“Mentir para nós mesmos é um hábito mais profundamente arraigado do que mentir para os outros.”
— Fiódor Dostoiévski
Se você já assistiu à série “House M.D.”, vai lembrar da frase que o protagonista — aquele médico rabugento com alma de filósofo cínico interpretado por Hugh Laurie — repetia como quem recita um mantra zen-budista de boteco:
No contexto daquela série, isso significava que seus pacientes quase sempre mentiam sobre seus sintomas e sua trajetória de vida porque se sentiam envergonhados ou tentavam manipular a forma como seriam vistos pelos outros, mesmo que isso envolvesse sua vida ou morte. House contra-atacava com seu sarcasmo e sua visão extremamente cínica da natureza humana.
Algumas de suas pílulas filosóficas:
- “Eu não pergunto por que os pacientes mentem, eu só parto do pressuposto de que todos mentem.”
- “Uma verdade básica da condição humana: todo mundo mente. A única variável é sobre o quê.”
- “Quando você quer saber a verdade sobre alguém, essa pessoa é a última a quem você deve perguntar.”
- “Gente morrendo também mente. Dizem que queriam ter trabalhado menos, sido mais legais, aberto orfanatos para gatinhos. Quem realmente quer fazer alguma coisa, faz, não guarda pra usar frase de efeito na hora da morte.”
Esse cinismo do seu caráter o tornava um excelente diagnosticador de doenças complexas, mas, paradoxalmente, esse mesmo cinismo o fazia sofrer, pois o ditado "todo mundo mente" também se referia a ele e, mais precisamente, ao fato de que ele mentia para si mesmo e, ao mesmo tempo, tinha plena consciência disso.
Especificamente, a mentira mais dolorosa que ele contava a si mesmo era que "não precisava de ninguém", mas, com o passar da série, sua falta de conexão humana verdadeira só piorou, e ele tentou preencher esse vazio com seu sarcasmo exagerado e sua visão cínica das emoções humanas, criando um mundo ilusório no qual ele estava "desligado" dessas emoções — o que, ironicamente, só lhe trouxe mais sofrimento, levando-o a tentar se ferir por causa do ódio que sentia por si mesmo.
Seu melhor amigo, e provavelmente seu único amigo de verdade, era o Dr. Wilson — um homem que era exatamente o oposto de House.
Numa cena, é apresentado um diálogo que resume a filosofia da dupla:
House: “Você ama todo mundo. Essa é a sua patologia. Você é o responsável.”
Wilson: “Você sabe por que as pessoas são legais com as outras?”
House: “Ah, essa eu sei. Porque as pessoas são boas, decentes e amorosas. Ou então porque são covardes. Se eu for grosso com você, você vai ser grosso comigo. Destruição mútua garantida.”
Wilson: “Exatamente…”
House: “Você vai chegar ao ponto?”
Wilson: “Você precisa que as pessoas gostem de você.”
House: “Eu não ligo se as pessoas gostam de mim.”
Wilson: “Tá, mas você precisa que as pessoas gostem de você porque você precisa das pessoas.”
É possível que a atitude extremamente cínica de House em relação às pessoas lhe tenha oferecido o conforto de que precisava, o pensamento reconfortante de que ele funcionava num nível superior às emoções e aos relacionamentos humanos. Esse comportamento o tornou um mestre em diagnosticar as patologias da mente e do corpo humanos, mas o cegou para sua própria patologia — a de que ele não era capaz de manter relacionamentos saudáveis com outras pessoas e que estava alienado de todas as atividades "vulgares" ao seu redor. Mas a crença de que ele não precisava das pessoas era a mentira que sua mente criou para funcionar direito, mesmo que essa mentira o fizesse sofrer.
Eu também poderia fazer a mesma analogia com Sherlock Holmes e seu relacionamento com o Dr. Watson. Sherlock Holmes tem talentos e patologias semelhantes aos de House, provavelmente porque o arquétipo do personagem deste último foi inspirado no primeiro. (House e Wilson = Holmes e Watson?)
Portanto, podemos ter certeza de que as pessoas mentem para outras pessoas, isso é de conhecimento geral. Mas uma mentira mais dolorosa é a que contamos a nós mesmos. Por que é tão importante estudar o fenômeno do autoengano?
