10/18/2025

A Farofa Invisível (série "Sexo e Farofa")

O apartamento ainda cheirava a corpo.
Corpo e cebola.

Deve haver algo de profundamente brasileiro nessa mistura — o perfume da carne e o cheiro da cozinha, como se o amor, no fim, fosse apenas uma refeição que a gente esqueceu de lavar a louça depois.

Abri a janela e a cidade entrou como um cachorro molhado: ruído, ar úmido, solidão. São Paulo nunca dorme, mas às vezes cochila com um olho aberto, vigiando a miséria dos outros.

A pia tinha pratos empilhados, duas taças, um garfo solitário e o pote de farofa. Aquela farofa que sobrou de ontem — ontem que já parecia uma vida inteira. Peguei o pote. Ainda estava morno da memória.

Não sei se alguém entende o que é acordar com restos.
Restos de alguém, de vinho, de desejo.
Tudo o que sobra tem uma honestidade que o prazer nunca alcança.

Tomei um gole de café frio. A boca ainda tinha o gosto de sal e ironia. Na mesa, um pedaço de papel com a letra dele:

“Volto quando a chuva parar.”

Chove há três dias.

No começo, eu achava bonito dormir com alguém que fala pouco. Agora acho perigoso. O silêncio dos outros é uma floresta: você entra achando que é sombra, mas sai coberta de musgo.

Toquei a colher dentro do pote. A farofa estava seca, dura, com aquele brilho de gordura que se nega a morrer.

Provei.

Era boa.

Tinha o gosto das coisas que se recusam a pedir desculpa.

A luz da manhã entrava torta, cortando o chão em faixas. Havia farelos espalhados — pequenas estrelas amarelas sobre o piso preto. Pensei em varrer. Não varri.
Varrer é apagar provas, e eu ainda precisava delas.

No rádio do vizinho tocava um sertanejo antigo. Alguém cantava que “ninguém é de ferro”. Discordei em silêncio: somos todos um pouco de ferro — enferrujados, cortantes, pesados.

Peguei o celular, abri o aplicativo de mensagens e não escrevi nada. O desejo é covarde às nove da manhã.

Abri a geladeira. Metade de uma garrafa de vinho, meio limão, o pote de farofa.
Trindade de quem vive só.

Sentei no chão. A cidade fazia barulho de ônibus e perdão. E pensei que talvez o amor fosse isso: o momento em que a gente olha o próprio resto e diz “ainda serve”.

A farofa, invisível sobre os dedos, parecia ouro pobre. E eu, como sempre, estava à altura do desperdício.

***

Ele tinha o hábito de acender o cigarro antes de vestir a calça, como se o corpo precisasse de nicotina para aceitar de volta a decência. Lembro disso porque ainda há cinza na beirada da pia, e o corpo dele, agora ausente, continua poluindo o ar da cozinha.

Disse que iria comprar pão. Mas não disse qual padaria, nem se voltava. Pão é a forma educada de sumir — alimenta a esperança enquanto esfria o afeto.

Passei os dedos pelo lençol amassado. Tinha o cheiro dele e da farofa. Sim, ele abriu o pote depois, rindo, dizendo que era “comida de gente feliz”. Eu não estava, mas comi. A felicidade é contagiosa por alguns minutos; depois vira indigestão.

Enquanto ele mastigava, falava de política, de traduções, de como o mundo estava cansado de gente que sente demais. Eu fingia ouvir, mas só observava a forma como os ombros dele se moviam quando mastigava. É estranho desejar alguém e, ao mesmo tempo, saber que não vai funcionar. O corpo grita “fica”, a lucidez cochicha “não compensa”.

A cama rangeu.

A cidade tossiu um trovão.

Ele me olhou com aquela expressão de quem não promete, apenas acontece.
Houve um toque — breve, morno, familiar — e o resto do diálogo foi substituído por respiração.

Não há como descrever o instante em que duas pessoas param de pensar. É a única hora em que o tempo respeita o corpo. Depois, tudo volta a ser relógio e culpa.

Quando acabou, ele riu, meio culpado, meio vitorioso, e disse:

— Você devia vender essa farofa. É melhor que terapia.

— A terapia é mais cara — respondi. — E menos gostosa.

Ficou um silêncio que não era constrangido, mas cansado. O tipo de silêncio que você embala, porque sabe que vai acabar logo.

Ele levantou, vestiu a calça, acendeu outro cigarro. Disse “já volto” e foi comprar pão. Três dias depois, ainda não voltou.

Abri a janela — essa janela sem vista que todo apartamento tem — e o cheiro da chuva entrou com cara de piada velha.
No fundo do pote, um restinho de farofa, um punhado mínimo de sal e gordura. Peguei com a ponta dos dedos. Era a prova material de que algo aconteceu. O resto é lembrança e digestão.

***

A casa amanheceu do mesmo jeito: pia suja, cheiro de cebola, farofa pela metade. Nenhum drama, só continuidade.
Descobri que a vida não termina — ela repete.

Passei a vassoura, mas os farelos teimaram em ficar. Eles brilham, minúsculos, entre as frestas do piso, como se o pó de ontem quisesse continuar morando comigo. Pensei em Clarice, aquela mania dela de achar sentido até em casca de banana. Pensei também em Bukowski, que diria “varre logo essa merda e abre outra garrafa”.
Entre os dois, escolhi observar.

É curioso o quanto o resto das coisas se parece com o resto das pessoas. Depois que alguém vai embora, sobra um pouco de tudo: um par de meias, uma frase solta, o reflexo no espelho. E a farofa — inevitável, democrática, nacional. Todo amor acaba com farofa no prato, no chão ou no coração.

Sentei no sofá e fiquei olhando a fumaça do café, o mesmo ritual de todos os dias. O tempo é o verdadeiro amante de quem vive só: chega sem ser chamado, faz o que quer e sai pela porta deixando a conta. A solidão, percebo, é um luxo que poucos sabem usar.

Ri sozinha.

O riso veio fácil, desses que saem porque o corpo se defende. Lembrei do que ele disse sobre terapia e pensei que talvez estivesse certo. A farofa tem algo de terapêutico: não julga, não consola, mas te ocupa a boca para não dizer besteira.

A cidade lá fora ronronava o mesmo caos. Um caminhão de gás tocava a música da infância, os cachorros latiam, alguém discutia por vaga de estacionamento. Tudo normal, como se a minha tragédia fosse uma piada interna do universo.

Peguei o pote e olhei contra a luz. Os grãos dourados pareciam suspensos no ar — poeira com dignidade. Foi aí que percebi que a farofa era invisível não por falta de cor, mas por excesso de costume. Ela estava em tudo: na pia, na pele, na memória. Como o amor quando ainda não aprendeu a morrer direito.

Talvez seja isso que resta da vida: o gosto leve e salgado das coisas que não voltam. O corpo esquece, a boca lembra.
E o mundo gira, mesmo que a gente ainda esteja sentado à mesa esperando o pão que nunca vem.

***

A tarde caiu do jeito que São Paulo sabe fazer: preguiçosa, encardida, com uma luz bege que não ilumina nem escurece. O rádio falou de trânsito e política; eu mexia a farofa na frigideira sem fogo, só pra ouvir o som. É preciso barulho pra fingir presença.

O apartamento parecia suspenso, meio fora do tempo. Pensei nele — ou em todos os “eles” que já passaram. Os nomes somem, mas o corpo lembra os gestos: a mão que acende o cigarro, o riso torto depois do gozo, o silêncio que sempre vem antes da porta bater. A cada lembrança, mais farelo.

Clarice sussurra: “o que permanece é o instante.” Bukowski responde: “o instante acaba em dois tragos.” Entre um e outro, estou eu — mulher, resto e testemunha.

Olhei para o prato e percebi que a farofa estava no ponto exato entre quente e fria, viva e morta. Como o amor quando já desistiu de doer, mas ainda não aprendeu a desaparecer.

Comi devagar, não de fome — de respeito.
Há rituais que merecem cerimônia, mesmo sem altar. A cada colherada, um pensamento doméstico: o coração é uma panela de ferro, o mundo uma mesa que nunca se limpa, e a gente, o tempero que sobra.

Lá fora, um trovão ensaiou aplausos.
Pensei que talvez fosse Deus aprovando meu cardápio sentimental. Ou só o trânsito comendo pneus na Marginal.

Terminei de comer, fechei o pote e senti uma calma absurda. A vida inteira cabe no intervalo entre o último gol9e e o próximo desejo. E o desejo — descobri — é invisível só pra quem ainda olha com fome de milagre.

Apaguei a luz, deixei a janela entreaberta.
A chuva voltou, teimosa, lavando o ar.
No escuro, a cidade cheirava a comida e arrependimento. E eu, pela primeira vez, me senti completa com o que restava: um corpo, uma lembrança e um pouco de farofa fria.

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Série SEXO E FAROFA

🥄 Crônicas do prazer, do ridículo e da lucidez paulistana.

Sexo passa. Farofa fica.

