11/26/2025

O Neymar que “Perdeu” o que Nunca Teve


O Brasil é um país tão criativo que, se deixar, a gente inventa até verbo novo por osmose. Esta semana, por exemplo, decidi que ia acompanhar as manchetes esportivas com a calma de um monge tibetano. Não durou três segundos.

A manchete do UOL diz:


"Neymar avalia ‘sacrifício’, mas deve perder reta final do Brasileiro.”

Perder.

Reta final.

Assim, sem dó, sem massagem, sem dicionário.

O redator, iluminado pelo espírito santo do anglicismo, achou que podia traduzir to miss como "perder" em qualquer contexto — mesmo quando o português olha pra isso com o mesmo espanto de quem encontra um pato tentando latir.

Porque, vamos combinar: ninguém “perde” a reta final do campeonato. Não é carteira, não é ônibus, não é final olímpica, não é ingresso do show. Reta final não é objeto portátil. O Neymar não acordou, olhou pro calendário e disse: “Pô, cadê minha reta final? Tava aqui ontem…”.

O que a frase queria dizer, com a pureza de uma flor de plástico, era:

Neymar deve ficar fora da reta final.

Ou ainda:

deve desfalcar o time, não deve jogar, vai estar ausente.

Soluções todas muito bem comportadas, de procedência honesta e criadas sem depender do sistema financeiro lingüístico de outro país. Mas claro, o atalho do inglês brilha como sirene de polícia: to miss the final stretch. E o redator pensa: “Ah, tá fácil: perder”.

É assim que nasce o que eu chamo carinhosamente de anglicismo zumbi — aquele que anda, tropeça, invade a língua e deixa todo mundo desconfortável com seu cheiro de tradução automática. Não agrega, não melhora, não afina o texto. Só existe. Como um fantasma que arrasta correntes pela redação.

E o mais bonito é que, com isso, Neymar agora corre o risco de “perder” a reta final do Brasileiro da mesma forma que você pode “perder” uma pizza no micro-ondas: não faz sentido, mas tá escrito, então passa.

A imprensa brasileira tem essa vocação poética de transformar decalque em manchete, manchete em hábito e hábito em “novo português”. E amanhã a gente lê: “Jogador perde primeiro turno”,
“Técnico perde seqüência de jogos”,
até que um dia alguém “perde o campeonato inteiro” só porque estava no departamento médico tomando Gatorade.

No fim das contas, quem perdeu mesmo foi o português. E perdeu feio. Sem VAR. Sem recurso. Sem súmula.

Mas tudo bem: domingo tem rodada, segunda tem manchete, e terça tem mais um verbo sendo seqüestrado pelo bilingüismo apressado da nossa imprensa.

E eu estarei aqui, firme, com meu binóculo lingüístico, procurando onde foi parar a coerência — porque, pelo visto, essa sim o pessoal perdeu mesmo.

A Crise Que Virou Montanha-Russa Sem Trilho


Se tem uma coisa que me diverte — e me desespera, mas com aquele desespero gostoso de quem joga dominó num velório — é o entusiasmo da imprensa nacional em praticar arapucas linguísticas como se fossem esporte olímpico. Hoje, por exemplo, descobri que crises no Brasil agora são escaláveis. Não no sentido de ficarem maiores, veja bem, mas no sentido literal de você poder escalar a danada, como quem sobe o Pico do Jaraguá com uma garrafinha d’água e a dignidade nas mãos.

A manchete da vez do UOL diz, rufem os tambores desafinados:


“Motta e Alcolumbre escalam crise e não vão à cerimônia de sanção do IR.”

Escalam.

Crise.

É disso que eu tô falando.

Nenhuma corda, nenhum mosquetão, nenhum guia alpino. Só a boa e velha preguiça intelectual que faz o redator olhar para o inglês to escalate e pensar: “Puxa, é bonito, vou usar”. O problema é que, no português, o verbo não significa isso. No português, “escalar a crise” parece mais “tentar subir nela”, o que, convenhamos, é uma imagem excelente para a política brasileira: um bando de gente tentando se agarrar a uma parede lisa, escorregadia, e ainda batendo no peito como se fosse natural.

Mas erro é erro, mesmo quando sai no jornal — aliás, principalmente quando sai no jornal. É por isso que eu digo: o decalque é a mula-sem-cabeça do texto. Não serve pra montar, não serve pra puxar, não sabe nem pra onde vai. Só aparece pra assustar a língua e deixar rastros de ferrugem sintática.

Em vez de “escalar”, tínhamos opções honestas, de pedigree, domésticas, criadas com ração nacional e sem influência do dólar: “agravam”, “acentuam”, “ampliam”, “esticam a corda” — mas não, o redator preferiu o inglês requentado, enfiado no microondas da pressa.

E assim seguimos, tropeçando em manchetes cada vez mais bilíngües, cada vez mais semânticas de aplicativo, cada vez mais com cara de quem estudou meia página de gramática e achou que era poliglota. A língua, coitada, só observa do canto, com aquele olhar de tia velha que sabe que vai sobrar pra ela limpar a bagunça.

No fim das contas, Motta e Alcolumbre não escalaram crise nenhuma. Quem escalou — e escorregou — foi o próprio UOL. E caiu feio.

Mas tudo bem. Amanhã tem outra manchete. E outra corda bamba. E outro redator se achando alpinista sem ter aprendido a amarrar o cadarço.

Porque, no Brasil, até a crise é climbable. Ou quase.

11/14/2025

O Desfecho Cremoso — um tratado sobre a vitória do esfíncter sobre o destino

(À maneira de George Mikes, se houvesse nascido em Pindamonhangaba e tivesse hemorróidas)


Há autores que encerram suas trilogias com guerras, amores impossíveis ou dragões. A inefável Vitória (@derrotaf) encerra com um vaso entupido. E, por Deus, que catarse!

