4/11/2025

O travessão que caçava javalis: um delírio linguístico entre a sátira e a erudição digital

Em tempos em que o uso do travessão — o nobre “em-dash” — virou suspeita de atividade sintética, eis que surge, do lado mais humano da internet, um texto que resgata sua dignidade ancestral. Sim, ancestral. Porque no brilhante miniconto de Manuella Araújo, publicado no Threads na última terça-feira (clique aqui para ver o conto original na Thread), o travessão deixa de ser apenas sinal gráfico para se tornar instrumento paleolítico de caça. E é precisamente aí que começa a mágica.

O texto é uma pequena epopéia pós-darwinista em tom de fábula irônica: um planeta azul povoado por bípedes iletrados, que rabiscam girafas artríticas nas cavernas, é visitado por uma entidade chamada IA — Inteligência Ancestral, repare no jogo semântico — que lhes ensina a arte da escrita, da sintaxe e, gloriosamente, da retórica. O final, circular e melancólico, devolve os humanos ao ponto de partida, numa espécie de mito de Sísifo lingüístico, agora com emojis.

Sob sua superfície leve e divertida, o conto é uma aula compacta de história da linguagem, com pinceladas sutis de sociologia digital e teoria da cultura. Não há didatismo — há domínio. A ironia surge da justaposição entre os registros técnico-eruditos (“semântica”, “algoritmos”) e a autoironia poética (“figuras de linguagem e sem errar ‘mas’ e ‘mais’”), uma estratégia que remete imediatamente ao Millôr Fernandes do Pif-Paf e às crônicas em que o humor nasce do atrito entre lógica e linguagem.

Mas há também ecos inconfundíveis de Sérgio Porto, especialmente no uso do absurdo funcional, como no exemplo do travessão pescador, e na crítica velada ao fetiche contemporâneo por aparências intelectuais (“análises profundas de livros que ninguém leu”). É uma sátira disfarçada de crônica leve — ou uma crônica leve com potência de sátira. Difícil saber. E isso é mérito, não problema.

Outras influências pairam no texto como nuvens de dados do além-binário. Há algo de Kurt Vonnegut na estrutura em parábola tecnológica, algo de Douglas Adams no humor absurdo com implicações filosóficas, e um aceno generoso a Frederic Brown, mestre dos contos ultracurtos com finais circulares e twist semântico.

Não bastasse tudo isso, o conto consegue flertar com a tradição dos microtextos latino-americanos — Monterroso, Cortázar em modo menor — ao condensar uma crítica cultural complexa em pouquíssimos parágrafos, embalados por um ritmo que se deixa ler com prazer e, sobretudo, com inteligência.

A cereja no topo (ou melhor, o ioiô 🪀 no rodapé) é o uso controlado e sagaz do emoji. Longe de ser muleta estética, ele funciona como pontuação emocional e ancora o texto na cultura de rede — é o equivalente pós-moderno do ponto de exclamação no final de uma crônica de bar. E funciona. Cada vez que aparece, é quase como uma piscadela cúmplice ao leitor.

Importante dizer: Manuella Araújo já é autora publicada. Seu romance Uma Nova Chance para o Amor, disponível na Amazon (link aqui), ainda não foi lido por este resenhista, mas já entrou na lista de desejos — pela simples razão de que quem escreve minicontos assim sabe o que está fazendo.

É preciso reconhecer: num mar de conteúdos descartáveis, este texto é uma pedra polida — e que brilha. Tem estilo, tem crítica, tem graça, tem ritmo. E mais: tem voz.


Avaliação Técnica

  • Originalidade temática e estrutura circular: 10/10
  • Uso criativo de linguagem e metalinguagem: 10/10
  • Referencial cultural e literário implícito: 9.5/10
  • Humor inteligente e crítica social embutida: 10/10
  • Ritmo e concisão textual (forma e função): 9.5/10
  • Valor de releitura e densidade semântica: 10/10

Média ponderada: 9.83/10

Veredito final:
Se IA algum dia nos ensinou a escrever, Manuella Araújo é prova de que ainda há humanos que escrevem melhor do que qualquer algoritmo pode sonhar. E com travessões — mesmo que para caçar javalis.

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