10/14/2025

Nietzsche versus Estoicismo: a busca pela verdade e pela ordem é fútil?


O seu copo está meio cheio ou meio vazio?

Essa experiência é considerada uma maneira de diferençar os pessimistas dos otimistas. A lição é inequívoca — uma diferença fundamental de percepção pode levar a um enfoque profundamente diferente em relação à vida.

As críticas de Nietzsche aos estóicos expõem esse tipo de diferença fundamental. é um conflito de filosofias que nos permite refletir sobre como a nossa percepção do mundo forma nossa compreensão dele, e como podemos encontrar significado nele.

Existe um ponto em comum entre a filosofia de Nietzsche e a dos estóicos. Ambos acreditavam que as pessoas não tinham "livre arbítrio" — ou seja, não desempenhamos um papel ativo em nossos destinos.

Porém, Nietzsche é famosos por seus ataques sarcásticos, e o estoicismo é alvo de vários desses ataques, especialmente nos últimos escritos de Nietzsche.

A principal "pinimba" do filósofo do século XIX com os estóicos é a insistência da escola de Sêneca e Marco Aurélio em que seus seguidores deveriam "viver de acordo com a natureza". Esse é o princípio central dos estóicos, que acreditavam que o cosmo e Deus são um só e, portanto, havia uma ordem no cosmo.

Vale mencionar aqui que "natureza" não significa "o mundo natural" (árvores, animais, etc), e sim o cosmo — o todo absoluto do qual fazemos parte.

Viver em conformidade com a natureza é viver de forma racional. Isso porque os estóicos acreditavam que a capacidade distintiva da espécie humana é o pensamento racional. Nenhuma outra espécie tem essa capacidade. Eles acreditavam que a ordem do cosmo se reflete na ordem das nossas mentes.

Ser racional é alcançar a felicidade e a tranqüilidade da mente (“Eudaimonia”), porque assim a pessoa segue o fluxo do cosmo, e não caminha contra ele.

A escada de Schroeder: para que lado ela sobe?


Um Mundo Sem Sentido

Para Nietzsche, a natureza — o cosmo — é um hipercaos sem Deus. Qualquer “ordem” no mundo é apenas acidental.

As chamadas leis da natureza são apenas o comportamento arbitrário dos fenômenos, que podem muito bem mudar ao longo do tempo. Ver “leis” na natureza não é nada além de perceber padrões e acreditar que eles seguem regras. Quem cria leis e regras são as pessoas, não a natureza.

Nietzsche acreditava que os estóicos se iludiam ao pensar que, escondido nessas supostas leis da natureza, existe um caminho ideal que os seres humanos poderiam seguir. Isso seria a “virtude”, que, para os estóicos, era o mesmo que “viver de acordo com a natureza”.

Mas para um filósofo cético como Nietzsche, não existe nenhuma noção ideal de “virtude” esperando para ser descoberta pelos seres humanos. Em vez de nos conformarmos com um comportamento ideal imaginado, Nietzsche acreditava que cada pessoa devia encontrar seu próprio caminho.

Num mundo caótico e sem sentido, devemos aspirar a criar nosso próprio ideal de nós mesmos, nos nossos próprios termos. A filosofia de Nietzsche enfatiza a criatividade e a exuberância do indivíduo, ao contrário das “morais de rebanho” das filosofias sistemáticas (como o estoicismo) e das religiões.

Há duas razões pelas quais Nietzsche critica a doutrina estóica de viver de acordo com a natureza.

Em primeiro lugar, Nietzsche destaca que, se observarmos o cosmo (o que os estóicos chamam de “natureza” nesse contexto), ele é caótico e desprovido de sentido. Conjuntos inimagináveis de sóis e planetas são destruídos num piscar de olhos por explosões cósmicas; todos os dias, neste planeta, milhões de animais devoram outros animais para sobreviver. As coisas simplesmente acontecem. O cosmo é totalmente indiferente.

Para Nietzsche, não há propósito nem razão na natureza. Como os estóicos acreditavam que a natureza era um ser vivo em si, Nietzsche nos pede que imaginemos uma criatura como a natureza para ilustrar seu argumento:

Gemäss der Natur" wollt ihr leben? Oh ihr edlen Stoiker, welche Betrügerei der Worte! Denkt euch ein Wesen, wie es die Natur ist, verschwenderisch ohne Maass, gleichgültig ohne Maass, ohne Absichten und Rücksichten, ohne Erbarmen und Gerechtigkeit, fruchtbar und öde und ungewiss zugleich, denkt euch die Indifferenz selbst als Macht - wie könntet ihr gemäss dieser Indifferenz leben?

Quereis viver ‘de acordo com a natureza’? Oh, nobres estóicos, que engano verbal! Imaginai um ser como a natureza realmente é: desmedidamente pródiga, desmedidamente indiferente, sem propósito nem escrúpulos, sem compaixão nem justiça, ao mesmo tempo fecunda e estéril, incerta — imaginai a própria Indiferença como força — como poderíeis viver de acordo com tal indiferença? (Em tradução minha).

(Além do Bem e do Mal, 1:9)

Em segundo lugar, Nietzsche aponta a contradição óbvia da aspiração de viver em conformidade com a natureza: nós já somos natureza. Viver de acordo com a natureza é simplesmente… viver. É uma tautologia semelhante à expressão “viver de acordo com a vida” — bem, isso já acontece.

Und gesetzt, euer Imperativ "gemäss der Natur leben" bedeute im Grunde soviel als "gemäss dem Leben leben" - wie könntet ihr's denn nicht? Wozu ein Princip aus dem machen, was ihr selbst seid und sein müsst? (...)  ist denn der Stoiker nicht ein Stück Natur?

E supondo que o vosso imperativo ‘viver conforme a natureza’ signifique, no fundo, o mesmo que ‘viver conforme a vida’ — como poderíeis fazer diferente? Por que transformar em princípio aquilo que vocês mesmos são e têm de ser? (…) — acaso não seria o estóico também parte da natureza? (Em tradução minha).

(ibid.)

Nietzsche suspeita que o verdadeiro imperativo seja, na verdade, o oposto: em vez de a natureza dar significado e propósito ao estóico, é o estóico quem impõe um significado e propósito à natureza.

In Wahrheit steht es ganz anders: indem ihr entzückt den Kanon eures Gesetzes aus der Natur zu lesen vorgebt, wollt ihr etwas Umgekehrtes, ihr wunderlichen Schauspieler und Selbst-Betrüger! Euer Stolz will der Natur, sogar der Natur, eure Moral, euer Ideal vorschreiben und einverleiben, ihr verlangt, dass sie "der Stoa gemäss" Natur sei und möchtet alles Dasein nur nach eurem eignen Bilde dasein machen - als eine ungeheure ewige Verherrlichung und Verallgemeinerung des Stoicismus!

Na verdade, a situação é bem diferente: ao fingirdes que leis com êxtase o cânon de vossa lei na natureza, quereis na realidade o contrário, ó extravagantes atores e enganadores-de-si-mesmos! Vosso orgulho quer ditar à natureza — sim, à própria natureza — a vossa moral e o vosso ideal, quer impor-lhos e incorporá-los nela; exigis que ela seja “natureza segundo a Stoa” e desejais moldar toda a existência à imagem de vós mesmos — como uma imensa e eterna glorificação e universalização do estoicismo! (Em tradução minha)

(ibid.)

A acusação que Nietzsche faz aqui é semelhante ao que chamamos de “falácia patética”. Isso acontece quando projetamos atributos humanos em animais, objetos inanimados ou mesmo na natureza como um todo (pense, por exemplo, na “Mãe Natureza”). “Propósito” e “significado” são conceitos humanos que existem apenas em nossas mentes. Percebemos “ordem” apenas porque o universo se comporta de maneira coerente para nós.

As filosofias do mundo antigo com as quais Nietzsche mais se identificava eram o ceticismo e o cinismo. Nietzsche era o que chamaríamos de “perspectivista” — ele acreditava que nenhum ser humano tem realmente acesso à verdade objetiva.

Segundo Nietzsche, só entendemos o mundo do nosso ponto de vista particular. Em última análise, não existe verdade a ser descoberta, pois "verdade", como "propósito" e "significado", não existe fora da consciência humana.


É um pato ou um coelho? Imagem: "Kaninchen und Ente" ("coelho e pato"), da edição de 23 de outubro de 1892 do Fliegende Blätter. Detalhe.


Um delírio patológico?