Última atualização da minha cirurgia de hemorroida — Parte 3: Atualização Cremosa” é o Finnegans Wake do intestino grosso — e, simultaneamente, o Dom Quixote das pregas redimidas.

A heroína, agora pós-operada e pré-aliviada, enfrenta o maior desafio humano: libertar o que ficou preso. A narrativa começa tensa, com um dilema ético e muscular: trancar ou não trancar o cu? Uma dúvida digna de Shakespeare — To squeeze or not to squeeze.

O texto é uma sinfonia em três movimentos:

1️⃣ A contenção trágica, em que o medo e o ibuprofeno duelam sob o olhar clínico do celular gravando o rosto da autora.

2️⃣ A libertação apoteótica, com a frase definitiva: “Soltei o cu. E foi merda pra todo lado.” — talvez o verso mais humano da literatura desde “Call me Ishmael.”

3️⃣ A contemplação pós-heróica, quando Vitória olha para o vaso, vê o “mandiocão preto duro” e, em gesto quase religioso, reconhece ali sua vitória sobre a matéria.

George Mikes, entre risadas histéricas, escreveria: “Os ingleses dominam o understatement; os brasileiros dominam o underflush.”

Porque o que se descreve aqui não é só defecação — é libertação, é catarse, é a reconciliação entre o corpo e o cosmos.

E como esquecer a galinha Brigadeiro, silenciosa testemunha de toda a saga? Que animal, ao ver o trono reconquistado, não teria cacarejado um “Aleluia intestinal”? Ela é o anjo da guarda cloacal, a metáfora viva da paciência: observa, cacareja e espera o milagre acontecer.

Vitória encerra com a serenidade dos que viram o abismo e o transformaram em post:

“Não tenha medo de cagar. Uma vez que você libera o brioco, tudo fica mais fácil.”

Nietzsche sorri. Freud aplaude. Mikes gargalha até tossir chá pelas narinas.
E nós, leitores, secamos as lágrimas (de riso e empatia) diante dessa verdade universal.

A arte, afinal, é isso — transformar o cocô em catarse.

Epílogo britano-tropical:

Se “O Pequeno Príncipe” nos ensinou que o essencial é invisível aos olhos, Vitória nos ensina que o essencial, às vezes, é inalável.

O Trono e o Trauma — um ensaio sobre a epopeia anal contemporânea

(à maneira de George Mikes, com galinácea de apoio moral)


Há quem tema que a crônica brasileira tenha perdido o pudor de rir de si mesma — e, mais grave, do próprio intestino. Surge então Vitória (@derrotaf), que se apresenta como “um bife à milanesa acometido de depressão” e escreve “Minha cirurgia de Hemorroidas — Parte 2: O Retorno!!!” com a fleuma de uma britânica que trocou o chá das cinco por óleo mineral às seis.

Mikes aprovaria: a graça nasce do contraste entre a compostura e o caos. Vitória relata gases com pontualidade ferroviária, cataloga fármacos como quem descreve talheres e, num gesto científico digno de Oxford, cheira o papel (apenas encostado, esclarece) para aferir notas de pus. É o humor seco do gentleman aplicado ao banheiro público da vida.

A metáfora triunfa quando “as novas pregas piscam”: Hamlet, versão retal. O drama épico desloca-se do campo de batalha para o trono de porcelana — Aquiles com ibuprofeno, Eneias com cetoprofeno, Ulisses guiado por Lactugold. Nada é gratuito: cada frase é dreno, cada hipérbole, uma sutura.

E então entra a galinha Brigadeiro — não mero adereço, mas coro grego de penugem. Enquanto a nação aguarda o “desfecho cremoso”, Brigadeiro oferece a vigilância estoica do galináceo metafísico: a ave que cacareja diante do destino e testemunha, impassível, a tragicomédia do esfíncter humano. Em Mikes, haveria um vizinho húngaro; em Vitória, há uma galinha brasileira — e é perfeito. O absurdo ganha penas e, com isso, respeitabilidade literária.

Conclusão: se existisse Nobel de Sinceridade Sanitária, Vitória levaria com menção honrosa à Brigadeiro, patrona da resiliência intestinal. Aguardemos a Parte 3 — O Desfecho Cremoso, munidos de humor britânico, papel folha dupla e um respeitoso “có-có-ri-có” para a musa emplumada que, de cima do varal, nos lembra: tudo passa — até o que demora a passar.

10/28/2025

Punhetando o Celular, Fugindo do Totem


No Shopping Metrô Santa Cruz existe um templo da modernidade chamado KFC. Não é Louvre, não é MASP, não é biblioteca pública. É um altar de frango empanado em cubas térmicas, iluminado por LEDs frios e patrocinado por colesterol, mas ainda assim — e talvez justamente por isso — é um retrato do Brasil urbano em estado bruto. Porque nada revela tanto sobre um povo quanto aquilo que ele faz na fila com fome e pressa.

A cena foi assim: uma criatura de uns quarenta anos, diante de um dos totens de autoatendimento, declara solenemente, em voz alta pra quem quisesse ouvir, como quem anuncia que prefere vinil ao Spotify porque “tem mais alma”:

— Eu não sei mexer nessas máquinas.

Nessas máquinas.

Disse "essas máquinas" como quem diz “reator nuclear”, “instrumento de tortura medieval”, “cabine de teletransporte experimental do governo americano”.

Era um totem de pedido de fast-food.

