Seja você mesmo!
Ou em outras versões:
Relaxa, você é incrível do jeitinho que é!
Nossa, olha só você, tão lindo(a) e único(a)!
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Não se preocupe com esses quilinhos a mais, você tá maravilhoso(a), gato(a) — com nosso delivery especial, você nem precisa sair de casa! Come essa porcaria e mexe essa bunda!
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Você tem comportamentos autodestrutivos e vive sabotando a própria vida? Relaxa, isso se chama ser único(a) e espontâneo(a). Assista ao nosso reality show e veja gente fazendo merda ainda maior, assim você vai se sentir melhor com você mesmo(a).
Enfim, para resumir: tudo isso aí em cima é um nível supremo de merda que você ouve o tempo todo do mundo por aí. Fazem você se sentir bem consigo mesmo só pra poder enfiar goela abaixo o lixo que querem vender. É pura manipulação.
A verdade é: ninguém liga pra você. A única pessoa que deveria ligar é você mesmo. Então, quando alguém te manda um “seja você mesmo”, essa pessoa não faz a mínima idéia do que está falando.
Deixa eu explicar.
Primeiro de tudo, a noção de um “eu” único é falsa. Todos nós temos vários eus dependendo da situação e das pessoas ao nosso redor.
Em outras palavras, nós ajustamos nosso comportamento e fingimos — até certo ponto.
“Péra aí, Andy, isso não faz sentido. Um ‘eu’ é uma identidade que não muda ao longo do tempo.”
Que fofinho isso ai... mas não é verdade. Não existe um “eu” real, é uma ilusão criada pelo seu cérebro para inventar uma “história coerente” da sua vida.
Sim, neurologicamente falando, formamos sinapses e padrões no cérebro que tendem a ser constantes e rastreáveis, mas ao mesmo tempo eles são flexíveis e podem mudar com algum esforço.
De certo modo, essa ilusão do “eu” até é boa porque, no meio do caos, precisamos de alguma coisa que nos dê uma sensação de estabilidade — e esse tal “eu” cumpre esse papel. Precisamos acreditar que temos um “eu”, e não apenas padrões de comportamento observáveis que mudam o tempo todo. Isso não seria nada calmante — pelo contrário, seria motivo de ansiedade.
Mas, para o seu próprio bem, você precisa aceitar: não existe um “eu verdadeiro” — só existem ações e decisões.
Por exemplo: você pode ser corajoso num momento e covarde no seguinte. Isso quer dizer que você é os dois? Mais ou menos, mas não exatamente. Significa que você é um ser que age — e pode agir com covardia ou coragem. Só que você nunca deveria se apegar totalmente a essa ideia de identidade, porque sua identidade é muito menos estática do que você imagina. Em vez disso, deveria se “apegar” às suas ações — ou seja, deveria pensar nas implicações morais delas sobre você (mesmo que ilusórias) e sobre os outros.
Você ainda não está convencido e insiste que quer construir um eu estável, bom e moral?
Então talvez seja interessante voltar aos gregos antigos.
Um deles, Aristóteles, argumentava que uma virtude está no meio entre dois vícios. Ele chamou isso de “justa medida”. Ser corajoso não significa fazer loucuras o tempo todo — significa agir entre a coragem extrema e a covardia.
Coragem demais te torna imprudente e irresponsável, ele dizia (estou parafraseando):
“No que diz respeito ao medo, a coragem é o meio-termo. A temeridade é o excesso e a covardia é a falta. No que diz respeito ao dinheiro, o meio é a liberalidade; o excesso é a prodigalidade e a falta é a mesquinharia. No que diz respeito à honra e desonra, a justa autoestima é o meio. Humildade excessiva é tão ruim quanto vaidade vazia.”
Então é isso: equilíbrio. Yin-yang. Alface e pizza. Funk proibidão e Beethoven. Memes da internet e livros de filosofia.
Beleza, Sr. Buda, e o que mais?
Bom, vou ampliar essas idéias e mostrar por que o conselho “SEJA VOCÊ MESMO!!!” é tão burro quanto achar que a Terra é plana — ou que The Big Bang Theory é uma série engraçada.