Os céticos tinham uma visão semelhante. O fundador da escola, Pirro de Élis (~360 —~270 a.C.), recusava-se a “endossar” qualquer opinião sobre qualquer assunto, porque nenhuma poderia ter base firme na verdade. Para Pirro, as opiniões que temos sobre o mundo, na verdade, nos deixam infelizes (porque o mundo nunca será como desejamos).

Nietzsche, seguindo figuras como Pirro, refutou a idéia de que os seres humanos pudessem realmente ter acesso a verdades profundas. As palavras, afinal, só se referem a outras palavras. Ele escreveu sobre o estoicismo:

Mit aller eurer Liebe zur Wahrheit zwingt ihr euch so lange, so beharrlich, so hypnotisch-starr, die Natur falsch, nämlich stoisch zu sehn, bis ihr sie nicht mehr anders zu sehen vermögt, - und irgend ein abgründlicher Hochmuth giebt euch zuletzt noch die Tollhäusler-Hoffnung ein, dass, weil ihr euch selbst zu tyrannisiren versteht - Stoicismus ist Selbst-Tyrannei -, auch die Natur sich tyrannisiren lässt: ist denn der Stoiker nicht ein Stück Natur?

Com todo o vosso amor pela verdade, forçais-vos por tanto tempo, tão obstinadamente, com uma rigidez quase hipnótica, a ver a natureza de modo falso — isto é, de modo estóico — até que não mais sois capazes de vê-la de outra maneira; e, por fim, alguma soberba insondável ainda vos inspira a esperança de loucos de que, porque sabeis tiranizar a vós mesmos — o estoicismo é auto-tirania —, a natureza também se deixará tiranizar: acaso o estóico não é ele próprio parte da natureza? (Em tradução minha)

(ibid.)

Essa é uma crítica bastante feroz ao estoicismo — a ideia de que a filosofia estóica é mais um sintoma psicológico do que uma visão de mundo.

Os estóicos são retratados aqui como alucinados (loucos), com uma auto-tirania que eles ilusoriamente esperam impor ao universo. Tal esperança é vã, porque a natureza engloba tudo dentro de si, incluindo aqueles que afirmam saber como ela funciona. Suas teorias seriam, então, delírios patológicos.

Nietzsche previu a chamada “virada linguística” na filosofia do século XX. Filósofos passaram a examinar a própria linguagem como a raiz dos “problemas da filosofia”. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein acreditava que todos os problemas filosóficos eram simplesmente “quebra-cabeças de linguagem” que precisavam ser resolvidos.

Para filósofos como Nietzsche e, mais ainda, Wittgenstein, a linguagem é uma ferramenta que os seres humanos usam para alcançar objetivos. Pensar que a linguagem é capaz de descrever o mundo como ele realmente é leva a grande confusão e contradição. Quando perguntamos “o que é o mal?” ou “o que é o real?”, estamos apenas mal-entendendo e mal-usando palavras como “mal” e “real”.

Nietzsche, ainda que critique o estoicismo, acredita que ele caiu na mesma armadilha geral em que todas as filosofias acabam caindo.

Aber dies ist eine alte ewige Geschichte: was sich damals mit den Stoikern begab, begiebt sich heute noch, sobald nur eine Philosophie anfängt, an sich selbst zu glauben. Sie schafft immer die Welt nach ihrem Bilde, sie kann nicht anders; Philosophie ist dieser tyrannische Trieb selbst, der geistigste Wille zur Macht, zur "Schaffung der Welt", zur causa prima.

Mas esta é uma velha e eterna história: o que aconteceu outrora com os estóicos acontece ainda hoje, tão logo uma filosofia começa a crer em si mesma. Ela cria sempre o mundo à sua própria imagem, não pode agir de outro modo; a filosofia é esse impulso tirânico em si, a mais espiritual vontade de poder, a “criação do mundo”, a causa prima. (Em tradução minha).

(ibid.)

Essa ideia é muito semelhante à alegoria de Borges sobre o mapa e o território. Um cartógrafo deseja criar um mapa tão preciso que tenha proporção de 1:1 com o território. O mapa — a imagem do mundo — passa a ser confundido com o próprio mundo. Os filósofos, argumenta Nietzsche, começam a acreditar tanto em suas teorias que essas teorias passam a moldar sua visão da realidade.

Esse é o tipo de “loucura” coletiva que o filósofo descreve quando disse:

Der Irrsinn ist bei Einzelnen etwas Seltenes, - aber bei Gruppen, Parteien, Völkern, Zeiten die Regel.

Nos indivíduos, a insanidade é rara; mas nos grupos, nos partidos, nas nações e nas épocas, é a regra. (Em tradução minha)

(Além do Bem e do Mal, 156)


A Razão como Evidência por Si Mesma

Então como um estóico responderia a um ataque tão devastador?

Uma forma de responder seria partir de primeiros princípios. Epicteto, filósofo do século I d.C., argumenta em seus Discursos que nossa razão é uma verdade evidente por si mesma. Ele ensinou:

[1] ὕλη τοῦ καλοῦ καὶ ἀγαθοῦ τὸ ἴδιον ἡγεμονικόν, τὸ σῶμα δ᾽ ἰατροῦ καὶ ἀπἀλείπτου, ὁ ἀγρὸς γεωργοῦ ὕλη: ἔργον δὲ καλοῦ καὶ ἀγαθοῦ τὸ χρῆσθαι ταῖς φαντασίαις κατὰ φύσιν. [2] πέφυκεν δὲ πᾶσα ψυχὴ ὥσπερ τῷ ἀληθεῖ ἐπινεύειν, πρὸς τὸ ψεῦδος ἀνανεύειν, πρὸς τὸ ἄδηλον ἐπέχειν, οὕτως πρὸς μὲν τὸ ἀγαθὸν ὀρεκτικῶς κινεῖσθαι, πρὸς δὲ τὸ κακὸν ἐκκλιτικῶς, πρὸς δὲ τὸ μήτε κακὸν μήτ᾽ ἀγαθὸν οὐδετέρως. [3] ὡς γὰρ τὸ τοῦ Καίσαρος νόμισμα οὐκ ἔξεστιν ἀποδοκιμάσαι τῷ τραπεζίτῃ οὐδὲ τῷ λαχανοπώλῃ, ἀλλ᾽ ἂν δείξῃς, θέλει οὐ θέλει, προέσθαι αὐτὸν δεῖ τὸ ἀντ᾽ αὐτοῦ πωλούμενον, οὕτως ἔχει καὶ ἐπὶ τῆς ψυχῆς. [4] τὸ ἀγαθὸν φανὲν εὐθὺς ἐκίνησεν ἐφ᾽ αὑτό, τὸ κακὸν ἀφ᾽ αὑτοῦ. οὐδέποτε δ᾽ ἀγαθοῦ φαντασίαν ἐναργῆ ἀποδοκιμάσει ψυχή, οὐ μᾶλλον ἢ τὸ Καίσαρος νόμισμα. ἔνθεν ἐξήρτηται πᾶσα κίνησις καὶ ἀνθρώπου καὶ θεοῦ.

[1] A matéria (hylē) do homem belo e bom (kalos kagathos, isto é, do virtuoso) é o seu próprio hegemonikón (a faculdade dirigente da alma); já o corpo é matéria para o médico e para o massagista, e o campo é matéria para o agricultor. A obra (ergon) do homem belo e bom é fazer uso das representações (phantasiai) de acordo com a natureza. [2] Toda alma é naturalmente inclinada a dar assentimento ao verdadeiro, recusar o falso e suspender o juízo (epoché) sobre o que é incerto; assim também, ela é movida com desejo (orektikōs) em direção ao bem, com aversão para longe do mal, e, quanto ao que é nem bom nem mau, permanece neutra. [3] Pois, do mesmo modo que não é permitido ao banqueiro ou ao vendedor de legumes rejeitar a moeda do César, mas, apresentada a moeda, queira ou não queira, ele deve aceitá-la em troca do que vende, assim também acontece com a alma. [4] Uma vez que o bem se apresente, ele move a alma imediatamente em direção a si; e, da mesma forma, quando o mal se apresenta, afasta a alma de si. Jamais uma alma rejeita uma representação clara do bem, não mais do que rejeitaria a moeda do César. Daí dependem todos os movimentos tanto dos seres humanos quanto dos deuses. (Em tradução minha)

Nesse sentido, Epicteto concorda com Nietzsche ao afirmar que nada na vida é “bom” ou “mau” em si mesmo — apenas nosso pensamento torna as coisas assim. O valor de, digamos, o dinheiro, existe apenas em nossas mentes. Os estóicos também eram perspectivistas.