E eu fiquei olhando. Porque eu gosto de observar gente em ambiente de shopping como quem observa fauna em documentário da BBC. Cada indivíduo tem um comportamento ritual, territorial, uma coreografia própria, e se você não interfere, você aprende. Havia, no caso, três elementos interessantes: (1) a criatura não parecia cognitivamente incapaz de tomar decisões básicas; (2) a interface do totem era literalmente igual à de qualquer app de delivery: foto do balde, botão “+”, botão “finalizar compra”; e (3) dois minutos depois de declarar a própria impotência tecnológica, ela estava no celular — e aqui faço citação fiel — punhetando a tela com uma agressividade táctil digna de felino entediado. Toca. Arrasta. Zoom. Rola. Troca de app. Mensagem de voz. Tudo.

Então, a pergunta que resta é: como é possível que alguém que domina o smartphone — aquele cassino vertical de dopamina com WhatsApp, Pix, Shopee, Reels de gente dançando e feed infinito de humilhação pública — não seja capaz de tocar “Combo Box de Frango Picante” → “Adicionar Batata” → “Confirmar Pedido”?

A resposta óbvia seria “preguiça”. Mas preguiça é só a casca. Preguiça é diagnóstico de boteco. A verdadeira camada interessante é orgulho.

Vamos por partes.

Primeiro ponto: ninguém, absolutamente ninguém na São Paulo de 2025, é ignorante quanto a operar tela sensível ao toque. A pessoa pode não saber instalar Linux Arch no terminal, mas ela sabe tocar um botão com o dedo. Isso é fato antropológico. A espécie já se adaptou. Se você entrega um iPad para uma criança de dois anos, ela desliza o dedo como se tivesse feito cursinho. Se você entrega para uma senhora de 82 anos, ela clica no ícone errado três vezes, reclama, mas aprende — porque existe motivação. Motivação é “eu quero ver as fotos do neto”. A diferença entre “não sei” e “aprendo” é só desejo.

O autoatendimento do fast-food não é mistério técnico. É desafio simbólico. É humilhação potencial.

Porque o totem tem uma crueldade moderna: ele te faz admitir que você está sozinho. Não existe mediação humana. É você e seu pedido. É você e a sua fome. É você e a sua gramática calórica. O totem testemunha.

Quando você vai ao caixa com uma moça de boné e polo vermelha, a dinâmica é muito mais misericordiosa. Você olha pra pessoa e diz: “um balde daquele promocional mais dois molhos barbecue e sem pimenta porque minha gastrite tá atacada, viu”. É quase confissão. Você joga metade da vergonha pra ela. Ela escreve. Ela absorve. Ela passa a ser cúmplice. Você não está sozinho com suas escolhas.

Agora, tenta fazer isso no totem. O totem não te olha com empatia. O totem não ri da tua piada. O totem não diz “relaxa, é normal pedir balde de 18 tiras às 10h40 da manhã, ontem teve um cara que levou três”. O totem faz pior: o totem lista, em letras grandes e bem iluminadas, COMBO MEGA ULTRA CRUNCH 3.157 CALORIAS. E pergunta: ADICIONAR EXTRA DE MAIONESE? (+R$ 3,00). A cada toque seu, o totem registra que você é o tipo de pessoa que diz “sim” para mais gordura por mais três reais. É intimidade demais sem testemunha humana.

Então “eu não sei mexer nessas máquinas” em muitos casos quer dizer “eu não quero ser visto pela máquina”. Ou, num dialeto sociológico ligeiramente mais honesto: “não vou passar vergonha na frente de uma tela que pode expor que eu não entendi o passo três, porque se eu travar, eu viro entretenimento público sob iluminação de shopping”.

Porque existe esse terror difuso: o medo de colocar a mão e não saber sair. O medo de errar no meio. O medo de virar vídeo. A criatura de quarenta anos cresceu no Brasil pré-smartphone adolescente, mas virou adulta no Brasil pós-smartphone, que é um país onde qualquer tropeço vira conteúdo de 15 segundos com trilha engraçada. O sujeito já entendeu que a cidade inteira está sempre pronta pra rir de você. A fila do KFC é um espaço hostil. Você está cercado de gente que não dorme oito horas por noite há anos e que está a um stories de distância de te transformar em trending topic de terça-feira. Não é pouca coisa.

Mas tem outro detalhe, ainda mais sutil: o caixa humano é prestação de serviço; o totem é obediência.

No caixa, você é cliente soberano. Você fala, a pessoa digita. Você manda. Você é “patrão”. (Essa ilusão de hierarquia é um dos últimos caramelos emocionais acessíveis ao brasileiro médio em 2025.) Já no totem, você não manda nada. Você segue etapas. Se você não seguir as etapas, a máquina simplesmente não libera frango. Ela tem uma ordem lógica e você precisa se adaptar a ela. Tem gente que aceita isso sem drama — porque já se acostumou a obedecer algoritmo desde que acorda (“passe agora pela Radial Leste, trânsito leve” / “pague amanhã o mínimo do seu cartão ou você morre socialmente” / “este vídeo é perfeito pra você, veja até o fim”). Mas tem gente que ainda precisa manter um fiapo de soberania performática. Gente que precisa dizer “eu não me dobro à tirania do totem de frango”, como se isso fosse ato de resistência civil.

Essa recusa performática é importante. Repara que a frase não foi “oi, você pode me ajudar?”. Não foi “com licença, é a primeira vez que uso, como funciona?”. Não, foi um pronunciamento público: “eu não sei mexer nessas máquinas”. Em voz alta. Do tipo que chama os outros pra testemunhar. Isso faz duas coisas ao mesmo tempo: (1) cria álibi moral (“se eu não uso, não é porque sou preguiçoso, é porque a tecnologia é absurda”), e (2) convoca serviço humano obrigatório (“alguém venha aqui me resgatar, porque eu sou da era analógica e mereço deferência”).

