O apartamento ainda cheirava a corpo.
Corpo e cebola.
Deve haver algo de profundamente brasileiro nessa mistura — o perfume da carne e o cheiro da cozinha, como se o amor, no fim, fosse apenas uma refeição que a gente esqueceu de lavar a louça depois.
Abri a janela e a cidade entrou como um cachorro molhado: ruído, ar úmido, solidão. São Paulo nunca dorme, mas às vezes cochila com um olho aberto, vigiando a miséria dos outros.
A pia tinha pratos empilhados, duas taças, um garfo solitário e o pote de farofa. Aquela farofa que sobrou de ontem — ontem que já parecia uma vida inteira. Peguei o pote. Ainda estava morno da memória.
Não sei se alguém entende o que é acordar com restos.
Restos de alguém, de vinho, de desejo.
Tudo o que sobra tem uma honestidade que o prazer nunca alcança.
Tomei um gole de café frio. A boca ainda tinha o gosto de sal e ironia. Na mesa, um pedaço de papel com a letra dele:
“Volto quando a chuva parar.”
Chove há três dias.
No começo, eu achava bonito dormir com alguém que fala pouco. Agora acho perigoso. O silêncio dos outros é uma floresta: você entra achando que é sombra, mas sai coberta de musgo.
Toquei a colher dentro do pote. A farofa estava seca, dura, com aquele brilho de gordura que se nega a morrer.
Provei.
Era boa.
Tinha o gosto das coisas que se recusam a pedir desculpa.
A luz da manhã entrava torta, cortando o chão em faixas. Havia farelos espalhados — pequenas estrelas amarelas sobre o piso preto. Pensei em varrer. Não varri.
Varrer é apagar provas, e eu ainda precisava delas.
No rádio do vizinho tocava um sertanejo antigo. Alguém cantava que “ninguém é de ferro”. Discordei em silêncio: somos todos um pouco de ferro — enferrujados, cortantes, pesados.
Peguei o celular, abri o aplicativo de mensagens e não escrevi nada. O desejo é covarde às nove da manhã.
Abri a geladeira. Metade de uma garrafa de vinho, meio limão, o pote de farofa.
Trindade de quem vive só.
Sentei no chão. A cidade fazia barulho de ônibus e perdão. E pensei que talvez o amor fosse isso: o momento em que a gente olha o próprio resto e diz “ainda serve”.
A farofa, invisível sobre os dedos, parecia ouro pobre. E eu, como sempre, estava à altura do desperdício.
***
Ele tinha o hábito de acender o cigarro antes de vestir a calça, como se o corpo precisasse de nicotina para aceitar de volta a decência. Lembro disso porque ainda há cinza na beirada da pia, e o corpo dele, agora ausente, continua poluindo o ar da cozinha.
Disse que iria comprar pão. Mas não disse qual padaria, nem se voltava. Pão é a forma educada de sumir — alimenta a esperança enquanto esfria o afeto.
Passei os dedos pelo lençol amassado. Tinha o cheiro dele e da farofa. Sim, ele abriu o pote depois, rindo, dizendo que era “comida de gente feliz”. Eu não estava, mas comi. A felicidade é contagiosa por alguns minutos; depois vira indigestão.
Enquanto ele mastigava, falava de política, de traduções, de como o mundo estava cansado de gente que sente demais. Eu fingia ouvir, mas só observava a forma como os ombros dele se moviam quando mastigava. É estranho desejar alguém e, ao mesmo tempo, saber que não vai funcionar. O corpo grita “fica”, a lucidez cochicha “não compensa”.
A cama rangeu.
A cidade tossiu um trovão.
Ele me olhou com aquela expressão de quem não promete, apenas acontece.
Houve um toque — breve, morno, familiar — e o resto do diálogo foi substituído por respiração.
Não há como descrever o instante em que duas pessoas param de pensar. É a única hora em que o tempo respeita o corpo. Depois, tudo volta a ser relógio e culpa.
Quando acabou, ele riu, meio culpado, meio vitorioso, e disse:
— Você devia vender essa farofa. É melhor que terapia.
— A terapia é mais cara — respondi. — E menos gostosa.
Ficou um silêncio que não era constrangido, mas cansado. O tipo de silêncio que você embala, porque sabe que vai acabar logo.
Ele levantou, vestiu a calça, acendeu outro cigarro. Disse “já volto” e foi comprar pão. Três dias depois, ainda não voltou.
Abri a janela — essa janela sem vista que todo apartamento tem — e o cheiro da chuva entrou com cara de piada velha.