10/16/2025

Sexo e Farofa

Eu sempre acreditei que o destino tivesse senso de humor, mas não imaginava que fosse do tipo sacana. Daqueles que te colocam num supermercado às 23h47 de uma terça-feira para comprar duas coisas que, juntas, denunciam imediatamente uma pessoa: camisinha e farofa.

Não era nem a farofa de marca séria, aquela com orgulho de raiz e sódio suficiente para empalhar um javali. Era farofa temperada. Com bacon artificial. O que me transformava oficialmente no tipo de homem que perdeu o rumo da própria vida — e nem percebeu.

Eu podia explicar. Juro que podia. A camisinha era óbvia — prevenção, civilidade, pacto honesto com a Organização Mundial de Não Arranjar Filhos e Doenças. Mas a farofa… ah, a farofa tinha história. Tinha promessa. Tinha saliva. Porque nada diz mais sexo real do que a fome que sobra depois. E alguém, algumas horas antes, tinha sussurrado no meu ouvido:

— Depois eu quero farofa. Daquela bem porca.

E aí, meu amigo, quando alguém fala isso no teu ouvido com a boca quente de vontade, você aceita. Você aceita qualquer coisa. Você atravessa a cidade, abandona princípios morais, trai sua lombar, esquece a dignidade no porta-luvas. Vai. Faz. Compra. Farofa. Acontece.

Foi assim que eu parei no Extra da Ricardo Jafet às 23h47, iluminado por neon cansado, cercado por gente que já tinha desistido do amanhã. Carrinhos rangendo como lamentos existenciais. O inferno tem ar-condicionado e fica aberto até meia-noite.

Aí ela apareceu.

Jeans preto. Camiseta branca. Cabelo preso num coque bagunçado que parecia de propósito. Um tipo de beleza simples, perigosa, dessas que não pedem atenção — pegam. Corpo direto ao ponto: fome, curiosidade e algo na postura que dizia eu sei entrar e sair de histórias sem me queimar.

Ela empurrava o carrinho com quatro itens essenciais da vida adulta suspeita:
— vinho barato,
— papel higiênico folha dupla,
— leite condensado,
— e um pacote de pão de forma, como quem declara ao mundo: “não tenho mais ilusões”.

Ela olhou pra mim. Depois para minha mão. Depois para o que eu carregava. E sorriu — o sorriso clínico de quem diagnostica alguém sem piedade.

— História interessante aí, hein.

— Longa demais pra contar — respondi. — Mas posso garantir que envolve moralidade duvidosa, sódio e escolhas erradas.

Ela se aproximou. De perto, tinha olhos que falavam dialetos antigos de luxúria funcional. Gente que já viveu. Gente que não perde tempo com frescura emocional.

— Histórias longas são as melhores. Dá pra resumir?

— Em três frases.

— Manda.

— Promessa carnal. Falta de planejamento. Farofa.

Ela arqueou a sobrancelha.

— Isso não são três frases. Isso é um convite.

Foi ali, entre sacos de carvão e promoção de salsicha, que percebi: o universo às vezes abre portais. Pequenos portais lubrificados.

— E você? — perguntei. — Vai levar leite condensado pra quê?

— Eu não explico nada depois das onze da noite — ela disse. — Mas posso mostrar.

Fudeu. Eu estava dentro. Não havia mais retorno possível. Desejo não tem freio ABS.

Ela se aproximou mais. Perigoso perto. Um cheiro limpo de banho recente misturado com pele quente e intenção. Falou baixo:

— Você cozinha?

— Faço o básico.

— Ótimo. Eu transo o básico. A gente combina.

Eu ri. Ela não.

E foi assim que o Extra virou prelúdio, o caixa automático virou cúmplice e a madrugada se abriu como perna impaciente.

Mais tarde, no chão da cozinha dela — azulejo frio, boca quente, mãos erradas nos lugares certos — descobri duas verdades absolutas:

1. Tesão é logística.

2. Farofa não é acompanhamento — é destino.

****

Ela mordeu meu lábio como quem assina contrato e disse no meu ouvido:

— Joga a farofa. Eu quero suja. Quero indecente. Quero desgraça.

E eu fiz. Porque há pedidos que vêm de regiões da alma onde Deus não fiscaliza.

Depois, suados, ofegantes e vivos de verdade pela primeira vez na semana, dividimos a mesma colher direto do saco. Ela, nua, mastigando farofa como pornografia antropológica, virou pra mim e disse:

— Isso não foi sexo casual. Isso foi nutrição.

Algumas pessoas acreditam no poder do amor. Outras, no destino.

Eu? Eu acredito no Extra da Ricardo Jafet.

Porque depois daquela noite aprendi: sexo passa; farofa fica.


Continua.
A vida é suja e deliciosa.

Série SEXO E FAROFA
(uma ode à carne, ao caos e à lucidez brasileira)

O Único filho da puta no Brasil que traduz do mongol (e por que aprendi essa língua)


Ontem, no Threads, eu soltei um desabafo profissional que, pelo visto, acendeu a curiosidade de muita gente.

A cena era a seguinte: um cliente me manda um calhamaço de PDF em mongol para traduzir para o inglês. 61.000 palavras. Eu, provavelmente o único ser humano entre o Oiapoque e o Chuí que mexe com esse par linguístico específico, mando o orçamento: R$ 40.000.


A resposta veio rápida: o budget era de R$ 7.000.

Como eu disse na rede:

"Boa sorte com a MTPE [Pós-Edição de Tradução Automática] nesse par de idiomas."

A máquina ainda tropeça feio na complexidade do mongol.

Foi então que a sempre perspicaz Helen Valverde (@helendvalverde) comentou, espantada:

"Do MONGOL?? 😮 Achei é barato."

E depois, dei uma resposta que virou o estopim desta crônica:

"E se eu contar por que aprendi mongol..."

Ela, curiosa:

"Quero saber! Amor??"

Pois é, Helen. A história é bem melhor que um simples romance. É uma história de amor, sim, mas com a lógica.


O tédio do poliglota e a busca pelo Everest linguístico

Imagine um cara que, aos 49 anos, já havia domesticado mais de 20 idiomas. Um brasileiro, criado na cacofonia maravilhosa do português, acostumado às estruturas previsíveis das línguas latinas e germânicas. Eu era um hiperpoliglota, mas um hiperpoliglota entediado. Meu cérebro, viciado em decifrar códigos, ansiava por um desafio que fosse radical. Não queria apenas mais palavras; queria uma nova forma de pensar.

Foi quando resolvi procurar o meu Everest linguístico. Algo que não me desse uma única muleta. Nada de cognatos, nada de estruturas familiares. Eu queria um abismo gramatical para saltar.

E no fundo desse abismo, encontrei o mongol khalkha.


A fascinação por um mecanismo de relógio suíço gramatical

Não foi um amor à primeira vista, foi amor à primeira análise sintática. O mongol é uma obra de arte lógica e sonora.

Primeiro, há a harmonia vocálica. As vogais de uma palavra precisam ser todas de uma "família" (posteriores ou anteriores). É como uma composição musical onde cada nota deve estar na mesma escala. Meu ouvido de brasileiro, treinado no samba do português, teve de reaprender a escutar.

Depois, veio o fascínio pela aglutinação. Enquanto no português usamos preposições e auxiliares, o mongol constrói uma frase como se montasse uma molécula complexa. Você pega a raiz de uma palavra e vai encaixando sufixos, um atrás do outro, cada um com uma função gramatical específica. Sujeito, objeto, posse, tempo, modo... Tudo é anexado. É um sistema tão limpo e eficiente que beira a poesia matemática.

E, claro, o alfabeto cirílico foi só a porta de entrada. A curiosidade me levou ao alfabeto tradicional vertical, a escrita clássica que flui de cima para baixo, uma coluna de símbolos elegantes que é uma arte em si mesma.


O experimento dos 50 anos: C1 em 24 meses

Aos 50 — ou beirando essa idade — o mundo gosta de nos dizer que o cérebro já perdeu a plasticidade. Que aprender coisas novas é mais lento. Eu encarei o mongol como um experimento pessoal: será que uma mente madura, mas dedicada, pode não apenas aprender, mas dominar um dos sistemas linguísticos mais desafiadores do mundo?

Tratei como um projeto de engenharia cerebral. Mergulhei de cabeça. Foram 24 meses de estudo intenso, focado e deliberado. No final desse período, eu havia alcançado o nível C1(*). Foi a conquista intelectual mais orgulhosa e satisfatória da minha vida. Era a prova que eu procurava.


E o amor? O amor está na lógica.

Então, Helen, para responder sua pergunta: não, não foi um amor romântico por uma pessoa. Foi um amor pela lógica, pelo desafio, pela arquitetura pura de um idioma.

Foi o amor pela sensação de desvendar um quebra-cabeça que a maioria das pessoas nem sabe que existe. O amor por poder ler a poesia de G. Mend-Ooyo no original, sentindo o ritmo das estepes em cada harmonia vocálica. O amor por entender uma cultura não através de filtros, mas pela lente da sua própria língua.

