6/21/2025

Antônio Pinto e a minha estréia como orador fúnebre — com batina e tudo

Era fim de tarde em São Paulo, setembro de 1988. A primavera ainda ensaiava seu retorno, mas o ar tinha aquela melancolia concreta que só os fins de tarde na Dr. Arnaldo conseguem destilar. Eu estava de férias do Banco do Brasil — o que significava, para mim, liberdade remunerada e tempo para as pequenas grandes missões da vida urbana.

A missão do dia: comprar cordas novas para o meu baixo Wal MK2 de 5 cordas e para minha intimorata Fender Stratocaster. Fui à Teodoro Sampaio como quem vai a Meca — e depois da visita sagrada à loja de instrumentos, resolvi ir a pé até a Dr. Arnaldo. Caminhar por São Paulo, naquela época, era uma forma honesta de meditação.

Foi nesse caminho que a realidade resolveu tropeçar na ficção.

Ao passar em frente ao Cemitério do Araçá, fui abordado por um homem de aparência aflita e ternura institucional. Ele me fitou por alguns segundos, mediu minha aparência — e talvez minha alma — e disparou, sem introdução:

— Moço, o orador do velório não apareceu. O senhor não poderia dizer algumas palavras pelo falecido?

Olhei em volta: flores, tristeza, um punhado de parentes e um caixão modesto. O falecido, fui informado, se chamava Antônio Pinto. Um nome ao mesmo tempo singelo e cômico, daqueles que a gente ouve e pensa: esse homem deve ter tido uma vida honesta e alguns apelidos inevitáveis.

Agora, um detalhe importante: eu tinha 17 anos, mas aparentava bem mais. Sempre tive essa cara de quem já leu Santo Agostinho no original e está pronto para dar conselhos sobre castidade e política tributária. Naquele dia em especial, vestia camisa fechada até o último botão, cabelo penteado para o lado e um ar de seminarista prestes a ser promovido a vigário.

Talvez tenha sido esse conjunto que motivou a sugestão do grupo enlutado: “Tem uma batina aqui, do orador que faltou. Serve em você?”

E como não aceitar? Em plena São Paulo dos anos 80, com a alma aberta à aventura e a mente embriagada de cordas novas, aceitei vestir a batina e o papel. E ali, com o sol morrendo sobre os túmulos e as pessoas se ajeitando em volta como quem espera o sermão da montanha, subi numa pequena elevação e fiz o que se esperava de mim: improvisei um discurso fúnebre. Um improviso sacro-profano, delirante e sincero, que transcrevo abaixo sem cortes nem pudores:

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"Irmãos, aqui estamos irmanados num congestionamento de sentimentos profundos.

Temos que aceitar. Porque assim é a trajetória. Assim é (sic) os desígnios.

Meus amigos, hoje perdemos Antônio Pinto! Aqui está Antônio Pinto calmo, sereno, descansando. Acabou a sua responsabilidade.

SABEMOS... que, como todos nós, o senhor Antônio Pinto seguiu por trajetos difíceis. Foi uma batalha.

Este homem, Antônio Pinto, foi um batalhador incansável, que, depois de tantas lutas, de tantos entreslevros (sic), cansou, desanimou, não tinha mais motivação.

POR MAIS QUE SE ESFORÇASSE, não conseguia mais enfrentar as batalhas. Senhor Antônio Pinto foi chacoalhado, prensado pelo mundo, por este mundo cheio de apertos! Por este mundo que vai pra lá e vai pra cá!

Este homem, Antônio Pinto, segue, e deixa — para seguir seus passos, seus caminhos — o seu sobrinho, que tem vitalidade para pegar na batalha.

Este homem, senhor Antônio Pinto, muitas vezes foi agressivo. Outras vezes, recuava. E, muitas vezes, curvava-se humilhado pela situação.

Agora, Antônio Pinto segue para as alturas. TENHO CERTEZA de que ele está me ouvindo neste momento. SENHOR ANTÔNIO PINTO, NÃO SE ENVERGONHE! NÃO SE ENVERGONHE DE SEUS FRACASSOS.

Lembre-se sempre, apenas, dos momentos em que você foi chamado à responsabilidade e compareceu de forma brilhante, de forma rígida, como um torpedo enlouquecido.

Como um torpedo enlouquecido! Como uma cascavel, uma urutu, que se desenrola e se envereda pelos pântanos.

Não podemos condenar ninguém. Aqui, por exemplo, deparo com pessoas. O que cada um de nós fez ontem à noite? Vejo pessoas com o rosto descansado. Outras com olheiras profundas. Alguns dormiram. Outros, talvez, tomando banho, tiveram pensamentos alucinados. Outros estudaram. E outros, provavelmente, debandaram em badernas profundas.

VÁ, ANTÔNIO PINTO, VÁ! A vida é igual para todos! Só nos resta dizer ao Antônio Pinto, que aqui está escangalhado... escangalhado... adeus! Vá, Antônio Pinto, e descanse verdadeiramente!"

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O silêncio que se seguiu foi tão completo que ouvi uma flor cair. Uma senhora enxugou discretamente os olhos. Um senhor pigarreou. Um jovem me olhou com ar de revelação. Eu, suando sob a batina, não sabia se era um novo João Batista ou apenas o protagonista de uma peça de Ionesco encenada por engano num enterro.

Mas fiz o que era preciso. Dei a Antônio Pinto sua passagem — e a mim mesmo, um batismo de absurdo.

Nunca mais vesti batinas, tampouco fui convidado para outros velórios aleatórios. Mas a cada vez que passo pela Dr. Arnaldo e vislumbro os muros do Araçá, me pergunto se, em algum túmulo, repousa alguém esperando que eu repita: “Como um torpedo enlouquecido… como uma cascavel…”

E talvez seja isso que nos salva: a capacidade de transformar o insólito em rito, o improviso em memória, e o Antônio Pinto em lenda.