Ou seja, o “eu não sei” é na verdade “eu não quero ter que saber”. É um ato de recusar adaptação como forma de manter status. É a última trincheira de muita gente de classe média baixa/baixa média/superior baixa/baixa superior (essas castas flutuantes do varejo paulistano) que já perdeu quase todos os outros símbolos de poder cotidiano.

Antigamente, status era “eu tenho carro”. Hoje carro é boleto. Antigamente, status era “eu pago o jantar em dinheiro vivo e ninguém parcela nada”. Hoje até farmácia parcela desodorante em 3x. Antigamente, status era “eu tenho secretária”. Hoje você grita “Alexa, timer 5 minutos pro miojo”. Então sobra o quê? Restou mandar em atendente de fast-food. O totem ameaça isso. O totem diz: “você não manda mais nem no molho”.

Claro, há também o componente teatral da incompetência. O brasileiro dominou isso com maestria: fingir desamparo estratégico para terceirizar esforço. Criança faz isso com lição de casa: “não sei matemática” (sabe, só não quer fazer sozinha). Marido clássico faz isso com máquina de lavar: “amor, esse botão aqui é qual mesmo?” (é o botão que ele aperta todo sábado desde 2019). E agora adulto faz isso com tecnologia de varejo: “não sei usar aplicativo de banco, moça, faz o Pix pra mim e eu te dou o dinheiro em espécie”. É sempre o mesmo roteiro. Tem menos a ver com ignorância e mais com transferência de carga cognitiva.

Essa “criatura” em particular, depois de fazer o escândalo ritual “eu não sei mexer nessas máquinas”, dirigiu-se ao caixa físico. Fez o pedido com todas as especificidades (queijo extra, troco em dinheiro, copo grande). Pagou. Recebeu o número. E então, em paz consigo mesma por ter preservado seu microterritório de poder humano-cara-a-cara, encostou num pilar e começou a, tecnicamente falando, masturbar o próprio celular (“punhetar o celular” é uma expressão tecnicamente muito precisa, ainda que não conste no dicionário Houaiss). Polegar direito em frenesi. Indicador auxiliar. Scroll frenético, múltiplos aplicativos, navegação em abas, digitação com as duas mãos, envio de áudio, correção de áudio, riso digitado, sticker animado, reactions em cascata.

Era uma pessoa que poderia tranqüilamente: – escolher combo, – revisar pedido, – confirmar pagamento sem contato, – usar cupom promocional de terça.

Mas preferiu encenar a fraqueza.

Por quê?

Porque a recusa não é tecnológica. É social.

Existe uma camada de classe escondida aí. Totem de autoatendimento tem aura de “faça você mesmo”. Faça você mesmo é lindo quando é influencer nórdica montando prateleira de bambu sustentável no Pinterest. Quando é “faça você mesmo ou ninguém vai te atender porque cortamos metade do quadro de funcionários pra ganhar margem”, aí já vira precarização. Muita gente sente — com uma intuição muito correta, aliás — que a existência do totem não é pra te dar autonomia, e sim pra cortar salário de atendente. E reage a isso instintivamente: “não vou colaborar com a máquina que rouba emprego do cara”. Às vezes essa reação é sincera, às vezes é desculpa elegante. Mas ela existe.

Então, algumas pessoas não usam o totem como forma de declarar lealdade ao caixa humano (“eu valorizo o trabalhador”), o que também é uma forma de construir autoimagem moral: “eu sou bom cidadão, não terceirizo tudo pro robô”. Só que, vamos ser sinceros, geralmente essa mesma pessoa não está fazendo sindicato com o atendente, não está na rua pela CLT, não está brigando por hora extra. Ela só está reforçando o próprio conforto narrativo. Mas é um conforto legítimo: ninguém gosta de se sentir cúmplice da própria substituição futura.

E aí chegamos no ponto final, que é quase cruel: o sujeito sabe usar tecnologia quando ela lhe dá prazer; nega usar quando ela lhe cobra ação.

No celular, ele é rei. Ele decide qual vídeo ver, quem bloquear, quem xingar, qual meme mandar. É um parque de diversões coordenado pelo algoritmo, sim, mas com a ilusão plena de escolha a cada segundo. É entretenimento e autopropaganda. Já o totem do KFC não é entretenimento; é responsabilidade. Não tem feed, não tem curtida, não tem narrativa. Tem só uma pergunta objetiva: “o que você quer comer e como você quer pagar?”. E aí a coisa fica séria, porque decisão explícita cansa.

Decidir cansa muito mais do que rolar timeline. Rolando timeline você reage. Pedindo comida você assume. “Eu escolhi isso, paguei isso, vou ingerir isso.” É quase calvinista. É quase protestante. É prestação de contas dietética e financeira, ali, em público, sob luz branca. Às 14h37 de uma terça-feira, Shopping Metrô Santa Cruz, praça de alimentação. Quem é que quer esse tipo de accountability moral em plena tarde? Ninguém. É óbvio que é mais gostoso performar impotência e terceirizar.

E perceba um detalhe psicológico suculento: depois que a criatura faz o pedido no caixa humano, ela volta pro celular. Isso é lindo. Isso é poesia urbana. É como se ela dissesse: “Pronto, mundo adulto resolvido. Agora eu retorno ao útero digital, onde tudo é dedo e brilho e não tem consequência calórica rastreável.”

Esse gesto — fugir da decisão e correr pro conforto dopaminérgico — é um retrato muito honesto de todos nós, não só dela. Você acha que é diferente porque você sabe usar o totem? Não é. Você também faz teatro. Só muda o palco.