1. O “Eu” é uma ilusão
Essa idéia, evidentemente, não é lá muito original, já que religiões orientais como o budismo e o taoísmo pregam algo parecido há séculos. A diferença é que os argumentos que vou apresentar aqui têm fundamento na neurociência, o que torna tudo fascinante num nível muito mais alto.
Para mim, uma ilusão é uma experiência subjetiva que não é aquilo que parece. Ilusões são experiências na mente, mas não existem na natureza. São eventos gerados pelo cérebro. A maioria de nós tem a experiência de um "eu". Com certeza eu tenho, e não duvido que outros também — um indivíduo autônomo com identidade coerente e noção de livre-arbítrio. Mas essa experiência é uma ilusão — ela não existe independentemente da pessoa que a vivencia, e certamente não é aquilo que parece. Isso não quer dizer que a ilusão seja inútil. Vivenciar a ilusão do "eu" pode proporcionar vantagens funcionais concretas na forma como pensamos e agimos, mas isso não significa que ela exista enquanto entidade.
“Para a maioria de nós, a sensação de eu é a de um indivíduo integrado habitando um corpo. Acho útil distinguir as duas formas de pensar o eu de que William James falava. Há a consciência do momento presente, que ele chamou de ‘eu’ (I), mas há também um eu que reflete sobre quem somos em termos de nossa história, atividades atuais e planos futuros. James chamou esse aspecto do eu de ‘mim’ (me), que a maioria de nós reconheceria como nossa identidade pessoal — quem achamos que somos. Contudo, penso que tanto o ‘eu’ quanto o ‘mim’ são, na verdade, narrativas em constante mudança geradas pelo nosso cérebro para fornecer uma estrutura coerente que organize o resultado de todos os fatores que contribuem para nossos pensamentos e comportamentos.
Acho útil comparar a experiência do "eu" aos contornos subjetivos — ilusões como o
padrão de Kanizsa, em que vemos uma forma invisível definida inteiramente pelo contexto ao redor. As pessoas entendem que é um truque mental, mas talvez não percebam que o cérebro está realmente ativando neurônios como se a forma ilusória existisse de fato. Em outras palavras, o cérebro está alucinando a experiência. Muitos estudos mostram que ilusões geram atividade cerebral como se existissem. Elas não são reais, mas o cérebro as trata como se fossem.
Essa linha de raciocínio poderia ser aplicada a toda percepção, exceto pelo fato de que nem toda percepção é ilusão. Existem formas reais no mundo e outras regularidades físicas que geram estados confiáveis nas mentes de outras pessoas. O motivo pelo qual o estado de realidade não pode ser aplicado ao "eu" é que ele não existe independentemente do meu cérebro que está tendo a experiência. Pode parecer que ele apresenta uniformidade, regularidade e estabilidade que fazem o "eu" parecer real, mas essas propriedades, por si, não o tornam real.
Idéias semelhantes sobre o "eu" podem ser encontradas no Budismo e nos escritos de Hume e Spinoza. A diferença é que agora há evidências psicológicas e fisiológicas sólidas para sustentar essas idéias.
Então é isso: o "eu" é uma ilusão; somos um bando de macacos enganados pelo próprio cérebro.
E aí, fodeu cartola? A gente desiste?
Bem, não exatamente. Há benefícios óbvios nessa ilusão; porém, devemos sempre lembrar que é uma ilusão e tratá-la com ceticismo. A ilusão do "eu" provavelmente é uma experiência insequapável de que precisamos para interagir com os outros e com o mundo e, na verdade, não podemos abandoná-la nem ignorar sua influência com facilidade; mas devemos ser céticos quanto a cada um de nós ser a entidade coerente e integrada que supomos ser.
Sabendo de tudo isso, por que o conselho SEJA VOOOOCÊÊÊÊÊÊ MEEEESMO é furado?
Aqui vai o próximo motivo.
2. Isso atrai mediocridade
A idéia de aceitar-se do jeitinho que você é tem intenção nobre. Difícil discordar. Mas, assim como dar um docinho para seu filho toda vez que ele faz uma cagada pode arruinar a vida dele lá na frente, se acalentar e repetir para si mesmo que você é incrível do jeitinho que é também pode ser prejudicial ao seu desenvolvimento.
