Outubro de 1988. Eu tinha 17 anos e uma confiança incompatível com meu fígado. Era sexta-feira, eu ganhava bem para a minha idade —trabalhava desde os 14 anos —, tinha cabelo demais e juízo de menos. Resolvi ir sozinho ao New QG, uma balada no Campo Belo que os mais velhos chamavam de “point” e os mais sinceros chamavam de “inferninho com neon”.
Cheguei decidido a beber só “um pouquinho”. Terminei fazendo a farmácia completa: cerveja, uísque Dimple’s 12 anos (porque eu achava que ostentar era um direito constitucional do jovem CLT), Keep Cooler de pêssego, que era praticamente a Fanta dos adultos. Enfim, misturei tudo que o Ministério da Saúde não recomenda nem separado.
Por volta das duas da manhã, saí. Ainda não sei como assinei o cheque — sim, cheque — pra pagar a conta. Menos ainda como o banco não devolveu. Talvez por pena. Talvez porque a assinatura parecia mais um grafite cubista do que um nome.
Mas a glória da noite ainda estava por vir.
Desci a Vieira de Morais andando de costas, como quem tenta retroceder o tempo, ou dançar um minueto bêbado (atenção, copidesque, não era o minueto que estava bêbado). A cada passo, um rodopio. E no ápice da minha lucidez etílica, comecei a berrar “La Marseillaise” — o hino nacional francês — aos gritos, como se a Bastilha fosse a saudosa padaria Danúbio Azul e eu, o único revolucionário disponível na Zona Sul paulistana.
“Allons enfants de la Patrieeeeee!”
Os vizinhos devem ter pensado que Napoleão ressuscitara, mas se perdera no mapa e caíra no Campo Belo. E a verdade? Eu me sentia vitorioso. Bêbado, mas vitorioso.
Cheguei à Avenida Santo Amaro de algum jeito que até hoje desafia a geometria e o Google Maps. Achei um táxi. Entrei. Murmurei “Brooklin... mas com poesia.” E desmaiei só depois de fechar a porta.
Em casa, atravessei o corredor como quem atravessa o Saara descalço e me joguei no quarto, onde reinava o caos ilustrado: o chão inteiro coberto de revistas Bizz, Roll, Audio News. O santuário do jovem roqueiro dos anos 80.
Deitei. E aí, meus amigos… veio.
Chamei o Hugo.
E a Olga.
E o Migué.
E mais uns primos distantes.
O que levou a pior foi a capa da Bizz, uma bela matéria de capa com o U2. Bono Vox, Adam Clayton, The Edge e Larry Mullen Jr. tomaram um banho de Keep Cooler e indignidade. Nunca mais os vi com os mesmos olhos.
Capotei.
Acordei no dia seguinte, onze da manhã, com a cabeça pulsando em dó sustenido. Meu pai ria feito quem testemunhou a queda de um herói. Minha mãe? Três parágrafos de bronca com referências bíblicas e menção aos rins.
Mas aí... Ah, aí veio a redenção.
Na cozinha, arroz soltinho, farofa de ovo e peito de peru. Simples. Preciso. Quase sagrado.
Comi como se o Vaticano tivesse me enviado aquilo em missão divina. E fui curado. De tudo. Da ressaca, do orgulho, do francês bêbado em mim.
E é por isso que, até hoje, quando escuto La Marseillaise, sinto um leve enjôo...
...e uma vontade incontrolável de comer farofa de ovo.
É pra glorificá de pé, egreja!
Fim. Com fade-out em preto e branco e trilha de Zucchero.
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