Aos 54 anos, o mongol não é apenas mais um idioma na minha lista. É a minha conquista definitiva. É o meu Everest.

E é por isso que, quando um calhamaço de 61 mil palavras chega na minha mesa, o orçamento é salgado. Você não está pagando apenas pela tradução. Está pagando por uma década de dedicação a um dos desafios mais insanos que um poliglota pode encarar.

E, convenhamos, é um preço justo para quem é, com orgulho, o único "filho da puta" no Brasil que faz isso.

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(*) O nível C1 é um nível avançado de competência em um idioma, de acordo com o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (CEFR). Nesse nível, o indivíduo consegue compreender uma ampla gama de textos complexos, expressar-se com fluência e espontaneidade, utilizar o idioma de forma eficaz para fins acadêmicos e profissionais e produzir textos claros, bem estruturados e detalhados sobre temas complexos.

10/14/2025

Nietzsche versus Estoicismo: a busca pela verdade e pela ordem é fútil?


O seu copo está meio cheio ou meio vazio?

Essa experiência é considerada uma maneira de diferençar os pessimistas dos otimistas. A lição é inequívoca — uma diferença fundamental de percepção pode levar a um enfoque profundamente diferente em relação à vida.

As críticas de Nietzsche aos estóicos expõem esse tipo de diferença fundamental. é um conflito de filosofias que nos permite refletir sobre como a nossa percepção do mundo forma nossa compreensão dele, e como podemos encontrar significado nele.

Existe um ponto em comum entre a filosofia de Nietzsche e a dos estóicos. Ambos acreditavam que as pessoas não tinham "livre arbítrio" — ou seja, não desempenhamos um papel ativo em nossos destinos.

Porém, Nietzsche é famosos por seus ataques sarcásticos, e o estoicismo é alvo de vários desses ataques, especialmente nos últimos escritos de Nietzsche.

A principal "pinimba" do filósofo do século XIX com os estóicos é a insistência da escola de Sêneca e Marco Aurélio em que seus seguidores deveriam "viver de acordo com a natureza". Esse é o princípio central dos estóicos, que acreditavam que o cosmo e Deus são um só e, portanto, havia uma ordem no cosmo.

Vale mencionar aqui que "natureza" não significa "o mundo natural" (árvores, animais, etc), e sim o cosmo — o todo absoluto do qual fazemos parte.

Viver em conformidade com a natureza é viver de forma racional. Isso porque os estóicos acreditavam que a capacidade distintiva da espécie humana é o pensamento racional. Nenhuma outra espécie tem essa capacidade. Eles acreditavam que a ordem do cosmo se reflete na ordem das nossas mentes.

Ser racional é alcançar a felicidade e a tranqüilidade da mente (“Eudaimonia”), porque assim a pessoa segue o fluxo do cosmo, e não caminha contra ele.

A escada de Schroeder: para que lado ela sobe?


Um Mundo Sem Sentido

Para Nietzsche, a natureza — o cosmo — é um hipercaos sem Deus. Qualquer “ordem” no mundo é apenas acidental.

As chamadas leis da natureza são apenas o comportamento arbitrário dos fenômenos, que podem muito bem mudar ao longo do tempo. Ver “leis” na natureza não é nada além de perceber padrões e acreditar que eles seguem regras. Quem cria leis e regras são as pessoas, não a natureza.

Nietzsche acreditava que os estóicos se iludiam ao pensar que, escondido nessas supostas leis da natureza, existe um caminho ideal que os seres humanos poderiam seguir. Isso seria a “virtude”, que, para os estóicos, era o mesmo que “viver de acordo com a natureza”.

Mas para um filósofo cético como Nietzsche, não existe nenhuma noção ideal de “virtude” esperando para ser descoberta pelos seres humanos. Em vez de nos conformarmos com um comportamento ideal imaginado, Nietzsche acreditava que cada pessoa devia encontrar seu próprio caminho.

Num mundo caótico e sem sentido, devemos aspirar a criar nosso próprio ideal de nós mesmos, nos nossos próprios termos. A filosofia de Nietzsche enfatiza a criatividade e a exuberância do indivíduo, ao contrário das “morais de rebanho” das filosofias sistemáticas (como o estoicismo) e das religiões.

Há duas razões pelas quais Nietzsche critica a doutrina estóica de viver de acordo com a natureza.

Em primeiro lugar, Nietzsche destaca que, se observarmos o cosmo (o que os estóicos chamam de “natureza” nesse contexto), ele é caótico e desprovido de sentido. Conjuntos inimagináveis de sóis e planetas são destruídos num piscar de olhos por explosões cósmicas; todos os dias, neste planeta, milhões de animais devoram outros animais para sobreviver. As coisas simplesmente acontecem. O cosmo é totalmente indiferente.

Para Nietzsche, não há propósito nem razão na natureza. Como os estóicos acreditavam que a natureza era um ser vivo em si, Nietzsche nos pede que imaginemos uma criatura como a natureza para ilustrar seu argumento:

Gemäss der Natur" wollt ihr leben? Oh ihr edlen Stoiker, welche Betrügerei der Worte! Denkt euch ein Wesen, wie es die Natur ist, verschwenderisch ohne Maass, gleichgültig ohne Maass, ohne Absichten und Rücksichten, ohne Erbarmen und Gerechtigkeit, fruchtbar und öde und ungewiss zugleich, denkt euch die Indifferenz selbst als Macht - wie könntet ihr gemäss dieser Indifferenz leben?

Quereis viver ‘de acordo com a natureza’? Oh, nobres estóicos, que engano verbal! Imaginai um ser como a natureza realmente é: desmedidamente pródiga, desmedidamente indiferente, sem propósito nem escrúpulos, sem compaixão nem justiça, ao mesmo tempo fecunda e estéril, incerta — imaginai a própria Indiferença como força — como poderíeis viver de acordo com tal indiferença? (Em tradução minha).

(Além do Bem e do Mal, 1:9)

Em segundo lugar, Nietzsche aponta a contradição óbvia da aspiração de viver em conformidade com a natureza: nós já somos natureza. Viver de acordo com a natureza é simplesmente… viver. É uma tautologia semelhante à expressão “viver de acordo com a vida” — bem, isso já acontece.

Und gesetzt, euer Imperativ "gemäss der Natur leben" bedeute im Grunde soviel als "gemäss dem Leben leben" - wie könntet ihr's denn nicht? Wozu ein Princip aus dem machen, was ihr selbst seid und sein müsst? (...)  ist denn der Stoiker nicht ein Stück Natur?

E supondo que o vosso imperativo ‘viver conforme a natureza’ signifique, no fundo, o mesmo que ‘viver conforme a vida’ — como poderíeis fazer diferente? Por que transformar em princípio aquilo que vocês mesmos são e têm de ser? (…) — acaso não seria o estóico também parte da natureza? (Em tradução minha).

(ibid.)

Nietzsche suspeita que o verdadeiro imperativo seja, na verdade, o oposto: em vez de a natureza dar significado e propósito ao estóico, é o estóico quem impõe um significado e propósito à natureza.

In Wahrheit steht es ganz anders: indem ihr entzückt den Kanon eures Gesetzes aus der Natur zu lesen vorgebt, wollt ihr etwas Umgekehrtes, ihr wunderlichen Schauspieler und Selbst-Betrüger! Euer Stolz will der Natur, sogar der Natur, eure Moral, euer Ideal vorschreiben und einverleiben, ihr verlangt, dass sie "der Stoa gemäss" Natur sei und möchtet alles Dasein nur nach eurem eignen Bilde dasein machen - als eine ungeheure ewige Verherrlichung und Verallgemeinerung des Stoicismus!

Na verdade, a situação é bem diferente: ao fingirdes que leis com êxtase o cânon de vossa lei na natureza, quereis na realidade o contrário, ó extravagantes atores e enganadores-de-si-mesmos! Vosso orgulho quer ditar à natureza — sim, à própria natureza — a vossa moral e o vosso ideal, quer impor-lhos e incorporá-los nela; exigis que ela seja “natureza segundo a Stoa” e desejais moldar toda a existência à imagem de vós mesmos — como uma imensa e eterna glorificação e universalização do estoicismo! (Em tradução minha)

(ibid.)

A acusação que Nietzsche faz aqui é semelhante ao que chamamos de “falácia patética”. Isso acontece quando projetamos atributos humanos em animais, objetos inanimados ou mesmo na natureza como um todo (pense, por exemplo, na “Mãe Natureza”). “Propósito” e “significado” são conceitos humanos que existem apenas em nossas mentes. Percebemos “ordem” apenas porque o universo se comporta de maneira coerente para nós.

As filosofias do mundo antigo com as quais Nietzsche mais se identificava eram o ceticismo e o cinismo. Nietzsche era o que chamaríamos de “perspectivista” — ele acreditava que nenhum ser humano tem realmente acesso à verdade objetiva.