Se eu faço merda, as pessoas podem e devem me cobrar — mas, mais importante ainda, eu deveria me cobrar. Eu preciso ser meu próprio juiz primeiro. A maneira como eu falo comigo é aquilo que eu me torno; então é melhor que eu seja sincero comigo mesmo para não virar um iludido de merda.
Sim, ÓBVIO, não é para ir ao extremo e se espancar por cada fraqueza. O ideal é se amar como um bom pai ama o próprio filho: duro quando precisa, julgando com justiça para a criança aprender o certo e o errado; e normalmente gentil, incondicionalmente.
Pessoalmente, só comecei a melhorar minha saúde mental e física quando percebi que eu não estava bem do jeito que eu era. Doeu, não vou mentir. Foi como se o véu fininho que cobria meu mundo tivesse simplesmente sumido. Senti vazio e ansiedade. Levei alguns anos para me reconstruir, mas só cheguei lá aceitando que eu estava mal, e que “ser eu mesmo” não é lá grande coisa quando você nem sabe quem é. Eu topei adiar prazeres imediatos pelo meu aprimoramento — e sabia que era o único caminho para eu “ser menos ruim”.
Tudo que vale a pena fazer vai ser uma merda no começo. Tudo que vale a pena exige dor e sacrifício. Aí está o problema que o Brasil enfrenta, um país originalmente construído sobre a moral do controle do impulso. O que antes era uma nação de gente que sacrificava o prazer imediato por um futuro melhor, hoje está dominada pela mensagem: ‘viva o momento’.
E é exatamente isso que as pessoas fazem. Vivem este momento. Portanto, quando algo é ruim ou fica difícil, a maioria desiste. A maioria se entrega à satisfação momentânea às custas de um futuro melhor.
A gente sabe disso racionalmente, e mesmo assim segue se sabotando — caindo num niilismo preguiçoso, dizendo “nada importa, todo mundo vai morrer mesmo”.
Sim, vamos morrer. Então por que viver na mediocridade? Por que não se provocar, testar os limites e ver do que você é capaz? Não é isso que admiramos nos heróis de livros e filmes? Não é a luta que dá sentido à vida?
Ou, sei lá, talvez, para você "sentido" seja “ser você mesmo”, ignorar o potencial, se afundar em prazeres físicos e virar um mimado ignorantezinho de merda? Beleza, seja você mesmo, então. Só que eu, sinceramente, não vou querer andar com você — porque, sendo muito sincero, você é um caco emocional, e ninguém tem tempo pra isso.
3. Isso coloca sentimentos acima dos fatos
“Ser você mesmo” é um fato? Não. É um sentimento. Como eu disse antes, o "eu" é uma ilusão — isso é fato. A idéia que temos na cabeça sobre o nosso “eu” é — adivinha — um sentimento.
Você acha mesmo que este mundo próspero foi construído com base em sentimentos? Ok, a arte vive muito no reino do sentir, mas mesmo a arte tem química, física, geometria e matemática por trás. Sentimentos não significam nada se não forem ancorados e materializados no mundo real. Uma idéia é só uma ideia até ser posta em prática. “Seja você mesmo” é só uma frase de pára-choque de caminhão até você agir, melhorar, julgar e ser julgado.
“Ser você mesmo” é um processo contínuo, um fluxo de ações, e não um estado de ser — por mais paradoxal que pareça.
Meu mano Sócrates percebendo que não sabe nada.
Quero propor uma alternativa ao movimento SEJA VOCÊ MESMO: nos melhores moldes do grego Sócrates, o movimento EU NÃO SEI NADA.
Vamos aceitar (que dói menos): na maior parte do tempo, achamos que sabemos alguma coisa do mundo, mas, no fundo, não sabemos porra nenhuma. Ou, para ser mais preciso: não sabemos nada realmente significativo.
Claro, você pode saber a capital do Burkina Faso (eu sei), os efeitos da crise de 2008 no cenário atual, o nome do cachorro do primo do seu vizinho ou os tipos de personalidade do MBTI — mas o que quer que você saiba provavelmente não vai mudar o mundo de forma significativa.
