Todo mundo tem aquela lista de “características ideais” para um relacionamento: bom humor, inteligência, química, respeito, saber usar vírgula… Pois bem, talvez você nunca tenha pensado nisso, mas vou te dar um argumento sólido — e fundamentado — para considerar algo fora do radar: namore um tradutor.
Sério. De coração, corpo e dicionário em punho. Aqui vão os motivos, com direito a exemplos empíricos e pequenas digressões gramaticais, claro.
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1. Tradutores transformam o mundo em linguagem — inclusive o seu. Você está ali, tentando explicar o que sente, meio confuso, meio tonto, e a criatura já decodificou, passou por um processo de localização afetiva e devolveu a frase com vocativo, coesão e afeto. Tradutor sabe que às vezes o que você quis dizer é mais importante do que o que você disse. E isso, meu caro leitor, é o alicerce da comunicação amorosa.
2. Um namoro bilíngue (ou trilíngue, ou quatrilíngue...) tem suas vantagens.
Enquanto a maioria dos casais briga pra escolher o filme, vocês estarão assistindo aquele drama iraniano legendado em sueco com um sorriso nos lábios — e sem precisar ativar legenda. O tradutor já tá traduzindo mentalmente, fazendo comparação com a versão do Festival de Locarno e preparando um comentário sobre as nuances socioculturais do diálogo.
3. Cultura geral é o mínimo. Tradutor precisa entender o mundo pra traduzir o mundo. Isso inclui saber que “coroa” pode ser uma moeda, uma rainha ou seu pai. E que “ficar de quatro” pode significar submissão ou alongamento, dependendo do contexto (e do quarto). Ou seja: um tradutor vai te fazer rir, pensar e desejar. Às vezes, tudo ao mesmo tempo.
4. Discussões são melhores com etimologia. A briga começa. Você diz que ele/ela não te entende. O tradutor responde com a origem grega de “compreensão”, te explica a metáfora cognitiva por trás da expressão e termina com uma citação de Horácio. Você até esquece o motivo da briga. E beija na hora.
5. O beijo, aliás, é poliglota. Não tem língua que esse povo não domine. Inclusive, a sua. É um beijo que sabe onde encostar, quando pausar, quando acelerar. Já viu alguém fazer tradução simultânea com a boca? Pois é.
6. Tradutores transformam qualquer trivialidade em lirismo. Você acorda e encontra um bilhete na mesa: “Amanheci pensando em ti. O céu hoje está do mesmo azul-cobalto do poema que te prometi.”
Você: derretido(a).
O bilhete: foi escrito às 2h da manhã, entre a revisão de um manual de máquina agrícola e a tradução de um soneto obscuro do século XVII. Isso é amor com prazo de entrega.
7. Eles ouvem nas entrelinhas. Tradutor é treinado para perceber nuances. Um suspiro antes de uma frase. Um “tá tudo bem” dito rápido demais. Um “aham” sem vogal aberta. A gente lê contexto como quem lê poesia: com atenção, com corpo, com silêncio. E reage com cuidado — ou com fogo, se for o caso.
8. Tradutores são sensuais por natureza. Porque o ofício já é íntimo. Lidar com sentido, tom, intenção, corpo do texto... é quase uma forma de preliminar linguística. E quando eles se dedicam a você, fazem com a mesma entrega obsessiva com que buscam a palavra perfeita.
9. Revisam seu TCC. E ainda formatam segundo a ABNT, sem reclamar. (Só não abuse, a menos que o relacionamento já inclua café da manhã na cama e senha do streaming.)
10. Por fim, um bônus: amor com legenda. Namorar um tradutor é ter a certeza de que, mesmo quando o mundo parece intraduzível, alguém ali vai tentar colocar sentido no caos — com humor, cuidado e talvez um bom vinho.
Então, da próxima vez que você cruzar com um tradutor, não pergunte só "o que você traduz?" Pergunte: "como você me traduziria?"
Spoiler: a resposta vai te deixar de ponto e vírgula pra cima.
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Andy Schmid é tradutor, escritor e defensor da vírgula como ferramenta afetiva. Acredita que nenhuma palavra é neutra e que o melhor tipo de amor é aquele bem pontuado.
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