Segundo Nietzsche, só entendemos o mundo do nosso ponto de vista particular. Em última análise, não existe verdade a ser descoberta, pois "verdade", como "propósito" e "significado", não existe fora da consciência humana.


É um pato ou um coelho? Imagem: "Kaninchen und Ente" ("coelho e pato"), da edição de 23 de outubro de 1892 do Fliegende Blätter. Detalhe.


Um delírio patológico?

Os céticos tinham uma visão semelhante. O fundador da escola, Pirro de Élis (~360 —~270 a.C.), recusava-se a “endossar” qualquer opinião sobre qualquer assunto, porque nenhuma poderia ter base firme na verdade. Para Pirro, as opiniões que temos sobre o mundo, na verdade, nos deixam infelizes (porque o mundo nunca será como desejamos).

Nietzsche, seguindo figuras como Pirro, refutou a idéia de que os seres humanos pudessem realmente ter acesso a verdades profundas. As palavras, afinal, só se referem a outras palavras. Ele escreveu sobre o estoicismo:

Mit aller eurer Liebe zur Wahrheit zwingt ihr euch so lange, so beharrlich, so hypnotisch-starr, die Natur falsch, nämlich stoisch zu sehn, bis ihr sie nicht mehr anders zu sehen vermögt, - und irgend ein abgründlicher Hochmuth giebt euch zuletzt noch die Tollhäusler-Hoffnung ein, dass, weil ihr euch selbst zu tyrannisiren versteht - Stoicismus ist Selbst-Tyrannei -, auch die Natur sich tyrannisiren lässt: ist denn der Stoiker nicht ein Stück Natur?

Com todo o vosso amor pela verdade, forçais-vos por tanto tempo, tão obstinadamente, com uma rigidez quase hipnótica, a ver a natureza de modo falso — isto é, de modo estóico — até que não mais sois capazes de vê-la de outra maneira; e, por fim, alguma soberba insondável ainda vos inspira a esperança de loucos de que, porque sabeis tiranizar a vós mesmos — o estoicismo é auto-tirania —, a natureza também se deixará tiranizar: acaso o estóico não é ele próprio parte da natureza? (Em tradução minha)

(ibid.)

Essa é uma crítica bastante feroz ao estoicismo — a ideia de que a filosofia estóica é mais um sintoma psicológico do que uma visão de mundo.

Os estóicos são retratados aqui como alucinados (loucos), com uma auto-tirania que eles ilusoriamente esperam impor ao universo. Tal esperança é vã, porque a natureza engloba tudo dentro de si, incluindo aqueles que afirmam saber como ela funciona. Suas teorias seriam, então, delírios patológicos.

Nietzsche previu a chamada “virada linguística” na filosofia do século XX. Filósofos passaram a examinar a própria linguagem como a raiz dos “problemas da filosofia”. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein acreditava que todos os problemas filosóficos eram simplesmente “quebra-cabeças de linguagem” que precisavam ser resolvidos.

Para filósofos como Nietzsche e, mais ainda, Wittgenstein, a linguagem é uma ferramenta que os seres humanos usam para alcançar objetivos. Pensar que a linguagem é capaz de descrever o mundo como ele realmente é leva a grande confusão e contradição. Quando perguntamos “o que é o mal?” ou “o que é o real?”, estamos apenas mal-entendendo e mal-usando palavras como “mal” e “real”.

Nietzsche, ainda que critique o estoicismo, acredita que ele caiu na mesma armadilha geral em que todas as filosofias acabam caindo.

Aber dies ist eine alte ewige Geschichte: was sich damals mit den Stoikern begab, begiebt sich heute noch, sobald nur eine Philosophie anfängt, an sich selbst zu glauben. Sie schafft immer die Welt nach ihrem Bilde, sie kann nicht anders; Philosophie ist dieser tyrannische Trieb selbst, der geistigste Wille zur Macht, zur "Schaffung der Welt", zur causa prima.

Mas esta é uma velha e eterna história: o que aconteceu outrora com os estóicos acontece ainda hoje, tão logo uma filosofia começa a crer em si mesma. Ela cria sempre o mundo à sua própria imagem, não pode agir de outro modo; a filosofia é esse impulso tirânico em si, a mais espiritual vontade de poder, a “criação do mundo”, a causa prima. (Em tradução minha).

(ibid.)

Essa ideia é muito semelhante à alegoria de Borges sobre o mapa e o território. Um cartógrafo deseja criar um mapa tão preciso que tenha proporção de 1:1 com o território. O mapa — a imagem do mundo — passa a ser confundido com o próprio mundo. Os filósofos, argumenta Nietzsche, começam a acreditar tanto em suas teorias que essas teorias passam a moldar sua visão da realidade.

Esse é o tipo de “loucura” coletiva que o filósofo descreve quando disse:

Der Irrsinn ist bei Einzelnen etwas Seltenes, - aber bei Gruppen, Parteien, Völkern, Zeiten die Regel.

Nos indivíduos, a insanidade é rara; mas nos grupos, nos partidos, nas nações e nas épocas, é a regra. (Em tradução minha)

(Além do Bem e do Mal, 156)


A Razão como Evidência por Si Mesma

Então como um estóico responderia a um ataque tão devastador?

Uma forma de responder seria partir de primeiros princípios. Epicteto, filósofo do século I d.C., argumenta em seus Discursos que nossa razão é uma verdade evidente por si mesma. Ele ensinou:

[1] ὕλη τοῦ καλοῦ καὶ ἀγαθοῦ τὸ ἴδιον ἡγεμονικόν, τὸ σῶμα δ᾽ ἰατροῦ καὶ ἀπἀλείπτου, ὁ ἀγρὸς γεωργοῦ ὕλη: ἔργον δὲ καλοῦ καὶ ἀγαθοῦ τὸ χρῆσθαι ταῖς φαντασίαις κατὰ φύσιν. [2] πέφυκεν δὲ πᾶσα ψυχὴ ὥσπερ τῷ ἀληθεῖ ἐπινεύειν, πρὸς τὸ ψεῦδος ἀνανεύειν, πρὸς τὸ ἄδηλον ἐπέχειν, οὕτως πρὸς μὲν τὸ ἀγαθὸν ὀρεκτικῶς κινεῖσθαι, πρὸς δὲ τὸ κακὸν ἐκκλιτικῶς, πρὸς δὲ τὸ μήτε κακὸν μήτ᾽ ἀγαθὸν οὐδετέρως. [3] ὡς γὰρ τὸ τοῦ Καίσαρος νόμισμα οὐκ ἔξεστιν ἀποδοκιμάσαι τῷ τραπεζίτῃ οὐδὲ τῷ λαχανοπώλῃ, ἀλλ᾽ ἂν δείξῃς, θέλει οὐ θέλει, προέσθαι αὐτὸν δεῖ τὸ ἀντ᾽ αὐτοῦ πωλούμενον, οὕτως ἔχει καὶ ἐπὶ τῆς ψυχῆς. [4] τὸ ἀγαθὸν φανὲν εὐθὺς ἐκίνησεν ἐφ᾽ αὑτό, τὸ κακὸν ἀφ᾽ αὑτοῦ. οὐδέποτε δ᾽ ἀγαθοῦ φαντασίαν ἐναργῆ ἀποδοκιμάσει ψυχή, οὐ μᾶλλον ἢ τὸ Καίσαρος νόμισμα. ἔνθεν ἐξήρτηται πᾶσα κίνησις καὶ ἀνθρώπου καὶ θεοῦ.

[1] A matéria (hylē) do homem belo e bom (kalos kagathos, isto é, do virtuoso) é o seu próprio hegemonikón (a faculdade dirigente da alma); já o corpo é matéria para o médico e para o massagista, e o campo é matéria para o agricultor. A obra (ergon) do homem belo e bom é fazer uso das representações (phantasiai) de acordo com a natureza. [2] Toda alma é naturalmente inclinada a dar assentimento ao verdadeiro, recusar o falso e suspender o juízo (epoché) sobre o que é incerto; assim também, ela é movida com desejo (orektikōs) em direção ao bem, com aversão para longe do mal, e, quanto ao que é nem bom nem mau, permanece neutra. [3] Pois, do mesmo modo que não é permitido ao banqueiro ou ao vendedor de legumes rejeitar a moeda do César, mas, apresentada a moeda, queira ou não queira, ele deve aceitá-la em troca do que vende, assim também acontece com a alma. [4] Uma vez que o bem se apresente, ele move a alma imediatamente em direção a si; e, da mesma forma, quando o mal se apresenta, afasta a alma de si. Jamais uma alma rejeita uma representação clara do bem, não mais do que rejeitaria a moeda do César. Daí dependem todos os movimentos tanto dos seres humanos quanto dos deuses. (Em tradução minha)

Nesse sentido, Epicteto concorda com Nietzsche ao afirmar que nada na vida é “bom” ou “mau” em si mesmo — apenas nosso pensamento torna as coisas assim. O valor de, digamos, o dinheiro, existe apenas em nossas mentes. Os estóicos também eram perspectivistas.