O movimento EU NÃO SEI NADA admite:
- que somos mais ignorantes do que pensamos.
- que saber não é um destino, mas um processo contínuo de descoberta e questionamento.
- que a Wikipédia é um grande experimento da internet que ajudou todo mundo a escrever trabalho na escola.
- que nossa autoimportância é temporária no grande esquema das coisas.
- que eu não sei por que glorificamos gente burra na mídia, mas é divertido, então segue o baile, valeu.
- que SER VOCÊ MESMO não significa nada, já que não dá pra nos conhecer de verdade.
- que eu não faço ideia de como minha mãe fazia Apfel Strudel e assava o "bolo de bolo" dela, mas eu gostava pra caralho, não quero saber.
No fim das contas, o mundo seria melhor se não glorificássemos tanto os sentimentos, tratando-os pelo que são — atividades cerebrais temporárias que podem dar prazer ou sofrimento, com mil significados possíveis conforme a interpretação.
Sentimentos são ótimos — fazem a gente se sentir vivo, não só estar vivo. Eles humanizam, mas não são o objetivo final, não são o tecido fundamental da sociedade — os fatos e a razão são. Só depois de perceber isso conseguimos priorizar melhor, aproveitar mais a vida e tomar decisões mais inteligentes. Dá para tornar os fatos mais significativos usando os sentimentos — nossa capacidade de criar com infinitas interpretações — e nosso impulso de tornar essa massa rochosa velha de guerra em que vivemos um lugar mais suportável para dividir a vida.
4. Ações > Autoestima
Lamento informar, mas toda essa obsessão com a autoestima da era atual é uma babaquice inominável. O que importa são as ações. Sentir-se bem consigo mesmo não vale nada se suas ações não batem com esse sentimento. E mesmo quando suas ações são boas, sentir-se bem com isso é irrelevante — agradável, mas irrelevante.
Sentimentos passam; não dá para fundamentar juízos sólidos neles. Na verdade, budistas e gurus de meditação diriam “julgar um sentimento é um erro; apenas observe”. O único indicador do seu caráter é como você age ao longo do tempo. Isso revela seu “eu verdadeiro”, se você ainda comprar essa noção.
Conclusão: todo o barulho de grandes empresas, da mídia, da sua avó e do seu cachorro não passa disso — barulho.
Ponha a cabeça para pensar: como diabos alguém pode te dizer “seja você mesmo” se essa pessoa nem sabe quem é o seu “você” — e, muitas vezes, nem você sabe? E qual é a dessa obsessão com o eu? "Eu, eu, eu, me olha, olha como eu me sinto bem blá blá blá". Seu eu imaginário não importa — suas ações importam. Elas fazem quem você é. Só fazendo é que você descobre seu caráter e pode se julgar e ser julgado. O resto é misticismo vazio.
Tá deprimido? O que você está esperando? Leia o QR Code e ganhe um kit de facas incrível, mais uma lanterna extracurta, extrabrilhante, extraleve, extracamuflada!!
Ok, parei, isso aqui não é telemarketing. Não estou te vendendo nada. Quer dizer… tô sim: tô te vendendo CONHECIMEEEEENTOOOO.
Como vou concluir e resumir esta bagunça de artigo?:
- O “eu” é uma ilusão — Buda e a neurociência concordam.
- Sua identidade não é estática. Não se apegue a ela — apegue-se às suas ações (pense sempre nas implicações morais delas para você e para os outros).
- Não se parabenize por “ser você mesmo” — isso atrai mediocridade e te deixa preguiçoso.
- Aprenda a sacrificar prazer imediato por um futuro melhor (tudo que vale a pena vai ser ruim no começo).
- Sentimentos são ótimos, mas completam os fatos — não o contrário (fatos > sentimentos).
- Em vez de pregar SEJA VOCÊ MESMO, admita que VOCÊ NÃO SABE NADA e parta daí (Sócrates, meu camaradinha...).
- Sinto falta da minha infância.
- Sentir-se bem não significa nada se suas ações não estão alinhadas com sentir-se bem (Ações > autoestima).
- Confiança verdadeira se conquista.
- CONHECIMEEEEEENTOOOOO é poder.
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