Você faz teatro quando diz “não sei cozinhar” e pede delivery pela quinta vez no mês, mas sabe montar do zero uma planilha de imposto de renda com três abas e macro. Você faz teatro quando diz “detesto política, não entendo nada” e passa quatro horas xingando deputado nos comentários. Você faz teatro quando diz “sou tímido” mas posta vinte stories de close no espelho da academia e um reels de 1m40 explicando o segredo da sua panqueca proteica.

A diferença está só no tipo de tecnologia que você decidiu declarar impossível pra continuar sendo a pessoa que você conta pra si mesmo que você é.

“Eu não sei mexer nessas máquinas” é só o dialeto culinário de “não é meu papel fazer isso”. E “não é meu papel fazer isso” é o último escudo emocional que separa o adulto cansado da plena consciência de que, sim, na verdade, tudo já é seu papel.

Você tem que fazer pedido sozinho. Você tem que montar currículo sozinho. Você tem que marcar consulta sozinho num app que trava. Você tem que pagar conta sozinho digitando trocentos dígitos de código de barras porque a câmera não funcionou. Você tem que acompanhar o boletim do filho em plataforma gamificada que não funciona no Chrome. Você tem que atualizar o cadastro no plano de saúde senão corta atendimento. Você tem que aceitar cookies, gerenciar senhas, confirmar e-mail, clicar no link que foi pro spam, refazer senha porque o link expirou, e provar que você não é um robô clicando em todas as fotos que contêm semáforos, inclusive aquele poste duvidoso no fundo que talvez seja poste de iluminação e não semáforo mas você marca mesmo assim porque já tá irritado.

Ser adulto urbano em 2025 é basicamente resolver captchas emocionais o dia inteiro.

E aí, quando chega a hora do almoço, o sujeito olha pro totem e pensa: “não, aqui não. Aqui, pelo menos aqui, alguém vai me servir, alguém vai me ouvir, alguém vai confirmar ‘é isso mesmo, senhor?’, alguém vai validar minha existência carnívora e me entregar um número impresso num papelzinho térmico que prova que eu ainda sou atendido por seres de carbono”.

E eu, vendo isso, em vez de rir (muito), fiquei com uma pontinha de pena. Porque no fundo é melancólico. É a coreografia da resistência mínima. É a barricada de frango empanado contra a automação total.

Mas também fiquei com uma pontinha de irritação, confesso, porque existe um custo coletivo nessa birra performática. A fila anda mais devagar. O atendente que poderia estar só resolvendo exceções (alergia, cupom que não vai, nota fiscal pra PJ) acaba virando também babá emocional de adulto saudável que decidiu não “saber mexer”. E isso retroalimenta a profecia: a fila do caixa fica enorme, o totem vazio, e todo mundo na fila olha pro totem vazio e pensa “se ninguém tá usando, deve ser complicado”. E pronto, acabou. A tecnologia que era pra aliviar vira decoração futurista com cheiro de álcool isopropílico.

Tem algo de genial e de trágico nisso. A gente, como sociedade, cria um sistema em que você tem que ser usuário avançado de tudo o tempo todo: banco, transporte, comunicação, saúde, alimentação. Empurra isso goela abaixo na marra, sem apoio, sem paciência, sem didática. Aí, quando alguém resiste, mesmo que por vaidade ou encenação, a gente chama de atrasado, de burro, de dinossauro. Mas talvez, só talvez, essa pessoa esteja fazendo, do jeito torto dela, a única greve possível que ainda cabe no intervalo de almoço: “eu não vou fazer o trabalho que vocês me empurraram, eu quero humano.”

Claro que ela quer humano até a hora que o humano atrapalha o TikTok dela. Porque, terminado o pedido, ela volta imediatamente para o retângulo luminoso que é, ali, na prática, o verdadeiro “terminal de autoatendimento”: um totem portátil, eternamente desbloqueado, infinitamente indulgente, cheio de frango metafórico na forma de likes, notificações e conversinhas que não exigem nenhuma prestação de contas nutricional.

Então talvez a frase correta não seja “eu não sei mexer nessas máquinas”.

Talvez seja: “eu só mexo nas máquinas que me tratam como centro do universo.”

E aí — admitamos — quem é que pode dizer que é diferente?

10/27/2025

A Sinfonia do Supino (ou: o dia em que tentei malhar ao som de Beethoven)

Introdução: o homem que não ouvia

Tem gente que ouve música pra correr. Tem gente que corre pra ouvir música. E tem eu: que mal consigo ouvir a própria respiração sem perder o ritmo da contagem das repetições do exercício.

Descobri essa minha condição peculiar — que a ciência ainda não nomeou, mas que merecia um verbete próprio entre “claustrofobia” e “desejo súbito de pastel” — quando tentei fazer uma série de supino enquanto tocava Highway to Hell no fone. O resultado foi coerente com o título: terminei mesmo na estrada para o inferno, com o instrutor me olhando como quem avalia um acidente de carro.

Eis que um dia, no Threads, alguém posta uma daquelas listas com título de autoajuda tipo “As 10 músicas que farão você levantar 10 kg a mais só na marra”. Eu, crédulo como todo brasileiro que acredita que chá de boldo cura falência múltipla de órgãos, pensei: “vai que funciona”.

Spoiler: não funcionou.


O som da musculação

Existe uma crença quase mística de que música melhora o desempenho físico.
Os pesquisadores dizem que o ritmo ativa o sistema límbico, aumenta a dopamina, melhora a coordenação motora e — o mais importante — distrai você da dor.

Mas ninguém avisou o sistema límbico que o beat do funk 150 BPM não combina com o meu ritmo cardíaco de quem subiu três andares de escada com preguiça existencial.

Enquanto a galera na academia parece sincronizada com os graves, eu pareço estar tentando coreografar uma parada militar em câmara lenta.