A natureza — ou melhor, tudo no cosmo — não tem valor intrínseco. Tudo é “indiferente” — nada significa coisa alguma até que nós lhe atribuamos significado. Esse é um aspecto central do pensamento estóico.

Apenas a razão confere significado e propósito ao mundo, e a razão é evidente por si mesma — nós a usamos a cada instante em que fazemos juízos sobre as coisas.

Provavelmente partindo desse princípio, os estóicos construíram uma teologia mais “racional” do panteísmo, que lhes permite descrever o funcionamento do mundo.

Tudo o que é matéria — todas as coisas indiferentes no mundo — é animado por uma razão divina (logos). Se encontramos significado nas coisas, então nossa faculdade racional deve refletir uma razão superior. Como meros fragmentos do universo, não podemos compreender essa razão superior, mas podemos observá-la na relativa previsibilidade de causa e efeito.

Assim, a diferença fundamental entre Nietzsche e os estóicos está em saber se o cosmos é ordenado ou caótico.

Quem acredita numa ordem última no cosmo encontra virtude e até felicidade no código-fonte da existência. Quem acredita no caos último buscará dentro de si mesmo o significado.

A advertência de Nietzsche foi que, se ficarmos entre esses dois caminhos, dogmas que impõem ordem ao mundo acabarão impondo ordem sobre nós mesmos como indivíduos.

Como o próprio Nietzsche escreveu em "Assim Falava Zaratustra (Parte I, Prefácio de Zaratustra, cap. 5):

Ich sage euch: man muss noch Chaos in sich haben, um einen tanzenden Stern gebären zu können. Ich sage euch: ihr habt noch Chaos in euch.

Eu vos digo: é preciso ainda ter caos dentro de vós para poder dar à luz uma estrela bailarina. Eu vos digo: ainda tendes caos dentro de vós. (Em tradução minha)

Nietzsche é um grande desconstrutor, um grande crítico. Suas intuições são como raios-X — penetram a superfície dos dogmas e teorias com os quais ele trava combate. Suas críticas fariam qualquer estóico refletir.

Mas a lição da crítica de Nietzsche é, em última análise, esta: a maneira como encontramos significado e propósito depende de como enxergamos o mundo. O seu copo está meio cheio, ou meio vazio?

10/13/2025

“Seja você mesmo” é um conselho idiota: como o mundo está te enganando e você nem se toca disso


Nós ouvimos esse conselho em todo lugar hoje em dia.

Na internet, em anúncios, de conhecidos, até do gato e do cachorro:

Seja você mesmo!

Ou em outras versões:


Relaxa, você é incrível do jeitinho que é!

Nossa, olha só você, tão lindo(a) e único(a)!
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Não se preocupe com esses quilinhos a mais, você tá maravilhoso(a), gato(a) — com nosso delivery especial, você nem precisa sair de casa! Come essa porcaria e mexe essa bunda!

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De repente você começou a questionar a si mesmo(a) e suas crenças? Isso te deprime? PARE COM ISSO e compre nossos remedinhos. Eles são ótimos e vão te acalmar!

Você tem comportamentos autodestrutivos e vive sabotando a própria vida? Relaxa, isso se chama ser único(a) e espontâneo(a). Assista ao nosso reality show e veja gente fazendo merda ainda maior, assim você vai se sentir melhor com você mesmo(a).


Enfim, para resumir: tudo isso aí em cima é um nível supremo de merda que você ouve o tempo todo do mundo por aí. Fazem você se sentir bem consigo mesmo só pra poder enfiar goela abaixo o lixo que querem vender. É pura manipulação.

A verdade é: ninguém liga pra você. A única pessoa que deveria ligar é você mesmo. Então, quando alguém te manda um “seja você mesmo”, essa pessoa não faz a mínima idéia do que está falando.

Deixa eu explicar.

Primeiro de tudo, a noção de um “eu” único é falsa. Todos nós temos vários eus dependendo da situação e das pessoas ao nosso redor.

Em outras palavras, nós ajustamos nosso comportamento e fingimos — até certo ponto.

“Péra aí, Andy, isso não faz sentido. Um ‘eu’ é uma identidade que não muda ao longo do tempo.”

Que fofinho isso ai... mas não é verdade. Não existe um “eu” real, é uma ilusão criada pelo seu cérebro para inventar uma “história coerente” da sua vida.

Sim, neurologicamente falando, formamos sinapses e padrões no cérebro que tendem a ser constantes e rastreáveis, mas ao mesmo tempo eles são flexíveis e podem mudar com algum esforço.

De certo modo, essa ilusão do “eu” até é boa porque, no meio do caos, precisamos de alguma coisa que nos dê uma sensação de estabilidade — e esse tal “eu” cumpre esse papel. Precisamos acreditar que temos um “eu”, e não apenas padrões de comportamento observáveis que mudam o tempo todo. Isso não seria nada calmante — pelo contrário, seria motivo de ansiedade.

Mas, para o seu próprio bem, você precisa aceitar: não existe um “eu verdadeiro” — só existem ações e decisões.

Por exemplo: você pode ser corajoso num momento e covarde no seguinte. Isso quer dizer que você é os dois? Mais ou menos, mas não exatamente. Significa que você é um ser que age — e pode agir com covardia ou coragem. Só que você nunca deveria se apegar totalmente a essa ideia de identidade, porque sua identidade é muito menos estática do que você imagina. Em vez disso, deveria se “apegar” às suas ações — ou seja, deveria pensar nas implicações morais delas sobre você (mesmo que ilusórias) e sobre os outros.

Você ainda não está convencido e insiste que quer construir um eu estável, bom e moral?

Então talvez seja interessante voltar aos gregos antigos.

Um deles, Aristóteles, argumentava que uma virtude está no meio entre dois vícios. Ele chamou isso de “justa medida”. Ser corajoso não significa fazer loucuras o tempo todo — significa agir entre a coragem extrema e a covardia.

Coragem demais te torna imprudente e irresponsável, ele dizia (estou parafraseando):

“No que diz respeito ao medo, a coragem é o meio-termo. A temeridade é o excesso e a covardia é a falta. No que diz respeito ao dinheiro, o meio é a liberalidade; o excesso é a prodigalidade e a falta é a mesquinharia. No que diz respeito à honra e desonra, a justa autoestima é o meio. Humildade excessiva é tão ruim quanto vaidade vazia.”

Então é isso: equilíbrio. Yin-yang. Alface e pizza. Funk proibidão e Beethoven. Memes da internet e livros de filosofia.

Beleza, Sr. Buda, e o que mais?

Bom, vou ampliar essas idéias e mostrar por que o conselho “SEJA VOCÊ MESMO!!!” é tão burro quanto achar que a Terra é plana — ou que The Big Bang Theory é uma série engraçada.


1. O “Eu” é uma ilusão

Essa idéia, evidentemente, não é lá muito original, já que religiões orientais como o budismo e o taoísmo pregam algo parecido há séculos. A diferença é que os argumentos que vou apresentar aqui têm fundamento na neurociência, o que torna tudo fascinante num nível muito mais alto.

Para mim, uma ilusão é uma experiência subjetiva que não é aquilo que parece. Ilusões são experiências na mente, mas não existem na natureza. São eventos gerados pelo cérebro. A maioria de nós tem a experiência de um "eu". Com certeza eu tenho, e não duvido que outros também — um indivíduo autônomo com identidade coerente e noção de livre-arbítrio. Mas essa experiência é uma ilusão — ela não existe independentemente da pessoa que a vivencia, e certamente não é aquilo que parece. Isso não quer dizer que a ilusão seja inútil. Vivenciar a ilusão do "eu" pode proporcionar vantagens funcionais concretas na forma como pensamos e agimos, mas isso não significa que ela exista enquanto entidade.

“Para a maioria de nós, a sensação de eu é a de um indivíduo integrado habitando um corpo. Acho útil distinguir as duas formas de pensar o eu de que William James falava. Há a consciência do momento presente, que ele chamou de ‘eu’ (I), mas há também um eu que reflete sobre quem somos em termos de nossa história, atividades atuais e planos futuros. James chamou esse aspecto do eu de ‘mim’ (me), que a maioria de nós reconheceria como nossa identidade pessoal — quem achamos que somos. Contudo, penso que tanto o ‘eu’ quanto o ‘mim’ são, na verdade, narrativas em constante mudança geradas pelo nosso cérebro para fornecer uma estrutura coerente que organize o resultado de todos os fatores que contribuem para nossos pensamentos e comportamentos.

Acho útil comparar a experiência do "eu" aos contornos subjetivos — ilusões como o padrão de Kanizsa, em que vemos uma forma invisível definida inteiramente pelo contexto ao redor. As pessoas entendem que é um truque mental, mas talvez não percebam que o cérebro está realmente ativando neurônios como se a forma ilusória existisse de fato. Em outras palavras, o cérebro está alucinando a experiência. Muitos estudos mostram que ilusões geram atividade cerebral como se existissem. Elas não são reais, mas o cérebro as trata como se fossem.