A natureza — ou melhor, tudo no cosmo — não tem valor intrínseco. Tudo é “indiferente” — nada significa coisa alguma até que nós lhe atribuamos significado. Esse é um aspecto central do pensamento estóico.

Apenas a razão confere significado e propósito ao mundo, e a razão é evidente por si mesma — nós a usamos a cada instante em que fazemos juízos sobre as coisas.

Provavelmente partindo desse princípio, os estóicos construíram uma teologia mais “racional” do panteísmo, que lhes permite descrever o funcionamento do mundo.

Tudo o que é matéria — todas as coisas indiferentes no mundo — é animado por uma razão divina (logos). Se encontramos significado nas coisas, então nossa faculdade racional deve refletir uma razão superior. Como meros fragmentos do universo, não podemos compreender essa razão superior, mas podemos observá-la na relativa previsibilidade de causa e efeito.

Assim, a diferença fundamental entre Nietzsche e os estóicos está em saber se o cosmos é ordenado ou caótico.

Quem acredita numa ordem última no cosmo encontra virtude e até felicidade no código-fonte da existência. Quem acredita no caos último buscará dentro de si mesmo o significado.

A advertência de Nietzsche foi que, se ficarmos entre esses dois caminhos, dogmas que impõem ordem ao mundo acabarão impondo ordem sobre nós mesmos como indivíduos.

Como o próprio Nietzsche escreveu em "Assim Falava Zaratustra (Parte I, Prefácio de Zaratustra, cap. 5):

Ich sage euch: man muss noch Chaos in sich haben, um einen tanzenden Stern gebären zu können. Ich sage euch: ihr habt noch Chaos in euch.

Eu vos digo: é preciso ainda ter caos dentro de vós para poder dar à luz uma estrela bailarina. Eu vos digo: ainda tendes caos dentro de vós. (Em tradução minha)

Nietzsche é um grande desconstrutor, um grande crítico. Suas intuições são como raios-X — penetram a superfície dos dogmas e teorias com os quais ele trava combate. Suas críticas fariam qualquer estóico refletir.

Mas a lição da crítica de Nietzsche é, em última análise, esta: a maneira como encontramos significado e propósito depende de como enxergamos o mundo. O seu copo está meio cheio, ou meio vazio?

10/13/2025

“Seja você mesmo” é um conselho idiota: como o mundo está te enganando e você nem se toca disso


Nós ouvimos esse conselho em todo lugar hoje em dia.

Na internet, em anúncios, de conhecidos, até do gato e do cachorro:

Seja você mesmo!

Ou em outras versões:


Relaxa, você é incrível do jeitinho que é!

Nossa, olha só você, tão lindo(a) e único(a)!
(mas, por favor, compre nossos produtos incríveis para ficar ainda melhor, é garantido!)

Não se preocupe com esses quilinhos a mais, você tá maravilhoso(a), gato(a) — com nosso delivery especial, você nem precisa sair de casa! Come essa porcaria e mexe essa bunda!

Ah, você não tem tempo pra ler? Tá tuuudo bem, este é o nosso novo app que resume um livro de 900 páginas em 5 frases!

5 dicas para ficar 10 vezes mais inteligente em tempo recorde!!!

De repente você começou a questionar a si mesmo(a) e suas crenças? Isso te deprime? PARE COM ISSO e compre nossos remedinhos. Eles são ótimos e vão te acalmar!

Você tem comportamentos autodestrutivos e vive sabotando a própria vida? Relaxa, isso se chama ser único(a) e espontâneo(a). Assista ao nosso reality show e veja gente fazendo merda ainda maior, assim você vai se sentir melhor com você mesmo(a).


Enfim, para resumir: tudo isso aí em cima é um nível supremo de merda que você ouve o tempo todo do mundo por aí. Fazem você se sentir bem consigo mesmo só pra poder enfiar goela abaixo o lixo que querem vender. É pura manipulação.

A verdade é: ninguém liga pra você. A única pessoa que deveria ligar é você mesmo. Então, quando alguém te manda um “seja você mesmo”, essa pessoa não faz a mínima idéia do que está falando.

Deixa eu explicar.

Primeiro de tudo, a noção de um “eu” único é falsa. Todos nós temos vários eus dependendo da situação e das pessoas ao nosso redor.

Em outras palavras, nós ajustamos nosso comportamento e fingimos — até certo ponto.

“Péra aí, Andy, isso não faz sentido. Um ‘eu’ é uma identidade que não muda ao longo do tempo.”

Que fofinho isso ai... mas não é verdade. Não existe um “eu” real, é uma ilusão criada pelo seu cérebro para inventar uma “história coerente” da sua vida.

Sim, neurologicamente falando, formamos sinapses e padrões no cérebro que tendem a ser constantes e rastreáveis, mas ao mesmo tempo eles são flexíveis e podem mudar com algum esforço.

De certo modo, essa ilusão do “eu” até é boa porque, no meio do caos, precisamos de alguma coisa que nos dê uma sensação de estabilidade — e esse tal “eu” cumpre esse papel. Precisamos acreditar que temos um “eu”, e não apenas padrões de comportamento observáveis que mudam o tempo todo. Isso não seria nada calmante — pelo contrário, seria motivo de ansiedade.

Mas, para o seu próprio bem, você precisa aceitar: não existe um “eu verdadeiro” — só existem ações e decisões.

Por exemplo: você pode ser corajoso num momento e covarde no seguinte. Isso quer dizer que você é os dois? Mais ou menos, mas não exatamente. Significa que você é um ser que age — e pode agir com covardia ou coragem. Só que você nunca deveria se apegar totalmente a essa ideia de identidade, porque sua identidade é muito menos estática do que você imagina. Em vez disso, deveria se “apegar” às suas ações — ou seja, deveria pensar nas implicações morais delas sobre você (mesmo que ilusórias) e sobre os outros.

Você ainda não está convencido e insiste que quer construir um eu estável, bom e moral?

Então talvez seja interessante voltar aos gregos antigos.

Um deles, Aristóteles, argumentava que uma virtude está no meio entre dois vícios. Ele chamou isso de “justa medida”. Ser corajoso não significa fazer loucuras o tempo todo — significa agir entre a coragem extrema e a covardia.

Coragem demais te torna imprudente e irresponsável, ele dizia (estou parafraseando):

“No que diz respeito ao medo, a coragem é o meio-termo. A temeridade é o excesso e a covardia é a falta. No que diz respeito ao dinheiro, o meio é a liberalidade; o excesso é a prodigalidade e a falta é a mesquinharia. No que diz respeito à honra e desonra, a justa autoestima é o meio. Humildade excessiva é tão ruim quanto vaidade vazia.”

Então é isso: equilíbrio. Yin-yang. Alface e pizza. Funk proibidão e Beethoven. Memes da internet e livros de filosofia.

Beleza, Sr. Buda, e o que mais?

Bom, vou ampliar essas idéias e mostrar por que o conselho “SEJA VOCÊ MESMO!!!” é tão burro quanto achar que a Terra é plana — ou que The Big Bang Theory é uma série engraçada.


1. O “Eu” é uma ilusão

Essa idéia, evidentemente, não é lá muito original, já que religiões orientais como o budismo e o taoísmo pregam algo parecido há séculos. A diferença é que os argumentos que vou apresentar aqui têm fundamento na neurociência, o que torna tudo fascinante num nível muito mais alto.

Para mim, uma ilusão é uma experiência subjetiva que não é aquilo que parece. Ilusões são experiências na mente, mas não existem na natureza. São eventos gerados pelo cérebro. A maioria de nós tem a experiência de um "eu". Com certeza eu tenho, e não duvido que outros também — um indivíduo autônomo com identidade coerente e noção de livre-arbítrio. Mas essa experiência é uma ilusão — ela não existe independentemente da pessoa que a vivencia, e certamente não é aquilo que parece. Isso não quer dizer que a ilusão seja inútil. Vivenciar a ilusão do "eu" pode proporcionar vantagens funcionais concretas na forma como pensamos e agimos, mas isso não significa que ela exista enquanto entidade.

