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Pois bem, caríssimos, eu — este cronista cansado de tanto existir — anuncio um fato que me coloca fora desse carnaval de ternura: não tenho foto da minha infância. Nenhuma. Zero. Nenhum retratinho de bebê sorrindo em bacia de plástico, nenhuma imagem de primeira comunhão, nem aquela clássica foto de formatura do pré onde toda criança parece um pequeno corretor de imóveis. Nada. É como se minha infância tivesse acontecido fora do enquadramento. Fui, literalmente, uma criança sem registro — uma anomalia no álbum coletivo da humanidade.
E não, não é metáfora poética, não é charme de quem quer parecer misterioso. É realidade mesmo. Se hoje me der um ataque de nostalgia e eu quiser “me ver pequeno”, terei que fechar os olhos e fazer um exercício de imaginação. Imagino um garoto qualquer, com um cabelo que nunca ficou do jeito certo, talvez com um olhar de quem já sabia demais e um sorriso que tentava disfarçar o resto. É o máximo que posso fazer. Minha lembrança é meu álbum. E, como toda lembrança, às vezes mente.
“Mas por quê?”, perguntam, sempre com aquela curiosidade de quem está prestes a abrir uma gaveta errada. E aí é que está: há gavetas que não devem ser abertas. Há álbuns que, se existirem, é melhor que fiquem mofando no limbo das coisas que ninguém mais quer ver. Porque foto também é prova. E prova, às vezes, dói. Digamos apenas que a família, essa instituição tão exaltada nos comerciais de margarina, às vezes é mais parecida com uma guerra civil mal resolvida. E na minha, houve um armistício silencioso: cada um seguiu sua vida e suas memórias, e as fotos ficaram com quem ficou com o resto.
Talvez elas ainda existam, em algum lugar — um envelope esquecido no fundo de uma gaveta, num apartamento onde já não entro há anos. Talvez alguém as tenha jogado fora, sem nem olhar direito, confundindo retratos com papel velho. Não sei. E, sinceramente, já nem quero saber. Porque foto também é prisão. É o retrato de um instante em que você ainda acreditava em certas coisas — e, francamente, há crenças que é melhor deixar morrer. Quando a gente rompe com o passado, o que dói não é o que se perde, é o que se lembra demais.
Então, neste outubro de fotos infantis e corações nostálgicos, declaro que a minha versão criança é invisível — mas está viva. Está em cada escolha que faço tentando não repetir a história. Está na ironia que aprendi a cultivar, porque o riso é o disfarce mais elegante da dor. E se um dia alguém quiser saber como eu era, direi apenas: era igual a agora, só que menor e sem o sarcasmo como armadura. Cresci, e isso é mais do que muita foto pode dizer. Afinal, quem precisa de retrato quando já virou crônica?