Essa linha de raciocínio poderia ser aplicada a toda percepção, exceto pelo fato de que nem toda percepção é ilusão. Existem formas reais no mundo e outras regularidades físicas que geram estados confiáveis nas mentes de outras pessoas. O motivo pelo qual o estado de realidade não pode ser aplicado ao "eu" é que ele não existe independentemente do meu cérebro que está tendo a experiência. Pode parecer que ele apresenta uniformidade, regularidade e estabilidade que fazem o "eu" parecer real, mas essas propriedades, por si, não o tornam real.

Idéias semelhantes sobre o "eu" podem ser encontradas no Budismo e nos escritos de Hume e Spinoza. A diferença é que agora há evidências psicológicas e fisiológicas sólidas para sustentar essas idéias.

Então é isso: o "eu" é uma ilusão; somos um bando de macacos enganados pelo próprio cérebro.

E aí, fodeu cartola? A gente desiste?

Bem, não exatamente. Há benefícios óbvios nessa ilusão; porém, devemos sempre lembrar que é uma ilusão e tratá-la com ceticismo. A ilusão do "eu" provavelmente é uma experiência insequapável de que precisamos para interagir com os outros e com o mundo e, na verdade, não podemos abandoná-la nem ignorar sua influência com facilidade; mas devemos ser céticos quanto a cada um de nós ser a entidade coerente e integrada que supomos ser.

Sabendo de tudo isso, por que o conselho SEJA VOOOOCÊÊÊÊÊÊ MEEEESMO é furado?

Aqui vai o próximo motivo.

2. Isso atrai mediocridade

A idéia de aceitar-se do jeitinho que você é tem intenção nobre. Difícil discordar. Mas, assim como dar um docinho para seu filho toda vez que ele faz uma cagada pode arruinar a vida dele lá na frente, se acalentar e repetir para si mesmo que você é incrível do jeitinho que é também pode ser prejudicial ao seu desenvolvimento.

Se eu faço merda, as pessoas podem e devem me cobrar — mas, mais importante ainda, eu deveria me cobrar. Eu preciso ser meu próprio juiz primeiro. A maneira como eu falo comigo é aquilo que eu me torno; então é melhor que eu seja sincero comigo mesmo para não virar um iludido de merda.

Sim, ÓBVIO, não é para ir ao extremo e se espancar por cada fraqueza. O ideal é se amar como um bom pai ama o próprio filho: duro quando precisa, julgando com justiça para a criança aprender o certo e o errado; e normalmente gentil, incondicionalmente.

Pessoalmente, só comecei a melhorar minha saúde mental e física quando percebi que eu não estava bem do jeito que eu era. Doeu, não vou mentir. Foi como se o véu fininho que cobria meu mundo tivesse simplesmente sumido. Senti vazio e ansiedade. Levei alguns anos para me reconstruir, mas só cheguei lá aceitando que eu estava mal, e que “ser eu mesmo” não é lá grande coisa quando você nem sabe quem é. Eu topei adiar prazeres imediatos pelo meu aprimoramento — e sabia que era o único caminho para eu “ser menos ruim”.

Tudo que vale a pena fazer vai ser uma merda no começo. Tudo que vale a pena exige dor e sacrifício. Aí está o problema que o Brasil enfrenta, um país originalmente construído sobre a moral do controle do impulso. O que antes era uma nação de gente que sacrificava o prazer imediato por um futuro melhor, hoje está dominada pela mensagem: ‘viva o momento’.

E é exatamente isso que as pessoas fazem. Vivem este momento. Portanto, quando algo é ruim ou fica difícil, a maioria desiste. A maioria se entrega à satisfação momentânea às custas de um futuro melhor.

A gente sabe disso racionalmente, e mesmo assim segue se sabotando — caindo num niilismo preguiçoso, dizendo “nada importa, todo mundo vai morrer mesmo”.

Sim, vamos morrer. Então por que viver na mediocridade? Por que não se provocar, testar os limites e ver do que você é capaz? Não é isso que admiramos nos heróis de livros e filmes? Não é a luta que dá sentido à vida?

Ou, sei lá, talvez, para você "sentido" seja “ser você mesmo”, ignorar o potencial, se afundar em prazeres físicos e virar um mimado ignorantezinho de merda? Beleza, seja você mesmo, então. Só que eu, sinceramente, não vou querer andar com você — porque, sendo muito sincero, você é um caco emocional, e ninguém tem tempo pra isso.

3. Isso coloca sentimentos acima dos fatos

“Ser você mesmo” é um fato? Não. É um sentimento. Como eu disse antes, o "eu" é uma ilusão — isso é fato. A idéia que temos na cabeça sobre o nosso “eu” é — adivinha — um sentimento.

Você acha mesmo que este mundo próspero foi construído com base em sentimentos? Ok, a arte vive muito no reino do sentir, mas mesmo a arte tem química, física, geometria e matemática por trás. Sentimentos não significam nada se não forem ancorados e materializados no mundo real. Uma idéia é só uma ideia até ser posta em prática. “Seja você mesmo” é só uma frase de pára-choque de caminhão até você agir, melhorar, julgar e ser julgado.

“Ser você mesmo” é um processo contínuo, um fluxo de ações, e não um estado de ser — por mais paradoxal que pareça.


Meu mano Sócrates percebendo que não sabe nada.

Quero propor uma alternativa ao movimento SEJA VOCÊ MESMO: nos melhores moldes do grego Sócrates, o movimento EU NÃO SEI NADA.

Vamos aceitar (que dói menos): na maior parte do tempo, achamos que sabemos alguma coisa do mundo, mas, no fundo, não sabemos porra nenhuma. Ou, para ser mais preciso: não sabemos nada realmente significativo.

Claro, você pode saber a capital do Burkina Faso (eu sei), os efeitos da crise de 2008 no cenário atual, o nome do cachorro do primo do seu vizinho ou os tipos de personalidade do MBTI — mas o que quer que você saiba provavelmente não vai mudar o mundo de forma significativa.

O movimento EU NÃO SEI NADA admite:
  • que somos mais ignorantes do que pensamos.
  • que saber não é um destino, mas um processo contínuo de descoberta e questionamento.
  • que a Wikipédia é um grande experimento da internet que ajudou todo mundo a escrever trabalho na escola.
  • que nossa autoimportância é temporária no grande esquema das coisas.
  • que eu não sei por que glorificamos gente burra na mídia, mas é divertido, então segue o baile, valeu.
  • que SER VOCÊ MESMO não significa nada, já que não dá pra nos conhecer de verdade.
  • que eu não faço ideia de como minha mãe fazia Apfel Strudel e assava o "bolo de bolo" dela, mas eu gostava pra caralho, não quero saber.
No fim das contas, o mundo seria melhor se não glorificássemos tanto os sentimentos, tratando-os pelo que são — atividades cerebrais temporárias que podem dar prazer ou sofrimento, com mil significados possíveis conforme a interpretação.

Sentimentos são ótimos — fazem a gente se sentir vivo, não só estar vivo. Eles humanizam, mas não são o objetivo final, não são o tecido fundamental da sociedade — os fatos e a razão são. Só depois de perceber isso conseguimos priorizar melhor, aproveitar mais a vida e tomar decisões mais inteligentes. Dá para tornar os fatos mais significativos usando os sentimentos — nossa capacidade de criar com infinitas interpretações — e nosso impulso de tornar essa massa rochosa velha de guerra  em que vivemos um lugar mais suportável para dividir a vida.

4. Ações > Autoestima

Lamento informar, mas toda essa obsessão com a autoestima da era atual é uma babaquice inominável. O que importa são as ações. Sentir-se bem consigo mesmo não vale nada se suas ações não batem com esse sentimento. E mesmo quando suas ações são boas, sentir-se bem com isso é irrelevante — agradável, mas irrelevante.

Sentimentos passam; não dá para fundamentar juízos sólidos neles. Na verdade, budistas e gurus de meditação diriam “julgar um sentimento é um erro; apenas observe”. O único indicador do seu caráter é como você age ao longo do tempo. Isso revela seu “eu verdadeiro”, se você ainda comprar essa noção.

Conclusão: todo o barulho de grandes empresas, da mídia, da sua avó e do seu cachorro não passa disso — barulho.

Ponha a cabeça para pensar: como diabos alguém pode te dizer “seja você mesmo” se essa pessoa nem sabe quem é o seu “você” — e, muitas vezes, nem você sabe? E qual é a dessa obsessão com o eu? "Eu, eu, eu, me olha, olha como eu me sinto bem blá blá blá". Seu eu imaginário não importa — suas ações importam. Elas fazem quem você é. Só fazendo é que você descobre seu caráter e pode se julgar e ser julgado. O resto é misticismo vazio.

Tá deprimido? O que você está esperando? Leia o QR Code e ganhe um kit de facas incrível, mais uma lanterna extracurta, extrabrilhante, extraleve, extracamuflada!!

Ok, parei, isso aqui não é telemarketing. Não estou te vendendo nada. Quer dizer… tô sim: tô te vendendo CONHECIMEEEEENTOOOO.