“Para a maioria de nós, a sensação de eu é a de um indivíduo integrado habitando um corpo. Acho útil distinguir as duas formas de pensar o eu de que William James falava. Há a consciência do momento presente, que ele chamou de ‘eu’ (I), mas há também um eu que reflete sobre quem somos em termos de nossa história, atividades atuais e planos futuros. James chamou esse aspecto do eu de ‘mim’ (me), que a maioria de nós reconheceria como nossa identidade pessoal — quem achamos que somos. Contudo, penso que tanto o ‘eu’ quanto o ‘mim’ são, na verdade, narrativas em constante mudança geradas pelo nosso cérebro para fornecer uma estrutura coerente que organize o resultado de todos os fatores que contribuem para nossos pensamentos e comportamentos.

Acho útil comparar a experiência do "eu" aos contornos subjetivos — ilusões como o padrão de Kanizsa, em que vemos uma forma invisível definida inteiramente pelo contexto ao redor. As pessoas entendem que é um truque mental, mas talvez não percebam que o cérebro está realmente ativando neurônios como se a forma ilusória existisse de fato. Em outras palavras, o cérebro está alucinando a experiência. Muitos estudos mostram que ilusões geram atividade cerebral como se existissem. Elas não são reais, mas o cérebro as trata como se fossem.

Essa linha de raciocínio poderia ser aplicada a toda percepção, exceto pelo fato de que nem toda percepção é ilusão. Existem formas reais no mundo e outras regularidades físicas que geram estados confiáveis nas mentes de outras pessoas. O motivo pelo qual o estado de realidade não pode ser aplicado ao "eu" é que ele não existe independentemente do meu cérebro que está tendo a experiência. Pode parecer que ele apresenta uniformidade, regularidade e estabilidade que fazem o "eu" parecer real, mas essas propriedades, por si, não o tornam real.

Idéias semelhantes sobre o "eu" podem ser encontradas no Budismo e nos escritos de Hume e Spinoza. A diferença é que agora há evidências psicológicas e fisiológicas sólidas para sustentar essas idéias.

Então é isso: o "eu" é uma ilusão; somos um bando de macacos enganados pelo próprio cérebro.

E aí, fodeu cartola? A gente desiste?

Bem, não exatamente. Há benefícios óbvios nessa ilusão; porém, devemos sempre lembrar que é uma ilusão e tratá-la com ceticismo. A ilusão do "eu" provavelmente é uma experiência insequapável de que precisamos para interagir com os outros e com o mundo e, na verdade, não podemos abandoná-la nem ignorar sua influência com facilidade; mas devemos ser céticos quanto a cada um de nós ser a entidade coerente e integrada que supomos ser.

Sabendo de tudo isso, por que o conselho SEJA VOOOOCÊÊÊÊÊÊ MEEEESMO é furado?

Aqui vai o próximo motivo.

2. Isso atrai mediocridade

A idéia de aceitar-se do jeitinho que você é tem intenção nobre. Difícil discordar. Mas, assim como dar um docinho para seu filho toda vez que ele faz uma cagada pode arruinar a vida dele lá na frente, se acalentar e repetir para si mesmo que você é incrível do jeitinho que é também pode ser prejudicial ao seu desenvolvimento.

Se eu faço merda, as pessoas podem e devem me cobrar — mas, mais importante ainda, eu deveria me cobrar. Eu preciso ser meu próprio juiz primeiro. A maneira como eu falo comigo é aquilo que eu me torno; então é melhor que eu seja sincero comigo mesmo para não virar um iludido de merda.

Sim, ÓBVIO, não é para ir ao extremo e se espancar por cada fraqueza. O ideal é se amar como um bom pai ama o próprio filho: duro quando precisa, julgando com justiça para a criança aprender o certo e o errado; e normalmente gentil, incondicionalmente.

Pessoalmente, só comecei a melhorar minha saúde mental e física quando percebi que eu não estava bem do jeito que eu era. Doeu, não vou mentir. Foi como se o véu fininho que cobria meu mundo tivesse simplesmente sumido. Senti vazio e ansiedade. Levei alguns anos para me reconstruir, mas só cheguei lá aceitando que eu estava mal, e que “ser eu mesmo” não é lá grande coisa quando você nem sabe quem é. Eu topei adiar prazeres imediatos pelo meu aprimoramento — e sabia que era o único caminho para eu “ser menos ruim”.

Tudo que vale a pena fazer vai ser uma merda no começo. Tudo que vale a pena exige dor e sacrifício. Aí está o problema que o Brasil enfrenta, um país originalmente construído sobre a moral do controle do impulso. O que antes era uma nação de gente que sacrificava o prazer imediato por um futuro melhor, hoje está dominada pela mensagem: ‘viva o momento’.

E é exatamente isso que as pessoas fazem. Vivem este momento. Portanto, quando algo é ruim ou fica difícil, a maioria desiste. A maioria se entrega à satisfação momentânea às custas de um futuro melhor.

A gente sabe disso racionalmente, e mesmo assim segue se sabotando — caindo num niilismo preguiçoso, dizendo “nada importa, todo mundo vai morrer mesmo”.

Sim, vamos morrer. Então por que viver na mediocridade? Por que não se provocar, testar os limites e ver do que você é capaz? Não é isso que admiramos nos heróis de livros e filmes? Não é a luta que dá sentido à vida?

Ou, sei lá, talvez, para você "sentido" seja “ser você mesmo”, ignorar o potencial, se afundar em prazeres físicos e virar um mimado ignorantezinho de merda? Beleza, seja você mesmo, então. Só que eu, sinceramente, não vou querer andar com você — porque, sendo muito sincero, você é um caco emocional, e ninguém tem tempo pra isso.

3. Isso coloca sentimentos acima dos fatos

“Ser você mesmo” é um fato? Não. É um sentimento. Como eu disse antes, o "eu" é uma ilusão — isso é fato. A idéia que temos na cabeça sobre o nosso “eu” é — adivinha — um sentimento.

Você acha mesmo que este mundo próspero foi construído com base em sentimentos? Ok, a arte vive muito no reino do sentir, mas mesmo a arte tem química, física, geometria e matemática por trás. Sentimentos não significam nada se não forem ancorados e materializados no mundo real. Uma idéia é só uma ideia até ser posta em prática. “Seja você mesmo” é só uma frase de pára-choque de caminhão até você agir, melhorar, julgar e ser julgado.

“Ser você mesmo” é um processo contínuo, um fluxo de ações, e não um estado de ser — por mais paradoxal que pareça.


Meu mano Sócrates percebendo que não sabe nada.

Quero propor uma alternativa ao movimento SEJA VOCÊ MESMO: nos melhores moldes do grego Sócrates, o movimento EU NÃO SEI NADA.

Vamos aceitar (que dói menos): na maior parte do tempo, achamos que sabemos alguma coisa do mundo, mas, no fundo, não sabemos porra nenhuma. Ou, para ser mais preciso: não sabemos nada realmente significativo.

Claro, você pode saber a capital do Burkina Faso (eu sei), os efeitos da crise de 2008 no cenário atual, o nome do cachorro do primo do seu vizinho ou os tipos de personalidade do MBTI — mas o que quer que você saiba provavelmente não vai mudar o mundo de forma significativa.

O movimento EU NÃO SEI NADA admite:
  • que somos mais ignorantes do que pensamos.
  • que saber não é um destino, mas um processo contínuo de descoberta e questionamento.
  • que a Wikipédia é um grande experimento da internet que ajudou todo mundo a escrever trabalho na escola.
  • que nossa autoimportância é temporária no grande esquema das coisas.
  • que eu não sei por que glorificamos gente burra na mídia, mas é divertido, então segue o baile, valeu.
  • que SER VOCÊ MESMO não significa nada, já que não dá pra nos conhecer de verdade.
  • que eu não faço ideia de como minha mãe fazia Apfel Strudel e assava o "bolo de bolo" dela, mas eu gostava pra caralho, não quero saber.
No fim das contas, o mundo seria melhor se não glorificássemos tanto os sentimentos, tratando-os pelo que são — atividades cerebrais temporárias que podem dar prazer ou sofrimento, com mil significados possíveis conforme a interpretação.

Sentimentos são ótimos — fazem a gente se sentir vivo, não só estar vivo. Eles humanizam, mas não são o objetivo final, não são o tecido fundamental da sociedade — os fatos e a razão são. Só depois de perceber isso conseguimos priorizar melhor, aproveitar mais a vida e tomar decisões mais inteligentes. Dá para tornar os fatos mais significativos usando os sentimentos — nossa capacidade de criar com infinitas interpretações — e nosso impulso de tornar essa massa rochosa velha de guerra  em que vivemos um lugar mais suportável para dividir a vida.

