira vez, por escolha própria.


VII. Evite responder às carícias disfarçadas de preocupação

Sempre aparece alguém com um comentário meigo e envenenado:

“Mas você tem tanto a oferecer...”
“Você diz isso agora, mas o amor acontece quando menos se espera.”
“Nossa... que pena, alguém vai perder um homão desses.”

A essas pessoas, ofereça silêncio. Ou, num dia generoso, um trecho de Cioran ou Millôr. Porque não se trata de dor, mas de soberania.


VIII. E se um dia mudar de idéia?

Pode ser. Mas será exceção, não projeto.

Se um dia algo acontecer, será como encontrar uma pérola entre livros num sebo: inesperado, bonito e absolutamente dispensável.

Até lá, sigo bem. Indisponível emocionalmente. Afetivamente. Existencialmente. E com meu colesterol em dia, o que, honestamente, já é uma vitória.


Para encerrar...

Este não é um texto de lamento nem de provocação. É pura e simples constatação: depois de três décadas de amor, apego, partilha, tentativa e tropeço, estou só. E mais do que isso: estou inteiro.

A vida continua, como sempre continuou, mas agora com menos ruído e mais espaço interno.

Se é definitivo? Não sei. Mas é o agora — e o agora, neste caso, é perfeitamente suficiente.