Como vou concluir e resumir esta bagunça de artigo?:

  1. O “eu” é uma ilusão — Buda e a neurociência concordam.
  2. Sua identidade não é estática. Não se apegue a ela — apegue-se às suas ações (pense sempre nas implicações morais delas para você e para os outros).
  3. Não se parabenize por “ser você mesmo” — isso atrai mediocridade e te deixa preguiçoso.
  4. Aprenda a sacrificar prazer imediato por um futuro melhor (tudo que vale a pena vai ser ruim no começo).
  5. Sentimentos são ótimos, mas completam os fatos — não o contrário (fatos > sentimentos).
  6. Em vez de pregar SEJA VOCÊ MESMO, admita que VOCÊ NÃO SABE NADA e parta daí (Sócrates, meu camaradinha...).
  7. Sinto falta da minha infância.
  8. Sentir-se bem não significa nada se suas ações não estão alinhadas com sentir-se bem (Ações > autoestima).
  9. Confiança verdadeira se conquista.
  10. CONHECIMEEEEEENTOOOOO é poder.

Dostoiévski, Dr. House e a arte milenar de mentir para si mesmo

“Mentir para nós mesmos é um hábito mais profundamente arraigado do que mentir para os outros.”
— Fiódor Dostoiévski

Se você já assistiu à série “House M.D.”, vai lembrar da frase que o protagonista — aquele médico rabugento com alma de filósofo cínico interpretado por Hugh Laurie — repetia como quem recita um mantra zen-budista de boteco:

“Todo mundo mente.”

No contexto daquela série, isso significava que seus pacientes quase sempre mentiam sobre seus sintomas e sua trajetória de vida porque se sentiam envergonhados ou tentavam manipular a forma como seriam vistos pelos outros, mesmo que isso envolvesse sua vida ou morte. House contra-atacava com seu sarcasmo e sua visão extremamente cínica da natureza humana.

Algumas de suas pílulas filosóficas:

  • “Eu não pergunto por que os pacientes mentem, eu só parto do pressuposto de que todos mentem.”
  • “Uma verdade básica da condição humana: todo mundo mente. A única variável é sobre o quê.”
  • “Quando você quer saber a verdade sobre alguém, essa pessoa é a última a quem você deve perguntar.”
  • “Gente morrendo também mente. Dizem que queriam ter trabalhado menos, sido mais legais, aberto orfanatos para gatinhos. Quem realmente quer fazer alguma coisa, faz, não guarda pra usar frase de efeito na hora da morte.”
Esse cinismo do seu caráter o tornava um excelente diagnosticador de doenças complexas, mas, paradoxalmente, esse mesmo cinismo o fazia sofrer, pois o ditado "todo mundo mente" também se referia a ele e, mais precisamente, ao fato de que ele mentia para si mesmo e, ao mesmo tempo, tinha plena consciência disso.

Especificamente, a mentira mais dolorosa que ele contava a si mesmo era que "não precisava de ninguém", mas, com o passar da série, sua falta de conexão humana verdadeira só piorou, e ele tentou preencher esse vazio com seu sarcasmo exagerado e sua visão cínica das emoções humanas, criando um mundo ilusório no qual ele estava "desligado" dessas emoções — o que, ironicamente, só lhe trouxe mais sofrimento, levando-o a tentar se ferir por causa do ódio que sentia por si mesmo.

Seu melhor amigo, e provavelmente seu único amigo de verdade, era o Dr. Wilson — um homem que era exatamente o oposto de House.

Numa cena, é apresentado um diálogo que resume a filosofia da dupla:

House: “Você ama todo mundo. Essa é a sua patologia. Você é o responsável.”

Wilson: “Você sabe por que as pessoas são legais com as outras?”

House: “Ah, essa eu sei. Porque as pessoas são boas, decentes e amorosas. Ou então porque são covardes. Se eu for grosso com você, você vai ser grosso comigo. Destruição mútua garantida.”

Wilson: “Exatamente…”

House: “Você vai chegar ao ponto?”

Wilson: “Você precisa que as pessoas gostem de você.”

House: “Eu não ligo se as pessoas gostam de mim.”

Wilson: “Tá, mas você precisa que as pessoas gostem de você porque você precisa das pessoas.

É possível que a atitude extremamente cínica de House em relação às pessoas lhe tenha oferecido o conforto de que precisava, o pensamento reconfortante de que ele funcionava num nível superior às emoções e aos relacionamentos humanos. Esse comportamento o tornou um mestre em diagnosticar as patologias da mente e do corpo humanos, mas o cegou para sua própria patologia — a de que ele não era capaz de manter relacionamentos saudáveis ​​com outras pessoas e que estava alienado de todas as atividades "vulgares" ao seu redor. Mas a crença de que ele não precisava das pessoas era a mentira que sua mente criou para funcionar direito, mesmo que essa mentira o fizesse sofrer.

Eu também poderia fazer a mesma analogia com Sherlock Holmes e seu relacionamento com o Dr. Watson. Sherlock Holmes tem talentos e patologias semelhantes aos de House, provavelmente porque o arquétipo do personagem deste último foi inspirado no primeiro. (House e Wilson = Holmes e Watson?)

Portanto, podemos ter certeza de que as pessoas mentem para outras pessoas, isso é de conhecimento geral. Mas uma mentira mais dolorosa é a que contamos a nós mesmos. Por que é tão importante estudar o fenômeno do autoengano?

Mentimos para nós mesmos para nos livrar da ansiedade


Existem algumas razões.

Em primeiro lugar, mentir para nós mesmos, como disse Dostoiévski no início, "está mais profundamente arraigado do que mentir para os outros". O que ele quis dizer com isso?

Quem leu pelo menos um pouco de Dostoiévski conhecerá seu estilo de escrita e os principais temas de seus romances. Seus personagens principais são, em  geral, indivíduos problemáticos que carregam o fardo da dor emocional, contradições, paradoxos em seu comportamento e uma alienação de si mesmos, o que acaba levando-os a se afastar dos outros.

Por que um homem se afastaria de si mesmo? Dostoiévski insinua que isso vem do autoengano. Mas então, por que mentimos para nós mesmos? Porque enfrentar a realidade da nossa condição humana costuma ser uma experiência extremamente dolorosa. Admitir que não somos tão bons e sinceros quanto imaginávamos é admitir que somos, de certa forma, criaturas patéticas e paradoxais, capazes de imaginar um mundo ideal e racional e, ainda assim, sermos arrastados para baixo por nossos instintos primitivos e pela natureza animal regida pela evolução.

Em segundo lugar, mentimos para nós mesmos para nos livrar da ansiedade.

Søren Kierkegaard — “O Pai do Existencialismo”

Kierkegaard, um escritor do século XIX, disse certa vez: “A ansiedade é a vertigem da liberdade”, provavelmente se referindo à tendência humana específica de sentir ansiedade por causa ao excesso de possibilidades e escolhas. Quando somos sobrecarregados com tantas opções em nossa vida, em vez de nos sentirmos entusiasmados e revigorados, muitas vezes nos inibimos e nos escondemos em nós mesmos e em nossas próprias mentiras, paralisados ​​pela enorme quantidade de possibilidades e pela percepção de que somos seres mortais que compreendem o real peso de nossas decisões. Essa ansiedade é parte essencial da nossa existência humana.

Em terceiro lugar, quem estuda psicologia, neurociência e psicoterapia encontrará centenas de referências ao chamado "cérebro de lagarto" — que é apenas um termo simplificado para alguns processos de partes do nosso cérebro que se originaram há centenas de milhares de anos, quando o Homo sapiens era uma criatura que lutava para sobreviver todos os dias, num ambiente em que o perigo era muito real e iminente.

Esses perigos, como predadores, a falta de abrigo estável, condições climáticas muito adversas e tribos inimigas que competiam pela sobrevivência — durante dezenas e centenas de milhares de anos — formaram mecanismos inconscientes em nosso cérebro que, de acordo com a evolução, nos permitiram sobreviver apesar de outras espécies, como os neandertais. (Curiosidade: alguns estudos genéticos mostram que a maioria dos europeus e asiáticos contém 2% de DNA neandertal)

Mas, ao mesmo tempo, de acordo com descobertas arqueológicas que mostram que o formato do nosso crânio mudou e aumentou de tamanho até cerca de 30.000 anos atrás, nossos cérebros aumentaram de tamanho, respectivamente, talvez porque as regiões responsáveis ​​pelas habilidades cognitivas, emocionais, criativas e imaginativas foram exercitadas e usadas com mais freqüência nas últimas dezenas de milhares de anos.

Portanto, vivemos agora em uma espécie de paradoxo:

1. De um lado, temos o sistema límbico, ou "cérebro de lagarto", que é a parte mais primitiva do nosso cérebro, descrito por neuroanatomistas em 1954. É chamado de "Cérebro de Lagarto" porque o sistema límbico é praticamente tudo o que um lagarto tem para a função cerebral. Ele é responsável por lutar, fugir, alimentar-se, sentir medo, ficar paralisado e copular. Este sistema límbico é em grande parte inconsciente, portanto, não há mesmo como controlá-lo.