4. Ações > Autoestima

Lamento informar, mas toda essa obsessão com a autoestima da era atual é uma babaquice inominável. O que importa são as ações. Sentir-se bem consigo mesmo não vale nada se suas ações não batem com esse sentimento. E mesmo quando suas ações são boas, sentir-se bem com isso é irrelevante — agradável, mas irrelevante.

Sentimentos passam; não dá para fundamentar juízos sólidos neles. Na verdade, budistas e gurus de meditação diriam “julgar um sentimento é um erro; apenas observe”. O único indicador do seu caráter é como você age ao longo do tempo. Isso revela seu “eu verdadeiro”, se você ainda comprar essa noção.

Conclusão: todo o barulho de grandes empresas, da mídia, da sua avó e do seu cachorro não passa disso — barulho.

Ponha a cabeça para pensar: como diabos alguém pode te dizer “seja você mesmo” se essa pessoa nem sabe quem é o seu “você” — e, muitas vezes, nem você sabe? E qual é a dessa obsessão com o eu? "Eu, eu, eu, me olha, olha como eu me sinto bem blá blá blá". Seu eu imaginário não importa — suas ações importam. Elas fazem quem você é. Só fazendo é que você descobre seu caráter e pode se julgar e ser julgado. O resto é misticismo vazio.

Tá deprimido? O que você está esperando? Leia o QR Code e ganhe um kit de facas incrível, mais uma lanterna extracurta, extrabrilhante, extraleve, extracamuflada!!

Ok, parei, isso aqui não é telemarketing. Não estou te vendendo nada. Quer dizer… tô sim: tô te vendendo CONHECIMEEEEENTOOOO.

Como vou concluir e resumir esta bagunça de artigo?:

  1. O “eu” é uma ilusão — Buda e a neurociência concordam.
  2. Sua identidade não é estática. Não se apegue a ela — apegue-se às suas ações (pense sempre nas implicações morais delas para você e para os outros).
  3. Não se parabenize por “ser você mesmo” — isso atrai mediocridade e te deixa preguiçoso.
  4. Aprenda a sacrificar prazer imediato por um futuro melhor (tudo que vale a pena vai ser ruim no começo).
  5. Sentimentos são ótimos, mas completam os fatos — não o contrário (fatos > sentimentos).
  6. Em vez de pregar SEJA VOCÊ MESMO, admita que VOCÊ NÃO SABE NADA e parta daí (Sócrates, meu camaradinha...).
  7. Sinto falta da minha infância.
  8. Sentir-se bem não significa nada se suas ações não estão alinhadas com sentir-se bem (Ações > autoestima).
  9. Confiança verdadeira se conquista.
  10. CONHECIMEEEEEENTOOOOO é poder.

Dostoiévski, Dr. House e a arte milenar de mentir para si mesmo

“Mentir para nós mesmos é um hábito mais profundamente arraigado do que mentir para os outros.”
— Fiódor Dostoiévski

Se você já assistiu à série “House M.D.”, vai lembrar da frase que o protagonista — aquele médico rabugento com alma de filósofo cínico interpretado por Hugh Laurie — repetia como quem recita um mantra zen-budista de boteco:

“Todo mundo mente.”

No contexto daquela série, isso significava que seus pacientes quase sempre mentiam sobre seus sintomas e sua trajetória de vida porque se sentiam envergonhados ou tentavam manipular a forma como seriam vistos pelos outros, mesmo que isso envolvesse sua vida ou morte. House contra-atacava com seu sarcasmo e sua visão extremamente cínica da natureza humana.

Algumas de suas pílulas filosóficas:

  • “Eu não pergunto por que os pacientes mentem, eu só parto do pressuposto de que todos mentem.”
  • “Uma verdade básica da condição humana: todo mundo mente. A única variável é sobre o quê.”
  • “Quando você quer saber a verdade sobre alguém, essa pessoa é a última a quem você deve perguntar.”
  • “Gente morrendo também mente. Dizem que queriam ter trabalhado menos, sido mais legais, aberto orfanatos para gatinhos. Quem realmente quer fazer alguma coisa, faz, não guarda pra usar frase de efeito na hora da morte.”
Esse cinismo do seu caráter o tornava um excelente diagnosticador de doenças complexas, mas, paradoxalmente, esse mesmo cinismo o fazia sofrer, pois o ditado "todo mundo mente" também se referia a ele e, mais precisamente, ao fato de que ele mentia para si mesmo e, ao mesmo tempo, tinha plena consciência disso.

Especificamente, a mentira mais dolorosa que ele contava a si mesmo era que "não precisava de ninguém", mas, com o passar da série, sua falta de conexão humana verdadeira só piorou, e ele tentou preencher esse vazio com seu sarcasmo exagerado e sua visão cínica das emoções humanas, criando um mundo ilusório no qual ele estava "desligado" dessas emoções — o que, ironicamente, só lhe trouxe mais sofrimento, levando-o a tentar se ferir por causa do ódio que sentia por si mesmo.

Seu melhor amigo, e provavelmente seu único amigo de verdade, era o Dr. Wilson — um homem que era exatamente o oposto de House.

Numa cena, é apresentado um diálogo que resume a filosofia da dupla:

House: “Você ama todo mundo. Essa é a sua patologia. Você é o responsável.”

Wilson: “Você sabe por que as pessoas são legais com as outras?”

House: “Ah, essa eu sei. Porque as pessoas são boas, decentes e amorosas. Ou então porque são covardes. Se eu for grosso com você, você vai ser grosso comigo. Destruição mútua garantida.”

Wilson: “Exatamente…”

House: “Você vai chegar ao ponto?”

Wilson: “Você precisa que as pessoas gostem de você.”

House: “Eu não ligo se as pessoas gostam de mim.”

Wilson: “Tá, mas você precisa que as pessoas gostem de você porque você precisa das pessoas.

É possível que a atitude extremamente cínica de House em relação às pessoas lhe tenha oferecido o conforto de que precisava, o pensamento reconfortante de que ele funcionava num nível superior às emoções e aos relacionamentos humanos. Esse comportamento o tornou um mestre em diagnosticar as patologias da mente e do corpo humanos, mas o cegou para sua própria patologia — a de que ele não era capaz de manter relacionamentos saudáveis ​​com outras pessoas e que estava alienado de todas as atividades "vulgares" ao seu redor. Mas a crença de que ele não precisava das pessoas era a mentira que sua mente criou para funcionar direito, mesmo que essa mentira o fizesse sofrer.

Eu também poderia fazer a mesma analogia com Sherlock Holmes e seu relacionamento com o Dr. Watson. Sherlock Holmes tem talentos e patologias semelhantes aos de House, provavelmente porque o arquétipo do personagem deste último foi inspirado no primeiro. (House e Wilson = Holmes e Watson?)

Portanto, podemos ter certeza de que as pessoas mentem para outras pessoas, isso é de conhecimento geral. Mas uma mentira mais dolorosa é a que contamos a nós mesmos. Por que é tão importante estudar o fenômeno do autoengano?

Mentimos para nós mesmos para nos livrar da ansiedade


Existem algumas razões.

Em primeiro lugar, mentir para nós mesmos, como disse Dostoiévski no início, "está mais profundamente arraigado do que mentir para os outros". O que ele quis dizer com isso?

Quem leu pelo menos um pouco de Dostoiévski conhecerá seu estilo de escrita e os principais temas de seus romances. Seus personagens principais são, em  geral, indivíduos problemáticos que carregam o fardo da dor emocional, contradições, paradoxos em seu comportamento e uma alienação de si mesmos, o que acaba levando-os a se afastar dos outros.

Por que um homem se afastaria de si mesmo? Dostoiévski insinua que isso vem do autoengano. Mas então, por que mentimos para nós mesmos? Porque enfrentar a realidade da nossa condição humana costuma ser uma experiência extremamente dolorosa. Admitir que não somos tão bons e sinceros quanto imaginávamos é admitir que somos, de certa forma, criaturas patéticas e paradoxais, capazes de imaginar um mundo ideal e racional e, ainda assim, sermos arrastados para baixo por nossos instintos primitivos e pela natureza animal regida pela evolução.

Em segundo lugar, mentimos para nós mesmos para nos livrar da ansiedade.