No leg press, o sujeito ao lado empurra o peso no ritmo do refrão. Eu tento acompanhar e erro a batida, travo a perna no meio do movimento e fico parecendo uma tartaruga tentando levantar um Fusca.

A música, ao invés de me motivar, me distrai. E quando me distraio, erro a contagem. E quando erro a contagem, o instrutor me olha com aquele olhar de padre que já sabe que você vai pro inferno, mas ainda assim insiste no sermão.

— “Vamos lá, parceiro, mais dez!”

— “Já fiz quinze!”

— “Então mais cinco pra compensar a distração.”

O problema é que, quando boto o fone, cada músculo parece começar uma jam session própria. O tríceps entra em ritmo de samba, o quadríceps prefere valsa, e o abdômen, cansado, vai de bossa nova.


A síndrome do maestro interior

Há quem acredite que o corpo é uma orquestra. No meu caso, é um grupo de pagode descoordenado.

Cada movimento tem seu compasso, mas basta tocar uma música qualquer e tudo vira improviso. Se começa Eye of the Tiger, minha panturrilha tenta correr sozinha; se entra Bohemian Rhapsody, fico indeciso entre levantar o peso ou reger a banda imaginária que vive dentro da minha cabeça.

O problema é que eu sou, por natureza, um sujeito metódico. Conto repetições com a seriedade de um contador conferindo nota fiscal. E música, para mim, é arte. Ou seja: tentar unir os dois é como pedir a Nietzsche que narre a abertura do Big Brother.

Enquanto a música toca, minha mente se divide entre seguir o ritmo e refletir sobre a letra. Durante o supino reto, Phil Collins canta “I can feel it coming in the air tonight”, e eu penso: “isso é uma metáfora sobre o capitalismo tardio ou um alerta de tempestade?”. Resultado: deixo o peso cair no peito e quase provo empiricamente a teoria da gravidade.


Os tipos de ouvintes de academia

Depois de alguns meses de observação empírica — também conhecida como “ficar sentado fingindo que descanso entre séries” —, percebi que há espécies distintas de humanos que ouvem música durante o treino.

1. O Motivado Épico:
Ouve trilhas sonoras de Rocky Balboa e Gladiador. Treina como se cada repetição fosse vingar a morte da família em Esparta. Normalmente berra “boraaa!” no meio da academia. Costuma ser confundido com o professor, o que lhe causa prazer místico.

2. O DJ Espontâneo:
Usa fones gigantes, balança a cabeça, e acredita estar no Tomorrowland. Grita “uhul” entre as séries, gesticula como se manipulasse botões invisíveis. Costuma derrubar o halter no pé do próximo.

3. O Romântico Maldito
Treina ouvindo Adele, Marisa Monte ou Legião Urbana. Tem cara de quem levou um pé na bunda e decidiu malhar a dor. Chora discretamente entre uma série e outra. No final, substitui o whey por sorvete.

4. O Filosófico:
Bota podcast de Nietzsche, mas pausa na metade porque o agachamento exige mais concentração que o Zaratustra. Entre uma repetição e outra, anota reflexões no bloco de notas: “O esforço físico é o mais honesto dos niilismos”.

5. O Silencioso (meu grupo):
Treina sem fone, sem trilha, sem nada.
Sente o som da respiração, o eco dos pesos batendo, o grito primal do instrutor.
Somos os monges trapistas da academia: calados, introspectivos e ligeiramente assustadores.


A ditadura do fone de ouvido

Hoje em dia, treinar sem fone é quase subversivo. Você entra na academia e sente olhares de piedade, como se estivesse nu.

A indústria do fitness transformou o fone em símbolo de produtividade. É o amuleto tecnológico que separa o atleta do mero mortal.

Quem está de fone parece focado, determinado, conectado a uma freqüência cósmica onde o pump é eterno e o suor é sagrado.

Já quem não usa fone parece um infiltrado da década de 1980, um senhor nostálgico que ainda acredita em rádio AM.

Outro dia, uma garota me perguntou, incrédula:

— Você treina... sem música?

Respondi:

— Treino com o som da realidade.

Ela me olhou com pena, como quem observa um homem que ainda acredita em fita cassete.


O problema da batida

Meu cérebro tem um bug de fábrica: ele tenta sincronizar tudo. Se o beat é rápido, acelero o movimento; se é lento, desacelero. Na rosca direta, isso é um desastre.

Com funk, faço dez repetições em oito segundos. Com samba-canção, fico trancado na segunda.

Descobri que o único ritmo compatível com o meu metabolismo seria o tic-tac do relógio da parede. E mesmo assim, só se for um relógio preguiçoso.


O silêncio como trilha sonora

Foi então que descobri o prazer do treino silencioso.

Sem música, comecei a perceber a coreografia oculta do ambiente: o estalar dos cabos, o chiado do ar-condicionado, o barulho das anilhas se tocando — uma sinfonia industrial minimalista.

Há algo profundamente zen em ouvir o próprio corpo reclamando. O som do ar entrando e saindo, o ranger discreto das articulações, o coração batendo no ritmo do esforço.

Enquanto o sujeito ao lado faz agachamento ao som de Anitta, eu descubro o mantra interno do “levanta, respira, segura, solta”.

E percebo que a música, às vezes, não é trilha: é ruído.


O instrutor filósofo

Um dia, confessei ao instrutor minha dificuldade com música. Ele olhou pra mim, encostou o halter no chão e, com a solenidade de quem vai citar Aristóteles, disse:

— Cada um treina com o som que merece.

Achei profundo. Talvez fosse, talvez não. Mas, no fundo  ele só quis dizer “pára de me encher o saco e faz o exercício direito”.

