10/16/2025

O Único filho da puta no Brasil que traduz do mongol (e por que aprendi essa língua)


Ontem, no Threads, eu soltei um desabafo profissional que, pelo visto, acendeu a curiosidade de muita gente.

A cena era a seguinte: um cliente me manda um calhamaço de PDF em mongol para traduzir para o inglês. 61.000 palavras. Eu, provavelmente o único ser humano entre o Oiapoque e o Chuí que mexe com esse par linguístico específico, mando o orçamento: R$ 40.000.


A resposta veio rápida: o budget era de R$ 7.000.

Como eu disse na rede:

"Boa sorte com a MTPE [Pós-Edição de Tradução Automática] nesse par de idiomas."

A máquina ainda tropeça feio na complexidade do mongol.

Foi então que a sempre perspicaz Helen Valverde (@helendvalverde) comentou, espantada:

"Do MONGOL?? 😮 Achei é barato."

E depois, dei uma resposta que virou o estopim desta crônica:

"E se eu contar por que aprendi mongol..."

Ela, curiosa:

"Quero saber! Amor??"

Pois é, Helen. A história é bem melhor que um simples romance. É uma história de amor, sim, mas com a lógica.


O tédio do poliglota e a busca pelo Everest linguístico

Imagine um cara que, aos 49 anos, já havia domesticado mais de 20 idiomas. Um brasileiro, criado na cacofonia maravilhosa do português, acostumado às estruturas previsíveis das línguas latinas e germânicas. Eu era um hiperpoliglota, mas um hiperpoliglota entediado. Meu cérebro, viciado em decifrar códigos, ansiava por um desafio que fosse radical. Não queria apenas mais palavras; queria uma nova forma de pensar.

Foi quando resolvi procurar o meu Everest linguístico. Algo que não me desse uma única muleta. Nada de cognatos, nada de estruturas familiares. Eu queria um abismo gramatical para saltar.

E no fundo desse abismo, encontrei o mongol khalkha.


A fascinação por um mecanismo de relógio suíço gramatical

Não foi um amor à primeira vista, foi amor à primeira análise sintática. O mongol é uma obra de arte lógica e sonora.

Primeiro, há a harmonia vocálica. As vogais de uma palavra precisam ser todas de uma "família" (posteriores ou anteriores). É como uma composição musical onde cada nota deve estar na mesma escala. Meu ouvido de brasileiro, treinado no samba do português, teve de reaprender a escutar.

Depois, veio o fascínio pela aglutinação. Enquanto no português usamos preposições e auxiliares, o mongol constrói uma frase como se montasse uma molécula complexa. Você pega a raiz de uma palavra e vai encaixando sufixos, um atrás do outro, cada um com uma função gramatical específica. Sujeito, objeto, posse, tempo, modo... Tudo é anexado. É um sistema tão limpo e eficiente que beira a poesia matemática.

E, claro, o alfabeto cirílico foi só a porta de entrada. A curiosidade me levou ao alfabeto tradicional vertical, a escrita clássica que flui de cima para baixo, uma coluna de símbolos elegantes que é uma arte em si mesma.


O experimento dos 50 anos: C1 em 24 meses

Aos 50 — ou beirando essa idade — o mundo gosta de nos dizer que o cérebro já perdeu a plasticidade. Que aprender coisas novas é mais lento. Eu encarei o mongol como um experimento pessoal: será que uma mente madura, mas dedicada, pode não apenas aprender, mas dominar um dos sistemas linguísticos mais desafiadores do mundo?

Tratei como um projeto de engenharia cerebral. Mergulhei de cabeça. Foram 24 meses de estudo intenso, focado e deliberado. No final desse período, eu havia alcançado o nível C1(*). Foi a conquista intelectual mais orgulhosa e satisfatória da minha vida. Era a prova que eu procurava.


E o amor? O amor está na lógica.

Então, Helen, para responder sua pergunta: não, não foi um amor romântico por uma pessoa. Foi um amor pela lógica, pelo desafio, pela arquitetura pura de um idioma.

Foi o amor pela sensação de desvendar um quebra-cabeça que a maioria das pessoas nem sabe que existe. O amor por poder ler a poesia de G. Mend-Ooyo no original, sentindo o ritmo das estepes em cada harmonia vocálica. O amor por entender uma cultura não através de filtros, mas pela lente da sua própria língua.

Aos 54 anos, o mongol não é apenas mais um idioma na minha lista. É a minha conquista definitiva. É o meu Everest.

E é por isso que, quando um calhamaço de 61 mil palavras chega na minha mesa, o orçamento é salgado. Você não está pagando apenas pela tradução. Está pagando por uma década de dedicação a um dos desafios mais insanos que um poliglota pode encarar.

E, convenhamos, é um preço justo para quem é, com orgulho, o único "filho da puta" no Brasil que faz isso.

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(*) O nível C1 é um nível avançado de competência em um idioma, de acordo com o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (CEFR). Nesse nível, o indivíduo consegue compreender uma ampla gama de textos complexos, expressar-se com fluência e espontaneidade, utilizar o idioma de forma eficaz para fins acadêmicos e profissionais e produzir textos claros, bem estruturados e detalhados sobre temas complexos.

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