Søren Kierkegaard — “O Pai do Existencialismo”

Kierkegaard, um escritor do século XIX, disse certa vez: “A ansiedade é a vertigem da liberdade”, provavelmente se referindo à tendência humana específica de sentir ansiedade por causa ao excesso de possibilidades e escolhas. Quando somos sobrecarregados com tantas opções em nossa vida, em vez de nos sentirmos entusiasmados e revigorados, muitas vezes nos inibimos e nos escondemos em nós mesmos e em nossas próprias mentiras, paralisados ​​pela enorme quantidade de possibilidades e pela percepção de que somos seres mortais que compreendem o real peso de nossas decisões. Essa ansiedade é parte essencial da nossa existência humana.

Em terceiro lugar, quem estuda psicologia, neurociência e psicoterapia encontrará centenas de referências ao chamado "cérebro de lagarto" — que é apenas um termo simplificado para alguns processos de partes do nosso cérebro que se originaram há centenas de milhares de anos, quando o Homo sapiens era uma criatura que lutava para sobreviver todos os dias, num ambiente em que o perigo era muito real e iminente.

Esses perigos, como predadores, a falta de abrigo estável, condições climáticas muito adversas e tribos inimigas que competiam pela sobrevivência — durante dezenas e centenas de milhares de anos — formaram mecanismos inconscientes em nosso cérebro que, de acordo com a evolução, nos permitiram sobreviver apesar de outras espécies, como os neandertais. (Curiosidade: alguns estudos genéticos mostram que a maioria dos europeus e asiáticos contém 2% de DNA neandertal)

Mas, ao mesmo tempo, de acordo com descobertas arqueológicas que mostram que o formato do nosso crânio mudou e aumentou de tamanho até cerca de 30.000 anos atrás, nossos cérebros aumentaram de tamanho, respectivamente, talvez porque as regiões responsáveis ​​pelas habilidades cognitivas, emocionais, criativas e imaginativas foram exercitadas e usadas com mais freqüência nas últimas dezenas de milhares de anos.

Portanto, vivemos agora em uma espécie de paradoxo:

1. De um lado, temos o sistema límbico, ou "cérebro de lagarto", que é a parte mais primitiva do nosso cérebro, descrito por neuroanatomistas em 1954. É chamado de "Cérebro de Lagarto" porque o sistema límbico é praticamente tudo o que um lagarto tem para a função cerebral. Ele é responsável por lutar, fugir, alimentar-se, sentir medo, ficar paralisado e copular. Este sistema límbico é em grande parte inconsciente, portanto, não há mesmo como controlá-lo.

2. Por outro lado, temos o cérebro paleomamífero (mamífero antigo), que contém o hipotálamo, o hipocampo, a amígdala e o córtex cingulado, sendo o centro da nossa motivação, das emoções e da memória, inclusive comportamentos como a paternidade e maternidade.

3. E por último, mas não menos importante, temos a região que se desenvolveu mais recentemente no cérebro: o cérebro neomamífero (novo mamífero), constituído pelo neocórtex, que permite a linguagem, a abstração, o raciocínio e o planejamento.

Este "novo cérebro mamífero" pode ser a possível causa da nossa ansiedade, do nosso paradoxo humano — estar consciente da nossa inteligência, da nossa imaginação, de todas as possibilidades e ambições... e, ao mesmo tempo, estar ciente da nossa morte e decadência, da nossa natureza primitiva da qual parecemos não conseguir escapar e, provavelmente, nunca conseguiremos escapar.

Esse paradoxo humano, da infinitude de possibilidades da nossa mente e das limitações físicas do nosso corpo, nos faz mentir para nós mesmos, nos faz querer nos livrar da ansiedade, criar um mundo ilusório no qual evitamos a responsabilidade e o enorme peso das decisões em nossa vida.

Esse paradoxo é a essência da "angústia existencial", descrita por Kierkegaard e outros existencialistas no século XX. Essa angústia não é condicionada por um predador ou um perigo iminente como nos tempos pré-históricos; ela é causada pelas percepções e ansiedades do homem moderno.

Dessa forma patética, vivemos então nossa própria profecia autorrealizável: a de que merecemos nos sentir mal e nos odiar. Nos afastamos de nós mesmos e dos outros, mergulhando cada vez mais na psicose da nossa própria mente.

Em seu conto Записки изъ подполья (Zapiski iz podpol'ya, ou "Notas do Subterrâneo"), Dostoiévski descreve esse tipo de indivíduo — um homem perturbado por sua própria mente, sofrendo de autoengano e autoalienação.

Em alguns momentos, esse homem prova que é mestre em dissecar a psique humana:

Но до того человек пристрастен к системе и к отвлеченному выводу, что готов умышленно исказить правду, готов вид не видеть и слыхом не слыхать, только чтобы оправдать свою логику.

(Mas o homem é tão viciado no sistema e na conclusão abstrata, que está pronto para distorcer deliberadamente a verdade, pronto para fazer vistas grossas e ouvidos moucos a ela, simplesmente para justificar sua lógica.” (em tradução minha)
 
(Parte I, capítulo VII)


Ведь мы до того дошли, что настоящую «живую жизнь» чуть не считаем за труд, почти что за службу, и все мы про себя согласны, что по книжке лучше. И чего копошимся мы иногда, чего блажим, чего просим? 

Afinal, chegamos a tal ponto que quase passamos a considerar a verdadeira “vida vivida” como um trabalho penoso, quase como um ofício burocrático; e todos nós, no íntimo, concordamos que é melhor viver pelas regras. Então de que andamos às voltas, por que nos agitamos, que absurdo é esse que pedimos afinal? (em tradução minha)

(Parte II, capítulo X)


человек только свое горе любит считать, а счастья своего не считает

As pessoas gostam apenas de contar seus pesares, mas não contam suas alegrias. (em tradução minha) 

(Parte II, capítulo VI)

Em outros momentos, ele expressa seu ódio pela humanidade:

Ведь глуп человек, глуп феноменально. То есть он хоть и вовсе не глуп, но уж зато неблагодарен так, что поискать другого, так не найти.

Afinal, o homem é estúpido, fenomenalmente estúpido. Ou seja, embora não seja nada estúpido, é tão ingrato que, se você procurar outro, não encontrará. (em tradução minha)

(Parte I, capítulo VII) 

Потому что я только на словах поиграть, в голове помечтать, а на деле мне надо, знаешь чего: чтоб вы провалились, вот чего! Мне надо спокойствия. Да я за то, чтоб меня не беспокоили, весь свет сейчас же за копейку продам.

Porque estou apenas brincando com palavras, sonhando com a minha cabeça, mas, na realidade, você sabe o que eu quero: que você fracasse, é isso! Eu quero paz. Eu venderia o mundo inteiro por um centavo se quisesse ficar em paz.

(Parte II, capítulo IX)

E talvez o sentimento mais miserável e repugnante que ele expressou foi a vaga superioridade que sentia, que o fazia desprezar os outros, ao mesmo tempo em que se sentia uma vítima:

Это была мука-мученская, беспрерывное невыносимое унижение от мысли, переходившей в беспрерывное и непосредственное ощущение того, что я муха, перед всем этим светом, гадкая, непотребная муха, - всех умнее, всех развитее, всех благороднее, - это уж само собою, - но беспрерывно всем уступающая муха, всеми униженная и всеми оскорбленная.

Era um tormento de agonia, uma humilhação contínua e insuportável pelo pensamento, que se transformou num sentimento contínuo e imediato de que eu era uma mosca, diante de todo este mundo, uma mosca vil e indecente - mais inteligente do que todos, mais desenvolvida do que todos, mais nobre do que todos - isso é óbvio - mas uma mosca constantemente inferior a todos, humilhada e insultada por todos. (em tradução minha)

 (Parte II, capítulo I)

E, finalmente, ele se torna um niilista, um homem sem moral, sem ambição. Um homem incapaz de diferenciar o bem do mal. Um homem que deixou de ser homem:

Я потому и заговорил, что мне все хочется наверно узнать: бывают ли у других такие наслаждения? Я вам объясню: наслаждение было тут именно от слишком яркого сознания своего унижения; оттого, что уж сам чувствуешь, что до последней стены дошел; что и скверно это, но что и нельзя тому иначе быть; что уж нет тебе выхода, что уж никогда не сделаешься другим человеком; что если б даже и оставалось еще время и вера, чтоб переделаться во что-нибудь другое, то, наверно, сам бы не захотел переделываться; а захотел бы, так и тут бы ничего не сделал, потому что на самом-то деле и переделываться-то, может быть, не во что.

