10/22/2025

A Toca da Esfinge e o dom do olhar profundo: uma leitura dos poemas de @tocadaesfinge

Há poetas que escrevem como quem borda — ponto por ponto, com cuidado, costurando o sentimento até que ele se torne forma. Outros escrevem como quem respira — instintivamente, com ritmo natural, sem pedir licença à racionalidade. Em @tocadaesfinge (visite o perfil do Instagram), a impressão é de alguém que faz ambas as coisas ao mesmo tempo: pensa e sente com igual intensidade. Sua poesia habita um raro território intermediário entre o intuitivo e o elaborado — uma síntese que a crítica moderna, por vezes apressada, tende a subestimar.

1. A mulher-loba e a poética da intensidade



O primeiro poema, de tessitura extensa e narrativa, é quase um retrato expressionista. A autora constrói a figura da mulher indomável com uma precisão imagética notável — “uivava baixo para atrair e com potência para se fazer entender” —, frase que parece saída de um filme de Tarkóvski adaptado ao trópico. A força do texto está na alternância de registros: o épico e o doméstico, o cósmico e o cotidiano, coexistem sem atrito. Tecnicamente, o poema combina lirismo confessional e descrição realista com domínio de ritmo e cadência, ainda que de modo orgânico, quase oral.

A metáfora central — a mulher como força da natureza — é sustentada por uma coerência interna rara: cada imagem amplia o eixo da liberdade e da entrega. Há aqui ecos de Hilda Hilst, mas com uma doçura que pertence apenas à autora.


2. O tempo que dança bossa nova


No segundo poema, a poeta transita para uma estética minimalista, de tom coloquial e musicalidade leve. O tempo, esse velho tema da poesia ocidental, surge humanizado, “passa arrastado, feito unha de gato no sofá novinho” — uma imagem de surpreendente eficácia sensorial. O contraste entre o cômico e o terno é manejado com precisão.

Do ponto de vista técnico, nota-se uma estrutura cíclica: a abertura em ritmo lento (tempo arrastado), o clímax no “tempo que passa cantando bossa nova” e a resolução no convite à disposição. O poema é redondo, resolvido em forma e tom. Há nele uma sabedoria serena que lembra Drummond em A Máquina do Mundo, mas com uma voz mais íntima, quase doméstica.


3. Ser dona de si


O terceiro texto é o mais conciso, mas também o mais declarativo. “Ser livre é ser incapaz de se deixar limitar” poderia soar como aforismo de perfil de rede social — não fosse o contexto poético que o envolve. A autora escapa do clichê pela cadência e pela ironia leve (“Ri da possibilidade de me ver assim”). O poema é um exercício de voz: breve, mas contundente, sustentado por ritmo e pausas precisas.

Do ponto de vista técnico, há domínio de paralelismo e de antítese, e a fluidez entre verso livre e frase prosaica cria uma tensão produtiva. A economia verbal aqui é virtude, não limitação.


4. O ranço e o grotesco


O quarto poema rompe o lirismo dos anteriores e adentra o terreno do grotesco, com resultados notavelmente expressivos. O uso da palavra “ranço” como eixo metafórico é arriscado — e é justamente esse risco que dá força ao texto. A autora constrói uma sátira visceral, que mistura humor, repulsa e crítica social, sem perder densidade literária.

Há ecos de Arnaldo Antunes e Angélica Freitas, mas com uma voz narrativa que sabe rir de si mesma: “Viveria na corte dele, talvez seria o bobo, e ele glutão e escroto.” A ironia, nesse ponto, atinge maturidade estilística. É a poeta mostrando que sabe lidar tanto com o sublime quanto com o asqueroso — e que ambos, afinal, são matéria da vida.


Avaliação técnica

Imagética: 9/10

Uso consistente e sensorial das imagens, com fluidez entre planos simbólicos e concretos.

Musicalidade / Ritmo: 8,5/10

Cadência natural, domínio de pausas e repetições; alguns versos poderiam explorar mais o silêncio.

Originalidade de voz: 9/10

Há autenticidade, humor e densidade emocional — uma dicção própria já em amadurecimento.

Consistência temática: 9/10

Liberdade, tempo e identidade feminina aparecem como fios contínuos e coerentes.

Técnica formal: 8/10

Predomínio do verso livre bem manejado; linguagem prosaica ganha dimensão poética sem esforço.


Conclusão: a esfinge que se revela

Ler @tocadaesfinge é perceber uma autora em pleno domínio de sua sensibilidade — uma escritora que já encontrou sua voz, mas ainda a reinventa a cada texto. Sua poesia combina o gesto confessional com um refinamento técnico discreto, que não se exibe, apenas se deixa notar.

Há nas suas palavras uma espécie de “inteligência emocional estética”: ela entende o humano pela linguagem e entende a linguagem pelo humano. E talvez seja esse o maior elogio que se possa fazer a uma poeta — a capacidade de fazer o leitor sentir que a vida, ainda que fugaz, é plenamente habitável pela palavra.