Mentimos para nós mesmos para nos livrar da ansiedade
Existem algumas razões.
Em primeiro lugar, mentir para nós mesmos, como disse Dostoiévski no início, "está mais profundamente arraigado do que mentir para os outros". O que ele quis dizer com isso?
Quem leu pelo menos um pouco de Dostoiévski conhecerá seu estilo de escrita e os principais temas de seus romances. Seus personagens principais são, em geral, indivíduos problemáticos que carregam o fardo da dor emocional, contradições, paradoxos em seu comportamento e uma alienação de si mesmos, o que acaba levando-os a se afastar dos outros.
Por que um homem se afastaria de si mesmo? Dostoiévski insinua que isso vem do autoengano. Mas então, por que mentimos para nós mesmos? Porque enfrentar a realidade da nossa condição humana costuma ser uma experiência extremamente dolorosa. Admitir que não somos tão bons e sinceros quanto imaginávamos é admitir que somos, de certa forma, criaturas patéticas e paradoxais, capazes de imaginar um mundo ideal e racional e, ainda assim, sermos arrastados para baixo por nossos instintos primitivos e pela natureza animal regida pela evolução.
Em segundo lugar, mentimos para nós mesmos para nos livrar da ansiedade.
Søren Kierkegaard — “O Pai do Existencialismo”
Kierkegaard, um escritor do século XIX, disse certa vez: “A ansiedade é a vertigem da liberdade”, provavelmente se referindo à tendência humana específica de sentir ansiedade por causa ao excesso de possibilidades e escolhas. Quando somos sobrecarregados com tantas opções em nossa vida, em vez de nos sentirmos entusiasmados e revigorados, muitas vezes nos inibimos e nos escondemos em nós mesmos e em nossas próprias mentiras, paralisados pela enorme quantidade de possibilidades e pela percepção de que somos seres mortais que compreendem o real peso de nossas decisões. Essa ansiedade é parte essencial da nossa existência humana.
Em terceiro lugar, quem estuda psicologia, neurociência e psicoterapia encontrará centenas de referências ao chamado "cérebro de lagarto" — que é apenas um termo simplificado para alguns processos de partes do nosso cérebro que se originaram há centenas de milhares de anos, quando o Homo sapiens era uma criatura que lutava para sobreviver todos os dias, num ambiente em que o perigo era muito real e iminente.
Esses perigos, como predadores, a falta de abrigo estável, condições climáticas muito adversas e tribos inimigas que competiam pela sobrevivência — durante dezenas e centenas de milhares de anos — formaram mecanismos inconscientes em nosso cérebro que, de acordo com a evolução, nos permitiram sobreviver apesar de outras espécies, como os neandertais. (Curiosidade: alguns estudos genéticos mostram que a maioria dos europeus e asiáticos contém 2% de DNA neandertal)
Mas, ao mesmo tempo, de acordo com descobertas arqueológicas que mostram que o formato do nosso crânio mudou e aumentou de tamanho até cerca de 30.000 anos atrás, nossos cérebros aumentaram de tamanho, respectivamente, talvez porque as regiões responsáveis pelas habilidades cognitivas, emocionais, criativas e imaginativas foram exercitadas e usadas com mais freqüência nas últimas dezenas de milhares de anos.
Portanto, vivemos agora em uma espécie de paradoxo:
1. De um lado, temos o sistema límbico, ou "cérebro de lagarto", que é a parte mais primitiva do nosso cérebro, descrito por neuroanatomistas em 1954. É chamado de "Cérebro de Lagarto" porque o sistema límbico é praticamente tudo o que um lagarto tem para a função cerebral. Ele é responsável por lutar, fugir, alimentar-se, sentir medo, ficar paralisado e copular. Este sistema límbico é em grande parte inconsciente, portanto, não há mesmo como controlá-lo.
2. Por outro lado, temos o cérebro paleomamífero (mamífero antigo), que contém o hipotálamo, o hipocampo, a amígdala e o córtex cingulado, sendo o centro da nossa motivação, das emoções e da memória, inclusive comportamentos como a paternidade e maternidade.