No fundo do pote, um restinho de farofa, um punhado mínimo de sal e gordura. Peguei com a ponta dos dedos. Era a prova material de que algo aconteceu. O resto é lembrança e digestão.
***
A casa amanheceu do mesmo jeito: pia suja, cheiro de cebola, farofa pela metade. Nenhum drama, só continuidade.
Descobri que a vida não termina — ela repete.
Passei a vassoura, mas os farelos teimaram em ficar. Eles brilham, minúsculos, entre as frestas do piso, como se o pó de ontem quisesse continuar morando comigo. Pensei em Clarice, aquela mania dela de achar sentido até em casca de banana. Pensei também em Bukowski, que diria “varre logo essa merda e abre outra garrafa”.
Entre os dois, escolhi observar.
É curioso o quanto o resto das coisas se parece com o resto das pessoas. Depois que alguém vai embora, sobra um pouco de tudo: um par de meias, uma frase solta, o reflexo no espelho. E a farofa — inevitável, democrática, nacional. Todo amor acaba com farofa no prato, no chão ou no coração.
Sentei no sofá e fiquei olhando a fumaça do café, o mesmo ritual de todos os dias. O tempo é o verdadeiro amante de quem vive só: chega sem ser chamado, faz o que quer e sai pela porta deixando a conta. A solidão, percebo, é um luxo que poucos sabem usar.
Ri sozinha.
O riso veio fácil, desses que saem porque o corpo se defende. Lembrei do que ele disse sobre terapia e pensei que talvez estivesse certo. A farofa tem algo de terapêutico: não julga, não consola, mas te ocupa a boca para não dizer besteira.
A cidade lá fora ronronava o mesmo caos. Um caminhão de gás tocava a música da infância, os cachorros latiam, alguém discutia por vaga de estacionamento. Tudo normal, como se a minha tragédia fosse uma piada interna do universo.
Peguei o pote e olhei contra a luz. Os grãos dourados pareciam suspensos no ar — poeira com dignidade. Foi aí que percebi que a farofa era invisível não por falta de cor, mas por excesso de costume. Ela estava em tudo: na pia, na pele, na memória. Como o amor quando ainda não aprendeu a morrer direito.
Talvez seja isso que resta da vida: o gosto leve e salgado das coisas que não voltam. O corpo esquece, a boca lembra.
E o mundo gira, mesmo que a gente ainda esteja sentado à mesa esperando o pão que nunca vem.
***
A tarde caiu do jeito que São Paulo sabe fazer: preguiçosa, encardida, com uma luz bege que não ilumina nem escurece. O rádio falou de trânsito e política; eu mexia a farofa na frigideira sem fogo, só pra ouvir o som. É preciso barulho pra fingir presença.
O apartamento parecia suspenso, meio fora do tempo. Pensei nele — ou em todos os “eles” que já passaram. Os nomes somem, mas o corpo lembra os gestos: a mão que acende o cigarro, o riso torto depois do gozo, o silêncio que sempre vem antes da porta bater. A cada lembrança, mais farelo.
Clarice sussurra: “o que permanece é o instante.” Bukowski responde: “o instante acaba em dois tragos.” Entre um e outro, estou eu — mulher, resto e testemunha.
Olhei para o prato e percebi que a farofa estava no ponto exato entre quente e fria, viva e morta. Como o amor quando já desistiu de doer, mas ainda não aprendeu a desaparecer.
Comi devagar, não de fome — de respeito.
Há rituais que merecem cerimônia, mesmo sem altar. A cada colherada, um pensamento doméstico: o coração é uma panela de ferro, o mundo uma mesa que nunca se limpa, e a gente, o tempero que sobra.
Lá fora, um trovão ensaiou aplausos.
Pensei que talvez fosse Deus aprovando meu cardápio sentimental. Ou só o trânsito comendo pneus na Marginal.
Terminei de comer, fechei o pote e senti uma calma absurda. A vida inteira cabe no intervalo entre o último gol9e e o próximo desejo. E o desejo — descobri — é invisível só pra quem ainda olha com fome de milagre.
Apaguei a luz, deixei a janela entreaberta.
A chuva voltou, teimosa, lavando o ar.
No escuro, a cidade cheirava a comida e arrependimento. E eu, pela primeira vez, me senti completa com o que restava: um corpo, uma lembrança e um pouco de farofa fria.
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Série SEXO E FAROFA
🥄 Crônicas do prazer, do ridículo e da lucidez paulistana.
Sexo passa. Farofa fica.
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