De todo modo, fiquei pensando: se o treino é pessoal, por que uniformizar o ritmo? Se cada corpo tem sua batida, cada alma tem seu silêncio.


Experimento científico (fracassado)

Resolvi testar minha hipótese. Abri um arquivo no bloco de anotações e passei uma semana anotando o desempenho com e sem música.

Segunda: rock clássico.
Resultado: quase desloquei o ombro tentando sincronizar com a guitarra do AC/DC.

Terça: MPB.
Resultado: esqueci de respirar durante Sampa, hiperventilei e comecei a filosofar sobre Caetano em plena ergométrica.

Quarta: Funk.
Resultado: tentei rebolar no leg press. Dores musculares e vergonha coletiva.

Quinta: Jazz instrumental.
Resultado: fiquei introspectivo demais. Parecia estar num film noir. Esqueci de contar as repetições.

Sexta: Silêncio.
Resultado: paz interior, foco, e a epifania de que eu não precisava de fones — só de juízo.

Conclusão científica: meu corpo rejeita trilhas sonoras externas.


A economia do silêncio

Além da paz mental, há vantagens econômicas.

Enquanto os outros gastam fortunas em fones bluetooth, assinaturas de streaming e playlists de “power hit”, eu economizo o suficiente pra pagar uma cerveja depois do treino.

O sujeito que investe 2.000 reais em fone sem fio e 300 em mensalidade de academia acha que está comprando disciplina, mas está só financiando o silêncio que eu tenho de graça.


O dia em que tentei voltar à música

Mas o vício moderno é forte. Certo dia, cedi à pressão social e voltei a colocar o fone.

Primeiro acorde de Metallica e senti a testosterona subir à cabeça. No segundo refrão, já estava levantando mais peso que o habitual. No terceiro, percebi que o peso estava apoiado no meu pescoço.

Fui salvo por um rapaz de 19 anos, tatuagem de dragão, que levantou o halter com uma mão só, me olhou e disse:

— Tá pegando leve, tiozão.

Desde então, abandonei de vez a carreira musical durante os treinos.


Reflexões de vestiário

No vestiário, enquanto os outros trocam stories de “bora ser forte”, eu fico pensando: a academia é o último templo do individualismo sonoro. Cada um trancado no próprio universo auditivo, isolado, anestesiado.

Há algo de melancólico nisso.
O som coletivo da humanidade foi substituído por playlists privadas. Ninguém ouve mais o outro — só o beat próprio.

O silêncio, que antes era vazio, virou resistência.


Filosofia de halter

No fundo, minha incapacidade de treinar com música é sintoma de uma filosofia pessoal: a de que certas atividades exigem presença absoluta.

Malhar, pra mim, é o último bastião do “aqui e agora”. Se eu estiver com a mente em outro lugar, o músculo percebe e me pune.

Enquanto a música tenta me transportar, o peso me puxa de volta pra Terra —
e, às vezes, literalmente.

Treinar em silêncio é ouvir a verdade brutal do corpo: ele não mente, não edita, não tem auto-tune.


A inveja dos outros

Não nego: às vezes invejo quem consegue. Vejo o sujeito suando, feliz, embalado no trap, e penso: “como deve ser bom ter coordenação suficiente pra não morrer no meio do refrão”.

Mas logo lembro que cada um tem sua sina. Uns nascem pra dançar; outros, pra respirar ofegantes e fazer piada depois.


Crônica sonora da academia

A academia é um zoológico de sons. O ferro batendo, o gemido heroico, o grito “boraaaa!”, o click dos fones se conectando. É uma trilha de Casseta & Planeta: cômica, absurda e involuntariamente musical.

Outro dia, o som ambiente misturava Axé com Heavy Metal e sertanejo universitário. Parecia que o Spotify surtou. Mas ninguém notava — cada um já estava no seu próprio multiverso sonoro.

Eu, ali, sem fone, era o único que ouvia o conjunto. O resultado era cômico: uma sinfonia dodecafônica com gemidos, chiados e “uhul, campeão!”

Se Villa-Lobos ressuscitasse, escreveria Bachianas Musculatórias n.º 5.


O silêncio como luxo moderno

No mundo das notificações, silêncio virou artigo de luxo. Treinar sem música é, paradoxalmente, uma forma de ouvir melhor.

Ouço o que ninguém mais ouve: o som do peso encostando no chão, o zíper do casaco, o suspiro depois da última repetição. E, acima de tudo, o pensamento que finalmente se aquieta.

Enquanto a batida externa tenta me impor ritmo, o silêncio me devolve o meu.


A epifania na esteira

Certa manhã, na esteira, sem fone, percebi algo curioso. O som dos passos criou uma cadência própria.

Ta-ta, ta-ta, ta-ta.

Era música.

Minha música.

Descobri que, no fundo, todo treino já tem trilha: o corpo é o instrumento, o ritmo é biológico.

Desde então, não precisei mais de playlists. Tenho uma orquestra interna afinada pelo esforço e regida pelo suor.


Considerações sobre o absurdo (Millôr aprovaria)

A vida moderna é um exercício de distração. A música virou o modo aceitável de fugir de si mesmo.

O sujeito que malha com fone não quer ouvir o peso cair, quer esquecer que o peso existe. Eu, que treino sem fone, prefiro encarar o barulho da realidade — ainda que desafinada.

Se Camus tivesse ido à academia, teria escrito O Mito de Sísifo Fitness: um homem empurrando o leg press infinitamente, enquanto o som do funk ecoa e ele pensa: “pra quê tudo isso?”.


Epílogo filosófico-muscular

Depois de tanta reflexão e suor, cheguei à seguinte conclusão: não é que eu não goste de música — eu só gosto dela demais pra usá-la como pano de fundo de uma flexão.