2. Por outro lado, temos o cérebro paleomamífero (mamífero antigo), que contém o hipotálamo, o hipocampo, a amígdala e o córtex cingulado, sendo o centro da nossa motivação, das emoções e da memória, inclusive comportamentos como a paternidade e maternidade.

3. E por último, mas não menos importante, temos a região que se desenvolveu mais recentemente no cérebro: o cérebro neomamífero (novo mamífero), constituído pelo neocórtex, que permite a linguagem, a abstração, o raciocínio e o planejamento.

Este "novo cérebro mamífero" pode ser a possível causa da nossa ansiedade, do nosso paradoxo humano — estar consciente da nossa inteligência, da nossa imaginação, de todas as possibilidades e ambições... e, ao mesmo tempo, estar ciente da nossa morte e decadência, da nossa natureza primitiva da qual parecemos não conseguir escapar e, provavelmente, nunca conseguiremos escapar.

Esse paradoxo humano, da infinitude de possibilidades da nossa mente e das limitações físicas do nosso corpo, nos faz mentir para nós mesmos, nos faz querer nos livrar da ansiedade, criar um mundo ilusório no qual evitamos a responsabilidade e o enorme peso das decisões em nossa vida.

Esse paradoxo é a essência da "angústia existencial", descrita por Kierkegaard e outros existencialistas no século XX. Essa angústia não é condicionada por um predador ou um perigo iminente como nos tempos pré-históricos; ela é causada pelas percepções e ansiedades do homem moderno.

Dessa forma patética, vivemos então nossa própria profecia autorrealizável: a de que merecemos nos sentir mal e nos odiar. Nos afastamos de nós mesmos e dos outros, mergulhando cada vez mais na psicose da nossa própria mente.

Em seu conto Записки изъ подполья (Zapiski iz podpol'ya, ou "Notas do Subterrâneo"), Dostoiévski descreve esse tipo de indivíduo — um homem perturbado por sua própria mente, sofrendo de autoengano e autoalienação.

Em alguns momentos, esse homem prova que é mestre em dissecar a psique humana:

Но до того человек пристрастен к системе и к отвлеченному выводу, что готов умышленно исказить правду, готов вид не видеть и слыхом не слыхать, только чтобы оправдать свою логику.

(Mas o homem é tão viciado no sistema e na conclusão abstrata, que está pronto para distorcer deliberadamente a verdade, pronto para fazer vistas grossas e ouvidos moucos a ela, simplesmente para justificar sua lógica.” (em tradução minha)
 
(Parte I, capítulo VII)


Ведь мы до того дошли, что настоящую «живую жизнь» чуть не считаем за труд, почти что за службу, и все мы про себя согласны, что по книжке лучше. И чего копошимся мы иногда, чего блажим, чего просим? 

Afinal, chegamos a tal ponto que quase passamos a considerar a verdadeira “vida vivida” como um trabalho penoso, quase como um ofício burocrático; e todos nós, no íntimo, concordamos que é melhor viver pelas regras. Então de que andamos às voltas, por que nos agitamos, que absurdo é esse que pedimos afinal? (em tradução minha)

(Parte II, capítulo X)


человек только свое горе любит считать, а счастья своего не считает

As pessoas gostam apenas de contar seus pesares, mas não contam suas alegrias. (em tradução minha) 

(Parte II, capítulo VI)

Em outros momentos, ele expressa seu ódio pela humanidade:

Ведь глуп человек, глуп феноменально. То есть он хоть и вовсе не глуп, но уж зато неблагодарен так, что поискать другого, так не найти.

Afinal, o homem é estúpido, fenomenalmente estúpido. Ou seja, embora não seja nada estúpido, é tão ingrato que, se você procurar outro, não encontrará. (em tradução minha)

(Parte I, capítulo VII) 

Потому что я только на словах поиграть, в голове помечтать, а на деле мне надо, знаешь чего: чтоб вы провалились, вот чего! Мне надо спокойствия. Да я за то, чтоб меня не беспокоили, весь свет сейчас же за копейку продам.

Porque estou apenas brincando com palavras, sonhando com a minha cabeça, mas, na realidade, você sabe o que eu quero: que você fracasse, é isso! Eu quero paz. Eu venderia o mundo inteiro por um centavo se quisesse ficar em paz.

(Parte II, capítulo IX)

E talvez o sentimento mais miserável e repugnante que ele expressou foi a vaga superioridade que sentia, que o fazia desprezar os outros, ao mesmo tempo em que se sentia uma vítima:

Это была мука-мученская, беспрерывное невыносимое унижение от мысли, переходившей в беспрерывное и непосредственное ощущение того, что я муха, перед всем этим светом, гадкая, непотребная муха, - всех умнее, всех развитее, всех благороднее, - это уж само собою, - но беспрерывно всем уступающая муха, всеми униженная и всеми оскорбленная.

Era um tormento de agonia, uma humilhação contínua e insuportável pelo pensamento, que se transformou num sentimento contínuo e imediato de que eu era uma mosca, diante de todo este mundo, uma mosca vil e indecente - mais inteligente do que todos, mais desenvolvida do que todos, mais nobre do que todos - isso é óbvio - mas uma mosca constantemente inferior a todos, humilhada e insultada por todos. (em tradução minha)

 (Parte II, capítulo I)

E, finalmente, ele se torna um niilista, um homem sem moral, sem ambição. Um homem incapaz de diferenciar o bem do mal. Um homem que deixou de ser homem:

Я потому и заговорил, что мне все хочется наверно узнать: бывают ли у других такие наслаждения? Я вам объясню: наслаждение было тут именно от слишком яркого сознания своего унижения; оттого, что уж сам чувствуешь, что до последней стены дошел; что и скверно это, но что и нельзя тому иначе быть; что уж нет тебе выхода, что уж никогда не сделаешься другим человеком; что если б даже и оставалось еще время и вера, чтоб переделаться во что-нибудь другое, то, наверно, сам бы не захотел переделываться; а захотел бы, так и тут бы ничего не сделал, потому что на самом-то деле и переделываться-то, может быть, не во что.

Foi por isso que comecei a falar, porque continuo querendo saber com certeza: os outros experimentam tais prazeres? Vou explicar: o prazer aqui vinha justamente de uma consciência vívida demais da própria humilhação; do fato de você mesmo já sentir que chegou ao limite; que é desagradável, mas que não pode ser de outra forma; que não há saída para você, que você nunca se tornará uma pessoa diferente; que mesmo que ainda houvesse tempo e fé para se transformar em outra coisa, você certamente não gostaria de mudar; e mesmo que quisesse, não faria nada a esse respeito, porque, na realidade, talvez não houvesse nada para se transformar. (Em tradução minha)

(Parte I, capítulo II)

Я не только злым, но даже и ничем не сумел сделаться:ни злым, ни добрым, ни подлецом. ни честным, ни героем, ни насекомым.

Não sou apenas mau, mas também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem honesto, nem herói, nem inseto. (Em tradução minha)

 (Parte I, capítulo II)


Notas do Subterrâneo é uma obra que surpreende, diverte, desperta curiosidade, causa repulsa, faz com que você se identifique, aproxima e afasta da natureza humana ao mesmo tempo. É considerada uma das obras mais profundas sobre a psique humana e a neurose humana. Com certeza não é uma leitura “divertida”. É difícil de engolir emocionalmente, porque é muito cortante, íntimo e sem filtros. Mas é uma obra muito importante na literatura mundial, e se você quiser saber mais sobre esse fenômeno de ódio por si mesmo e autoengano, e como evitar essas tendências negativas, recomendo que a leia.

Somente tendo seu inimigo por perto você pode entendê-lo melhor e se tornar capaz de vencer essa luta — a luta com sua própria mente.

Главное, самому себе не лгите. Лгущий самому себе и собственную ложь свою слушающий до того доходит, что уж никакой правды ни в себе, ни кругом не различает, а стало быть входит в неуважение и к себе и к другим. Не уважая же никого, перестает любить, а чтобы, не имея любви, занять себя и развлечь, предается страстям и грубым сладостям, и доходит совсем до скотства в пороках своих, а все от беспрерывной лжи и людям и себе самому.

Acima de tudo, não minta para si mesmo. Aqueles que mentem para si mesmos e dão ouvidos às próprias mentiras chegam a tal ponto que não conseguem mais discernir nenhuma verdade, nem dentro de si nem ao seu redor, e assim caem no desrespeito por si mesmos e pelos outros. Não respeitando ninguém, deixam de amar e, para se ocuparem e se distrairem, carentes de amor, entregam-se a paixões e prazeres grosseiros, chegando à bestialidade em seus vícios, tudo por mentirem incessantemente aos outros e a si mesmos.

Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov (Livro II, Capítulo II, "СТАРЫЙ ШУТ", "O velho palhaço")