11/26/2025

O Neymar que “Perdeu” o que Nunca Teve


O Brasil é um país tão criativo que, se deixar, a gente inventa até verbo novo por osmose. Esta semana, por exemplo, decidi que ia acompanhar as manchetes esportivas com a calma de um monge tibetano. Não durou três segundos.

A manchete do UOL diz:


"Neymar avalia ‘sacrifício’, mas deve perder reta final do Brasileiro.”

Perder.

Reta final.

Assim, sem dó, sem massagem, sem dicionário.

O redator, iluminado pelo espírito santo do anglicismo, achou que podia traduzir to miss como "perder" em qualquer contexto — mesmo quando o português olha pra isso com o mesmo espanto de quem encontra um pato tentando latir.

Porque, vamos combinar: ninguém “perde” a reta final do campeonato. Não é carteira, não é ônibus, não é final olímpica, não é ingresso do show. Reta final não é objeto portátil. O Neymar não acordou, olhou pro calendário e disse: “Pô, cadê minha reta final? Tava aqui ontem…”.

O que a frase queria dizer, com a pureza de uma flor de plástico, era:

Neymar deve ficar fora da reta final.

Ou ainda:

deve desfalcar o time, não deve jogar, vai estar ausente.

Soluções todas muito bem comportadas, de procedência honesta e criadas sem depender do sistema financeiro lingüístico de outro país. Mas claro, o atalho do inglês brilha como sirene de polícia: to miss the final stretch. E o redator pensa: “Ah, tá fácil: perder”.

É assim que nasce o que eu chamo carinhosamente de anglicismo zumbi — aquele que anda, tropeça, invade a língua e deixa todo mundo desconfortável com seu cheiro de tradução automática. Não agrega, não melhora, não afina o texto. Só existe. Como um fantasma que arrasta correntes pela redação.

E o mais bonito é que, com isso, Neymar agora corre o risco de “perder” a reta final do Brasileiro da mesma forma que você pode “perder” uma pizza no micro-ondas: não faz sentido, mas tá escrito, então passa.

A imprensa brasileira tem essa vocação poética de transformar decalque em manchete, manchete em hábito e hábito em “novo português”. E amanhã a gente lê: “Jogador perde primeiro turno”,
“Técnico perde seqüência de jogos”,
até que um dia alguém “perde o campeonato inteiro” só porque estava no departamento médico tomando Gatorade.

No fim das contas, quem perdeu mesmo foi o português. E perdeu feio. Sem VAR. Sem recurso. Sem súmula.

Mas tudo bem: domingo tem rodada, segunda tem manchete, e terça tem mais um verbo sendo seqüestrado pelo bilingüismo apressado da nossa imprensa.

E eu estarei aqui, firme, com meu binóculo lingüístico, procurando onde foi parar a coerência — porque, pelo visto, essa sim o pessoal perdeu mesmo.

A Crise Que Virou Montanha-Russa Sem Trilho


Se tem uma coisa que me diverte — e me desespera, mas com aquele desespero gostoso de quem joga dominó num velório — é o entusiasmo da imprensa nacional em praticar arapucas linguísticas como se fossem esporte olímpico. Hoje, por exemplo, descobri que crises no Brasil agora são escaláveis. Não no sentido de ficarem maiores, veja bem, mas no sentido literal de você poder escalar a danada, como quem sobe o Pico do Jaraguá com uma garrafinha d’água e a dignidade nas mãos.

A manchete da vez do UOL diz, rufem os tambores desafinados:


“Motta e Alcolumbre escalam crise e não vão à cerimônia de sanção do IR.”

Escalam.

Crise.

É disso que eu tô falando.

Nenhuma corda, nenhum mosquetão, nenhum guia alpino. Só a boa e velha preguiça intelectual que faz o redator olhar para o inglês to escalate e pensar: “Puxa, é bonito, vou usar”. O problema é que, no português, o verbo não significa isso. No português, “escalar a crise” parece mais “tentar subir nela”, o que, convenhamos, é uma imagem excelente para a política brasileira: um bando de gente tentando se agarrar a uma parede lisa, escorregadia, e ainda batendo no peito como se fosse natural.

Mas erro é erro, mesmo quando sai no jornal — aliás, principalmente quando sai no jornal. É por isso que eu digo: o decalque é a mula-sem-cabeça do texto. Não serve pra montar, não serve pra puxar, não sabe nem pra onde vai. Só aparece pra assustar a língua e deixar rastros de ferrugem sintática.

Em vez de “escalar”, tínhamos opções honestas, de pedigree, domésticas, criadas com ração nacional e sem influência do dólar: “agravam”, “acentuam”, “ampliam”, “esticam a corda” — mas não, o redator preferiu o inglês requentado, enfiado no microondas da pressa.

E assim seguimos, tropeçando em manchetes cada vez mais bilíngües, cada vez mais semânticas de aplicativo, cada vez mais com cara de quem estudou meia página de gramática e achou que era poliglota. A língua, coitada, só observa do canto, com aquele olhar de tia velha que sabe que vai sobrar pra ela limpar a bagunça.

No fim das contas, Motta e Alcolumbre não escalaram crise nenhuma. Quem escalou — e escorregou — foi o próprio UOL. E caiu feio.

Mas tudo bem. Amanhã tem outra manchete. E outra corda bamba. E outro redator se achando alpinista sem ter aprendido a amarrar o cadarço.

Porque, no Brasil, até a crise é climbable. Ou quase.