(Link para o conto: https://getinkspired.com/story/575044/v-spera)
Há contos que se lêem com prazer. Outros, com adrenalina. Véspera, de Natália Paz, exige ser lido com o corpo todo: pupilas dilatadas, respiração suspensa, mãos tensas na borda da cadeira ou da poltrona. É uma narrativa que sangra e arde — não só pela temática, mas pelo modo como sua autora domina o ritmo, o espaço e, sobretudo, o silêncio entre os tiros.
A história começa no meio de um colapso: Gregório chega baleado, Lorena o costura com linha de pesca embebida em vodca, e a pergunta que paira — “de onde veio o tiro?” — não é apenas literal. É também moral, afetiva, política. O que se segue é uma sinfonia de tensão, sexo, memória e traição costurada com frases afiadas e diálogos que ressoam como disparos.
Lorena: a anti-heroína definitiva
A protagonista é o grande trunfo do conto. Quando Lorena diz, entre sangue e luxúria, “Ou dominamos o mundo ou ele engole a gente”, não está apenas definindo seu pacto com Gregório — está estabelecendo a lógica do próprio texto. Ela não é boazinha, não busca redenção. É astuta, letal, magnética. E o melhor: a autora nunca nos pede que simpatizemos com ela. Lorena nos conquista pela inteligência, pela sensualidade instrumentalizada e pela brutalidade lúcida de quem já não separa sobrevivência de poder.
Um dos momentos mais impactantes é quando, diante do corpo do amante traidor, Lorena murmura “Você sempre foi um teimoso de merda”, deixando cair o revólver. A frase, aparentemente banal, carrega em si um oceano de mágoa contida e amor diluído em ódio. É esse tipo de detalhe — de escrita e atuação emocional — que eleva o texto.
Prosa cinematográfica, estrutura precisa
Natália Paz demonstra domínio técnico notável. Sua prosa é sensual sem ser gratuita, violenta sem ser vulgar. Ela escreve como quem filma com palavras: cada cena é visual, ritmada, intensamente física. As transições entre o presente e os flashbacks são fluídas, nunca artificiais — e sempre funcionais à construção dramática. Não há enfeite: tudo serve à tensão.
Há ecos de Quentin Tarantino, especialmente na violência estilizada e nos diálogos carregados de tensão sexual. Mas Véspera não é pastiche. É releitura autoral com sotaque latino e sangue quente. Uma espécie de Amores Perros com a pulsação de Cidade de Deus, mas com uma mulher no centro da guerra — e no controle do jogo.
O que poderia ser ajustado
Como toda crítica que se preze, vale uma pequena nota de ressalva: o conto talvez seja tão ambicioso em sua carga dramática que quase transborda o espaço do formato curto. São muitos elementos — PF, helicóptero, plano de fuga, dossiês, sexo tático, incêndio, duplo twist — e há momentos em que o leitor quase precisa parar para reorganizar as peças. Nada grave, mas um ajuste fino aqui e ali deixaria a curva dramática ainda mais precisa.
Além disso, certas metáforas simbólicas (a costura, por exemplo) são belíssimas na primeira aparição, mas poderiam ser um pouco mais econômicas ao retornarem — efeito de revisão mais do que de concepção.
Conclusão: um conto que queima bem depois da última linha
Véspera é um conto que não pede licença. Abre a porta com o pé, atira antes de perguntar e deixa fumaça no ar muito tempo depois da leitura. Lorena já nasce clássica. Gregório é trágico sem perder a dignidade. E Rui... bem, Rui é o canalha necessário para manter a roda girando.
O conto poderia ser um episódio impecável de uma série noir brasileira (fica a sugestão para produtores atentos). Mas, enquanto isso, é literatura viva, vibrante e com uma protagonista que parece ter sido desenhada com lâmina em vez de teclas.
Avaliação
(Narrativa eletrizante, mas um pouco saturada de eventos para o espaço de um conto)
Qualidade e Estilo: ★★★★★
(Prosa segura, sensorial, com domínio técnico e ritmo afiado)
Desenvolvimento de Personagem: ★★★★★
(Lorena é inesquecível; os secundários têm peso, voz e função)
Originalidade e Potencial: ★★★★☆
(A execução é brilhante; a estrutura básica do gênero é conhecida, mas revitalizada com frescor e inteligência)
Total: 4,5 estrelas de 5
Leitura indispensável para quem gosta de crime, tensão sexual e personagens que não devem nada a ninguém — muito menos ao leitor.
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