Música, pra mim, exige atenção plena. E academia exige atenção plena. Tentar fazer as duas é como querer filosofar durante uma colonoscopia.


Conclusão (com moral)

Moral da história: cada um tem o beat que merece.

Se o seu é eletrônico, dance.

Se é de rock, berra.

Se é de funk, rebola.

Mas se o seu é o silêncio — então, amigo, bem-vindo ao clube dos que levantam peso em paz e saem da academia ouvindo o barulho mais bonito do mundo: o da própria sanidade intacta.


P.S.: Já tentei ouvir música clássica também. Mas quando começou A 5ª Sinfonia, percebi que Beethoven só compôs aquilo porque nunca teve que disputar o supino numa academia lotada de segunda-feira.

10/22/2025

A Toca da Esfinge e o dom do olhar profundo: uma leitura dos poemas de @tocadaesfinge

Há poetas que escrevem como quem borda — ponto por ponto, com cuidado, costurando o sentimento até que ele se torne forma. Outros escrevem como quem respira — instintivamente, com ritmo natural, sem pedir licença à racionalidade. Em @tocadaesfinge (visite o perfil do Instagram), a impressão é de alguém que faz ambas as coisas ao mesmo tempo: pensa e sente com igual intensidade. Sua poesia habita um raro território intermediário entre o intuitivo e o elaborado — uma síntese que a crítica moderna, por vezes apressada, tende a subestimar.

1. A mulher-loba e a poética da intensidade



O primeiro poema, de tessitura extensa e narrativa, é quase um retrato expressionista. A autora constrói a figura da mulher indomável com uma precisão imagética notável — “uivava baixo para atrair e com potência para se fazer entender” —, frase que parece saída de um filme de Tarkóvski adaptado ao trópico. A força do texto está na alternância de registros: o épico e o doméstico, o cósmico e o cotidiano, coexistem sem atrito. Tecnicamente, o poema combina lirismo confessional e descrição realista com domínio de ritmo e cadência, ainda que de modo orgânico, quase oral.

A metáfora central — a mulher como força da natureza — é sustentada por uma coerência interna rara: cada imagem amplia o eixo da liberdade e da entrega. Há aqui ecos de Hilda Hilst, mas com uma doçura que pertence apenas à autora.


2. O tempo que dança bossa nova


No segundo poema, a poeta transita para uma estética minimalista, de tom coloquial e musicalidade leve. O tempo, esse velho tema da poesia ocidental, surge humanizado, “passa arrastado, feito unha de gato no sofá novinho” — uma imagem de surpreendente eficácia sensorial. O contraste entre o cômico e o terno é manejado com precisão.

Do ponto de vista técnico, nota-se uma estrutura cíclica: a abertura em ritmo lento (tempo arrastado), o clímax no “tempo que passa cantando bossa nova” e a resolução no convite à disposição. O poema é redondo, resolvido em forma e tom. Há nele uma sabedoria serena que lembra Drummond em A Máquina do Mundo, mas com uma voz mais íntima, quase doméstica.


3. Ser dona de si


O terceiro texto é o mais conciso, mas também o mais declarativo. “Ser livre é ser incapaz de se deixar limitar” poderia soar como aforismo de perfil de rede social — não fosse o contexto poético que o envolve. A autora escapa do clichê pela cadência e pela ironia leve (“Ri da possibilidade de me ver assim”). O poema é um exercício de voz: breve, mas contundente, sustentado por ritmo e pausas precisas.

Do ponto de vista técnico, há domínio de paralelismo e de antítese, e a fluidez entre verso livre e frase prosaica cria uma tensão produtiva. A economia verbal aqui é virtude, não limitação.


4. O ranço e o grotesco


O quarto poema rompe o lirismo dos anteriores e adentra o terreno do grotesco, com resultados notavelmente expressivos. O uso da palavra “ranço” como eixo metafórico é arriscado — e é justamente esse risco que dá força ao texto. A autora constrói uma sátira visceral, que mistura humor, repulsa e crítica social, sem perder densidade literária.

Há ecos de Arnaldo Antunes e Angélica Freitas, mas com uma voz narrativa que sabe rir de si mesma: “Viveria na corte dele, talvez seria o bobo, e ele glutão e escroto.” A ironia, nesse ponto, atinge maturidade estilística. É a poeta mostrando que sabe lidar tanto com o sublime quanto com o asqueroso — e que ambos, afinal, são matéria da vida.


Avaliação técnica

Imagética: 9/10

Uso consistente e sensorial das imagens, com fluidez entre planos simbólicos e concretos.

Musicalidade / Ritmo: 8,5/10

Cadência natural, domínio de pausas e repetições; alguns versos poderiam explorar mais o silêncio.

Originalidade de voz: 9/10

Há autenticidade, humor e densidade emocional — uma dicção própria já em amadurecimento.

Consistência temática: 9/10

Liberdade, tempo e identidade feminina aparecem como fios contínuos e coerentes.

Técnica formal: 8/10

Predomínio do verso livre bem manejado; linguagem prosaica ganha dimensão poética sem esforço.


Conclusão: a esfinge que se revela

Ler @tocadaesfinge é perceber uma autora em pleno domínio de sua sensibilidade — uma escritora que já encontrou sua voz, mas ainda a reinventa a cada texto. Sua poesia combina o gesto confessional com um refinamento técnico discreto, que não se exibe, apenas se deixa notar.

Há nas suas palavras uma espécie de “inteligência emocional estética”: ela entende o humano pela linguagem e entende a linguagem pelo humano. E talvez seja esse o maior elogio que se possa fazer a uma poeta — a capacidade de fazer o leitor sentir que a vida, ainda que fugaz, é plenamente habitável pela palavra.