3. E por último, mas não menos importante, temos a região que se desenvolveu mais recentemente no cérebro: o cérebro neomamífero (novo mamífero), constituído pelo neocórtex, que permite a linguagem, a abstração, o raciocínio e o planejamento.
Este "novo cérebro mamífero" pode ser a possível causa da nossa ansiedade, do nosso paradoxo humano — estar consciente da nossa inteligência, da nossa imaginação, de todas as possibilidades e ambições... e, ao mesmo tempo, estar ciente da nossa morte e decadência, da nossa natureza primitiva da qual parecemos não conseguir escapar e, provavelmente, nunca conseguiremos escapar.
Esse paradoxo humano, da infinitude de possibilidades da nossa mente e das limitações físicas do nosso corpo, nos faz mentir para nós mesmos, nos faz querer nos livrar da ansiedade, criar um mundo ilusório no qual evitamos a responsabilidade e o enorme peso das decisões em nossa vida.
Esse paradoxo é a essência da "angústia existencial", descrita por Kierkegaard e outros existencialistas no século XX. Essa angústia não é condicionada por um predador ou um perigo iminente como nos tempos pré-históricos; ela é causada pelas percepções e ansiedades do homem moderno.
Dessa forma patética, vivemos então nossa própria profecia autorrealizável: a de que merecemos nos sentir mal e nos odiar. Nos afastamos de nós mesmos e dos outros, mergulhando cada vez mais na psicose da nossa própria mente.
Em seu conto Записки изъ подполья (Zapiski iz podpol'ya, ou "Notas do Subterrâneo"), Dostoiévski descreve esse tipo de indivíduo — um homem perturbado por sua própria mente, sofrendo de autoengano e autoalienação.
Em alguns momentos, esse homem prova que é mestre em dissecar a psique humana:
Но до того человек пристрастен к системе и к отвлеченному выводу, что готов умышленно исказить правду, готов вид не видеть и слыхом не слыхать, только чтобы оправдать свою логику.
(Mas o homem é tão viciado no sistema e na conclusão abstrata, que está pronto para distorcer deliberadamente a verdade, pronto para fazer vistas grossas e ouvidos moucos a ela, simplesmente para justificar sua lógica.” (em tradução minha)
Ведь мы до того дошли, что настоящую «живую жизнь» чуть не считаем за труд, почти что за службу, и все мы про себя согласны, что по книжке лучше. И чего копошимся мы иногда, чего блажим, чего просим?
Afinal, chegamos a tal ponto que quase passamos a considerar a verdadeira “vida vivida” como um trabalho penoso, quase como um ofício burocrático; e todos nós, no íntimo, concordamos que é melhor viver pelas regras. Então de que andamos às voltas, por que nos agitamos, que absurdo é esse que pedimos afinal? (em tradução minha)
человек только свое горе любит считать, а счастья своего не считает
As pessoas gostam apenas de contar seus pesares, mas não contam suas alegrias. (em tradução minha)
(Parte II, capítulo VI)
Em outros momentos, ele expressa seu ódio pela humanidade:
Ведь глуп человек, глуп феноменально. То есть он хоть и вовсе не глуп, но уж зато неблагодарен так, что поискать другого, так не найти.
Afinal, o homem é estúpido, fenomenalmente estúpido. Ou seja, embora não seja nada estúpido, é tão ingrato que, se você procurar outro, não encontrará. (em tradução minha)
(Parte I, capítulo VII)
Потому что я только на словах поиграть, в голове помечтать, а на деле мне надо, знаешь чего: чтоб вы провалились, вот чего! Мне надо спокойствия. Да я за то, чтоб меня не беспокоили, весь свет сейчас же за копейку продам.
Porque estou apenas brincando com palavras, sonhando com a minha cabeça, mas, na realidade, você sabe o que eu quero: que você fracasse, é isso! Eu quero paz. Eu venderia o mundo inteiro por um centavo se quisesse ficar em paz.
(Parte II, capítulo IX)
E talvez o sentimento mais miserável e repugnante que ele expressou foi a vaga superioridade que sentia, que o fazia desprezar os outros, ao mesmo tempo em que se sentia uma vítima:
Это была мука-мученская, беспрерывное невыносимое унижение от мысли, переходившей в беспрерывное и непосредственное ощущение того, что я муха, перед всем этим светом, гадкая, непотребная муха, - всех умнее, всех развитее, всех благороднее, - это уж само собою, - но беспрерывно всем уступающая муха, всеми униженная и всеми оскорбленная.