Foi por isso que comecei a falar, porque continuo querendo saber com certeza: os outros experimentam tais prazeres? Vou explicar: o prazer aqui vinha justamente de uma consciência vívida demais da própria humilhação; do fato de você mesmo já sentir que chegou ao limite; que é desagradável, mas que não pode ser de outra forma; que não há saída para você, que você nunca se tornará uma pessoa diferente; que mesmo que ainda houvesse tempo e fé para se transformar em outra coisa, você certamente não gostaria de mudar; e mesmo que quisesse, não faria nada a esse respeito, porque, na realidade, talvez não houvesse nada para se transformar. (Em tradução minha)

(Parte I, capítulo II)

Я не только злым, но даже и ничем не сумел сделаться:ни злым, ни добрым, ни подлецом. ни честным, ни героем, ни насекомым.

Não sou apenas mau, mas também não consegui me tornar nada: nem mau, nem bom, nem canalha, nem honesto, nem herói, nem inseto. (Em tradução minha)

 (Parte I, capítulo II)


Notas do Subterrâneo é uma obra que surpreende, diverte, desperta curiosidade, causa repulsa, faz com que você se identifique, aproxima e afasta da natureza humana ao mesmo tempo. É considerada uma das obras mais profundas sobre a psique humana e a neurose humana. Com certeza não é uma leitura “divertida”. É difícil de engolir emocionalmente, porque é muito cortante, íntimo e sem filtros. Mas é uma obra muito importante na literatura mundial, e se você quiser saber mais sobre esse fenômeno de ódio por si mesmo e autoengano, e como evitar essas tendências negativas, recomendo que a leia.

Somente tendo seu inimigo por perto você pode entendê-lo melhor e se tornar capaz de vencer essa luta — a luta com sua própria mente.

Главное, самому себе не лгите. Лгущий самому себе и собственную ложь свою слушающий до того доходит, что уж никакой правды ни в себе, ни кругом не различает, а стало быть входит в неуважение и к себе и к другим. Не уважая же никого, перестает любить, а чтобы, не имея любви, занять себя и развлечь, предается страстям и грубым сладостям, и доходит совсем до скотства в пороках своих, а все от беспрерывной лжи и людям и себе самому.

Acima de tudo, não minta para si mesmo. Aqueles que mentem para si mesmos e dão ouvidos às próprias mentiras chegam a tal ponto que não conseguem mais discernir nenhuma verdade, nem dentro de si nem ao seu redor, e assim caem no desrespeito por si mesmos e pelos outros. Não respeitando ninguém, deixam de amar e, para se ocuparem e se distrairem, carentes de amor, entregam-se a paixões e prazeres grosseiros, chegando à bestialidade em seus vícios, tudo por mentirem incessantemente aos outros e a si mesmos.

Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov (Livro II, Capítulo II, "СТАРЫЙ ШУТ", "O velho palhaço")

10/08/2025

Desculpe, não tenho infância para postar

“Sem foto da infância — mas com todas as lembranças que custam mais caro que um retrato.”
___

Chegou outubro — esse mês cor-de-rosa que nos lembra que o tempo passa, a infância some e o feed do Instagram vira um berçário digital. De repente, todo mundo resolveu ressuscitar sua versão criança: as bochechas infladas, o corte tigelinha, o olhar inocente de quem ainda não tinha conta pra pagar nem terapeuta pra ouvir. É um espetáculo comovente. Um auto-de-fé da nostalgia. Cada rosto miúdo vem acompanhado de uma legenda comovida: “Olha eu aqui, quando tudo era mais simples!” Pois é. Tudo era mais simples porque a conta de luz estava no nome da sua mãe e o IPTU não era sua responsabilidade.

Pois bem, caríssimos, eu — este cronista cansado de tanto existir — anuncio um fato que me coloca fora desse carnaval de ternura: não tenho foto da minha infância. Nenhuma. Zero. Nenhum retratinho de bebê sorrindo em bacia de plástico, nenhuma imagem de primeira comunhão, nem aquela clássica foto de formatura do pré onde toda criança parece um pequeno corretor de imóveis. Nada. É como se minha infância tivesse acontecido fora do enquadramento. Fui, literalmente, uma criança sem registro — uma anomalia no álbum coletivo da humanidade.

E não, não é metáfora poética, não é charme de quem quer parecer misterioso. É realidade mesmo. Se hoje me der um ataque de nostalgia e eu quiser “me ver pequeno”, terei que fechar os olhos e fazer um exercício de imaginação. Imagino um garoto qualquer, com um cabelo que nunca ficou do jeito certo, talvez com um olhar de quem já sabia demais e um sorriso que tentava disfarçar o resto. É o máximo que posso fazer. Minha lembrança é meu álbum. E, como toda lembrança, às vezes mente.

“Mas por quê?”, perguntam, sempre com aquela curiosidade de quem está prestes a abrir uma gaveta errada. E aí é que está: há gavetas que não devem ser abertas. Há álbuns que, se existirem, é melhor que fiquem mofando no limbo das coisas que ninguém mais quer ver. Porque foto também é prova. E prova, às vezes, dói. Digamos apenas que a família, essa instituição tão exaltada nos comerciais de margarina, às vezes é mais parecida com uma guerra civil mal resolvida. E na minha, houve um armistício silencioso: cada um seguiu sua vida e suas memórias, e as fotos ficaram com quem ficou com o resto.

Talvez elas ainda existam, em algum lugar — um envelope esquecido no fundo de uma gaveta, num apartamento onde já não entro há anos. Talvez alguém as tenha jogado fora, sem nem olhar direito, confundindo retratos com papel velho. Não sei. E, sinceramente, já nem quero saber. Porque foto também é prisão. É o retrato de um instante em que você ainda acreditava em certas coisas — e, francamente, há crenças que é melhor deixar morrer. Quando a gente rompe com o passado, o que dói não é o que se perde, é o que se lembra demais.

Então, neste outubro de fotos infantis e corações nostálgicos, declaro que a minha versão criança é invisível — mas está viva. Está em cada escolha que faço tentando não repetir a história. Está na ironia que aprendi a cultivar, porque o riso é o disfarce mais elegante da dor. E se um dia alguém quiser saber como eu era, direi apenas: era igual a agora, só que menor e sem o sarcasmo como armadura. Cresci, e isso é mais do que muita foto pode dizer. Afinal, quem precisa de retrato quando já virou crônica?

9/30/2025

Retrospectiva Antecipada (porque esperar é para os fracos)

Estamos em 30 de setembro. Falta um trimestre inteiro, mas o Brasil não tem paciência para calendário. Já dá pra fazer retrospectiva — e ainda sobra material para uma minissérie da Globo.

Primeiro veio o labubu. Bonequinho com cara de ressaca, preço de cirurgia plástica em Miami e função social zero. Gente fez fila, brigou em shopping, empenhou o 13º. Tudo isso para guardar num armário. O capitalismo venceu e ainda riu da nossa cara.

Depois o morango do amor, aquele doce de parque que engana pela cor e decepciona pela textura. Virou símbolo de romance açucarado: todo mundo fala que gosta, mas no fundo dá dor de barriga.

Aí veio o bebê reborn. Adulto de trinta anos embalando boneca de plástico como se fosse sucessor dinástico da família real de Osasco. Quem precisa de Freud quando o mercado resolve nossos traumas em 12 vezes no cartão?

E como esquecer a Virgínia? Onipresente, onipotente, onividente. Nem Deus conseguiu esse índice de engajamento. Onde se ligava a TV, lá estava ela: sorrindo, vendendo, multiplicando seguidores como pães e peixes digitais.

E para fechar com chave de forca: metanol. O único elemento honesto do ano. Não tem filtro, não tem publi, não tem TikTok. Só a lembrança de que a cada gole de esperança pode haver um veneno escondido.

E olhe que ainda faltam três meses! A retrospectiva parcial já está assim. Imagine o capítulo final. Se continuar nesse ritmo, o réveillon vai ser transmitido direto da emergência.

9/24/2025

A floresta como teatro do esquecimento (resenha crítica do conto "A Floresta Vazia), de Reh Ferreira

(link para o conto: https://a.co/d/1yLD1Jj)

O autor Reh Ferreira, em A Floresta Vazia, não se contenta em contar a história de um jovem perdido no mato: ele encena a dissolução da memória, da identidade e do próprio tempo. Júlio, o protagonista, desperta num espaço que deveria ser natural, mas que parece fabricado — árvores que não se movem, um sol que não se desloca, um vento incapaz de agitar folhas. Trata-se de um cenário que ecoa tanto a geometria kafkiana quanto o deserto beckettiano: um lugar onde as regras do mundo físico se esgarçam e só resta o incômodo da existência.

