Hoje, vamos brincar de exercício de estilo. A proposta é simples — e deliciosamente literária: pegar uma crônica contemporânea e recontá-la à maneira de um clássico. O ponto de partida é o texto de
Aria Zênite, autora que aprendi a admirar, dona de um talento literário absurdamente grande. O link do início do texto no Threads é
https://www.threads.com/@rainhadoimortal/post/DJmwaNAPLIH?xmt=AQF0xfW8Z0-NNqha79FuFLppb7akh5_lx9DwcYFb7NzcCg.
Nele, acompanhamos o cotidiano silenciosamente trágico de Helena, uma mulher engolida pelas expectativas alheias, até que, enfim, ousa dizer “não”.
A partir dessa premissa, propomos uma releitura à moda de Anton Tchekhov, mais especificamente de seu conto "A Morte do Funcionário". A graça do exercício está em deslocar o enredo moderno para a estética da Rússia czarista, com seus personagens humilhados, tragicamente passivos, e finais que nos arrancam um sorriso nervoso — ou um suspiro de resignação.
Vamos ver o que acontece quando Helena vira Ivan, e o escritório se transforma num gabinete imperial?
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A Última Compreensão de Ilyá Afanássievitch
(Petersburgo, inverno de 1864)
Ilyá Afanássievitch estava na cozinha escura do Ministério de Assuntos Internos, acendendo com dificuldade o samovar — um velho, de cobre, que cuspia vapor como um cavalo ferido — enquanto escutava, quase sem escutar, as lamúrias de Sergei Dmitrievitch, seu colega de repartição, que falava com veemência sobre a febre do filho e o telhado que cedia com o peso da neve.
Ilyá baixava a cabeça. Sempre baixava. Concordava, mesmo sem ouvir. Era-lhe mais fácil assim.
Seus dedos, finos e esbranquiçados do frio, apertavam a colher de açúcar como se pudessem esmagar o tempo. Pensava em quantas horas extras teria de cumprir para salvar, mais uma vez, o nome da seção — como nas outras vezes em que Sergei deixara tudo para o último instante.
— Tu és um santo, Ilyá Afanássievitch. Um verdadeiro servo de Cristo! — disse Sergei, batendo-lhe no ombro com familiaridade, antes de sair com o chá que Ilyá havia preparado. Ilyá permaneceu, olhando para o vapor que se dissipava.
No bolso do paletó, três bilhetes amarrotados enviados ao seu velho amigo Mikhail Alexeievitch — um convite tímido para jantar naquela noite. Aniversário de seus trinta anos. Nenhuma resposta. Nenhuma promessa. Só silêncio.
Voltou à sua escrivaninha. Cruzou com Rodion Vasilievitch, que lhe devia oitenta rublos desde setembro — valor emprestado para consertar o trenó que não usara nem duas vezes. Agora desviava o olhar, como se o reconhecimento da dívida lhe consumisse o fígado.
Sentado, Ilyá abriu os memorandos. Cinco documentos carimbados com urgência, todos entregues após o horário estipulado pelo regulamento ministerial — e três deles sem qualquer relação com suas obrigações.
Mas ele sabia.
“Tu escreves tão depressa, com tanta clareza, Afanássievitch”, diziam-lhe os chefes.
Ou seja: “Faz tu.”
— Reunião geral em dez minutos — murmurou Piotr Arkadievitch, o subdiretor, passando pela repartição sem olhar para nenhum deles, com a pressa de quem sabe que nada o toca.
Ilyá recolheu suas notas. Tinha feito sozinho o relatório sobre as propostas fiscais para as novas províncias do Império. Trinta e seis páginas de cálculos. Quinze noites sem descanso, enquanto os demais iam ao teatro, à vodca, às mulheres.
Na sala de reuniões, sentou-se no banco mais distante da lareira, onde o frio ainda resistia.
Piotr anunciou:
— Aleksandr Nikolaevitch irá apresentar o projeto destinado à nova comissão imperial.
Ilyá tremeu.
Seu projeto. O mesmo ao qual Aleksandr contribuíra com meia página e um gráfico copiado de relatórios anteriores.
Observou Aleksandr apresentar, com desembaraço e confiança, os dados que ele próprio compilara à exaustão.
— Brilhante, Nikolaevitch — disse Piotr. — Vê-se aqui um verdadeiro talento administrativo, digno dos novos tempos que Sua Majestade, o czar Alexandre II, deseja fomentar.
Aplausos.
Aleksandr, condescendente, virou-se:
— Naturalmente, Ilyá Afanássievitch ajudou um pouco...
Silêncio.
Ninguém pediu sua palavra. Nem um gesto. Nem um olhar.
Dentro dele, uma voz sussurrava:
“Ele precisa mais do que tu. E tu compreendes. Tu sempre compreendes.”
No lavatório do porão, Ilyá fitou o espelho ovalado — rachado desde o verão anterior.
Ali estava ele: as pálpebras fundas, o rosto cinzento, a boca trêmula. Aquele que dissera “sim” por medo do “não”.
Na manhã seguinte, chegou antes do sol. Separou, com método e precisão, duas pilhas de documentos: os seus, e os dos outros.
A segunda pilha era enorme.
Descomunal.
Como um peso que lhe empurrava o coração contra as costelas.
Às 8h34, Andrei Petrovitch, o secretário do vice-ministro, surgiu com um maço de papéis atado por fita vermelha.
— Ilyá Afanássievitch, meu caro, preciso que revises esses contratos ainda hoje. Tu entendes, não é? Tenho a recepção no Palácio da Tauride...
Ilyá o olhou. Seus olhos estavam estranhos — molhados, mas firmes.
E disse:
— Não.
Uma só palavra. Baixa. Definitiva.
Andrei recuou.
— Como?
— Esses contratos são vossa responsabilidade, Petrovitch. Não minha.
— Sempre ajudas...
— Por isso mesmo. Agora, basta.
Pela primeira vez, Ilyá ficou de pé diante de alguém. E não tremia.
— Se puder ajudar, que seja dentro da razão. Mas não carrego mais a carga de ninguém, enquanto me chamam de “modesto” e entregam louros a outros.
Andrei apertou os papéis contra o peito.
— Pensei que fôssemos todos servidores do Império...
— Servidores, sim. Escravos — não.
Voltou à cadeira. E sentou-se.
As mãos já não tremiam, mas havia algo estranho no peito. Uma dor seca. Pequena, mas constante. Como se o coração lutasse contra uma mão invisível que o apertava.
Naquela noite, caminhou sozinho pela margem do Neva. A neve caía sobre seu chapéu velho. Pensava em tudo e em nada.
Em casa, recusou o jantar. Não havia fome.
Deitou-se ainda com a sobrecasaca, como se apenas quisesse repousar por instantes.
E então sussurrou:
— Eu compreendo... sempre compreendi...
Fechou os olhos.
E morreu.
Na manhã seguinte, o zelador encontrou-o deitado, sereno. Disse-se que fora de “exaustão”.
No ministério, todos pareciam consternados.
— Um funcionário devotado — comentou Piotr Arkadievitch. — O czar precisa de homens assim... discretos, obedientes.
— Uma pena — disse Aleksandr. — Afanássievitch era tão útil.
Rodion herdou sua escrivaninha. Sergei foi dispensado do relatório daquele mês.
Andrei achou alguém mais jovem para revisar seus contratos.
E Ilyá Afanássievitch?
Não foi mencionado novamente.