Era um tormento de agonia, uma humilhação contínua e insuportável pelo pensamento, que se transformou num sentimento contínuo e imediato de que eu era uma mosca, diante de todo este mundo, uma mosca vil e indecente - mais inteligente do que todos, mais desenvolvida do que todos, mais nobre do que todos - isso é óbvio - mas uma mosca constantemente inferior a todos, humilhada e insultada por todos. (em tradução minha)
(Parte II, capítulo I)
E, finalmente, ele se torna um niilista, um homem sem moral, sem ambição. Um homem incapaz de diferenciar o bem do mal. Um homem que deixou de ser homem:
Я потому и заговорил, что мне все хочется наверно узнать: бывают ли у других такие наслаждения? Я вам объясню: наслаждение было тут именно от слишком яркого сознания своего унижения; оттого, что уж сам чувствуешь, что до последней стены дошел; что и скверно это, но что и нельзя тому иначе быть; что уж нет тебе выхода, что уж никогда не сделаешься другим человеком; что если б даже и оставалось еще время и вера, чтоб переделаться во что-нибудь другое, то, наверно, сам бы не захотел переделываться; а захотел бы, так и тут бы ничего не сделал, потому что на самом-то деле и переделываться-то, может быть, не во что.
Foi por isso que comecei a falar, porque continuo querendo saber com certeza: os outros experimentam tais prazeres? Vou explicar: o prazer aqui vinha justamente de uma consciência vívida demais da própria humilhação; do fato de você mesmo já sentir que chegou ao limite; que é desagradável, mas que não pode ser de outra forma; que não há saída para você, que você nunca se tornará uma pessoa diferente; que mesmo que ainda houvesse tempo e fé para se transformar em outra coisa, você certamente não gostaria de mudar; e mesmo que quisesse, não faria nada a esse respeito, porque, na realidade, talvez não houvesse nada para se transformar. (Em tradução minha)
(Parte I, capítulo II)
Я не только злым, но даже и ничем не сумел сделаться:ни злым, ни добрым, ни подлецом. ни честным, ни героем, ни насекомым.
Não sou apenas mau, mas também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem honesto, nem herói, nem inseto. (Em tradução minha)
(Parte I, capítulo II)
Notas do Subterrâneo é uma obra que surpreende, diverte, desperta curiosidade, causa repulsa, faz com que você se identifique, aproxima e afasta da natureza humana ao mesmo tempo. É considerada uma das obras mais profundas sobre a psique humana e a neurose humana. Com certeza não é uma leitura “divertida”. É difícil de engolir emocionalmente, porque é muito cortante, íntimo e sem filtros. Mas é uma obra muito importante na literatura mundial, e se você quiser saber mais sobre esse fenômeno de ódio por si mesmo e autoengano, e como evitar essas tendências negativas, recomendo que a leia.
Somente tendo seu inimigo por perto você pode entendê-lo melhor e se tornar capaz de vencer essa luta — a luta com sua própria mente.
Главное, самому себе не лгите. Лгущий самому себе и собственную ложь свою слушающий до того доходит, что уж никакой правды ни в себе, ни кругом не различает, а стало быть входит в неуважение и к себе и к другим. Не уважая же никого, перестает любить, а чтобы, не имея любви, занять себя и развлечь, предается страстям и грубым сладостям, и доходит совсем до скотства в пороках своих, а все от беспрерывной лжи и людям и себе самому.
Acima de tudo, não minta para si mesmo. Aqueles que mentem para si mesmos e dão ouvidos às próprias mentiras chegam a tal ponto que não conseguem mais discernir nenhuma verdade, nem dentro de si nem ao seu redor, e assim caem no desrespeito por si mesmos e pelos outros. Não respeitando ninguém, deixam de amar e, para se ocuparem e se distrairem, carentes de amor, entregam-se a paixões e prazeres grosseiros, chegando à bestialidade em seus vícios, tudo por mentirem incessantemente aos outros e a si mesmos.
Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov (Livro II, Capítulo II, "СТАРЫЙ ШУТ", "O velho palhaço")
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