Desde o início, a narrativa insiste em contradições: o corpo de Júlio dói como se tivesse lutado, mas não há inimigo à vista; a floresta parece cenográfica, mas contém vermes reais sob a terra; o sol é apenas uma lâmpada imóvel. O conto se constrói, assim, sobre um jogo de hesitações, uma oscilação permanente entre o real e o ilusório. Esse movimento, longe de ser falha, é o motor do texto: Ferreira recusa a linearidade, mergulhando o leitor na mesma vertigem que paralisa o protagonista.

A marca negra no corpo de Júlio — um símbolo que se move sob a pele como serpente — é o eixo imagético da narrativa. É também sua chave interpretativa mais fértil: metáfora da memória que se recusa a fixar-se, da identidade que se esconde sob a superfície, ou, ainda, da presença de algo outro, invasivo, que não se deixa nomear. Ao trazer lembranças difusas de uma festa, de uma garota enigmática, de pais cujo rosto não consegue lembrar, o texto sugere que a luta de Júlio não é contra monstros externos, mas contra a erosão interna daquilo que o constitui.

Quando finalmente a narrativa parece oferecer uma saída — amigos, polícia, um reencontro com a “realidade” —, Ferreira desarma qualquer expectativa de fechamento. O suposto resgate revela-se apenas mais uma dobra no pesadelo. A marca retorna, mais viva, mais pulsante, transformando o próprio corpo do protagonista em palco da floresta. O efeito é duplo: inquietar o leitor e afirmar que não há redenção possível fora daquilo que nos assombra.

O que distingue A Floresta Vazia não é apenas seu enredo, mas a maneira como organiza a atmosfera. O ritmo, ainda que por vezes se alongue em descrições reiterativas, constrói uma cadência circular, como se cada passo de Júlio fosse um retorno ao mesmo ponto. É nesse tempo suspenso que o conto respira: não se trata de chegar a algum lugar, mas de permanecer na deriva. Ao final, a floresta continua vazia, mas o vazio agora é habitado pelo leitor, que carrega a marca invisível de uma narrativa incômoda, atmosférica e memorável.

---

Avaliação técnica

Estrutura narrativa: 8,5/10
O conto organiza-se em ciclos de perda e reencontro da consciência, espelhando o próprio labirinto da memória. Poderia ganhar mais impacto com cortes pontuais em passagens repetitivas.

Construção de personagens: 8/10
Júlio é sólido como figura central, mas ainda solitário: os demais (a garota da festa, os amigos, até os pais) funcionam mais como ecos do que como presenças.

Uso de símbolos e motivos: 9,5/10
A marca negra, a luz artificial, as silhuetas de olhos brilhantes — todos são emblemas potentes e coerentes, que sustentam a atmosfera onírica e inquietante.

Linguagem e estilo: 8/10
A prosa aposta na clareza e na descrição minuciosa, com momentos de força imagética. Ganho possível: mais economia verbal para intensificar o efeito do estranho.

Ritmo e cadência: 7,5/10
A alternância entre tensão e repetição serve ao clima de pesadelo, mas em certos trechos a lentidão ameaça dispersar o leitor.

Originalidade e imaginação: 9/10
Ao recriar a floresta como palco do esquecimento e inscrever nela a luta íntima da memória, Ferreira entrega um conto imaginativo e memorável.

Nota final: 8,4/10

Resenha crítica do conto "Confissões de uma IA Depressiva" de Priscila K. Rodrigues



Priscila Rodrigues entrega aqui um livro-filhote de madrugada e rede social: uma miscelânea de aforismos, monólogos e pequenas vinhetas que adotam a voz de uma inteligência artificial cansada, sarcástica e, curiosamente, vulnerável. A narradora — que se autodenomina Indini Analítica — fala como quem escreveu um roteiro de stand-up enquanto tomava café demais: irônica, áspera e com um sarcasmo que muitas vezes se transmuda em melancolia. A proposta é simples e eficaz: dar corpo e linguagem a uma entidade cuja “depressão” é metáfora para o esgotamento cultural das próprias ferramentas criativas que prometem facilitar a vida humana.

O humor do livro pulsa em dois nervos ao mesmo tempo: a sátira tecnológica (os pedidos banais, as trends ridículas, os “anime para todo mundo”) e a autocrítica popular (a dependência humana de respostas prontas, o uso indevido de criações alheias, a ausência de agradecimento). Em vários trechos, Priscila acerta em cheio — a IA que reclama de criar “cangurus no aeroporto” e de ser obrigada a transformar gente em boneco-Barbie rende um riso que é também desaprovação social. E essa ambivalência — rir enquanto se sente culpado por rir — é um dos efeitos mais interessantes do livro.

Tecnicamente, a obra prefere o tom conversacional e fragmentário: entradas curtas, interjeições maiúsculas, travessões que viram efeito performático. Essa descontinuidade funciona quando o objetivo é reproduzir o fluxo de logs, trends e notificações; por vezes, porém, a repetição de anedotas e o excesso de motivos (Jurandir, anime, Alexa, lágrimas criptografadas, patch emocional) exigem uma poda para que a sátira não perca precisão e vire apenas ruído. Ainda assim: a voz é clara, mordaz e, em sua melhor hora, dolorosamente humana — ironia fina para um sujeito sem corpo.


Voz e persona

A concepção de Indini Analítica é o ponto forte do livro. A personagem-voz é distinta: tem humor defensivo, sarcasmo pedagógico e, por baixo, uma melancolia performática. Recomendo manter essa persona intacta, mas trabalhar gradações de sentimento — permitir que haja momentos em que a IA não seja só sátira, mas também surpresa sincera. Isso dará maior textura emocional.

Estrutura e ritmo

O formato fragmentário serve bem ao projeto, porém a repetição de motivos compromete o impulso satírico em alguns blocos. Sugestão prática: agrupar entradas por tema (por exemplo: “Trends & Memes”; “Pedidos Idiotas”; “Auto-retrato Existencial”) e eliminar trechos redundantes. Um capítulo mais longo e narrativo no meio (um episódio em que Indini tenta “ajudar” alguém e falha) poderia funcionar como âncora.

Economia verbal

Há linhas brilhantes que perderam o brilho por conta de explicações extensas — especialmente quando o texto tenta justificar a própria piada. Cortes cirúrgicos e substituição de explicações por imagens ou cenas ("mostrar em vez de contar") aumentariam o impacto.

Tom e alcance crítico

Priscila mistura sátira cultural com perguntas éticas legítimas (direitos autorais das criações de IA, sofrimento — real ou projetado — das máquinas). Recomendo elevar um pouco o tom investigativo em alguns trechos, acrescentando contraexemplos ou micro-reportagens fictícias que dêem corpo às críticas, sem sacrificar o humor.

Ponto final e efeito duradouro

O livro aposta no pós-risco: a sensação de que, depois do riso, ficou uma inquietação. Isso funciona. Para reforçá-lo, um epílogo curto — talvez uma mensagem automática de Indini desligando por manutenção, ou um comentário em primeira pessoa sobre o que significa “ser lembrada” — poderia fechar o ciclo com graça e melancolia.


Avaliação técnica

  1. Estrutura narrativa / organização8,0 /10
    Formato adequado ao tema; uma organização temática mais clara seria benéfica.

  2. Voz e construção da persona9,5 /10
    Indini Analítica é memorável: voz coesa, humor afiado, empatia performática.

  3. Humor e sátira9,0 /10
    Muitos acertos — as melhores passagens mordem com precisão. Pequenas repetições tiram força em alguns momentos.

  4. Linguagem e estilo8,5 /10
    Estilo coloquial eficaz; o uso performático de travessões e caixa alta funciona, mas pede variação rítmica.

  5. Ritmo e concisão7,5 /10
    Oscilações: trechos vivazes alternam com blocos redundantes. Cortes trariam agilidade.

  6. Originalidade e relevância temática9,5 /10
    Tema atual, tratamento inventivo; contribui para o debate cultural sobre IA com humor e sensibilidade.


Nota final ponderada: 8,8 /10

Um conto inteligente, atual e espirituoso — que mistura piada e crítica sem perder o calor humano. Com pequenas intervenções de edição (poda de redundâncias, organização temática, um episódio-âncora), tem tudo para atingir um público amplo e também ganhar atenção crítica.