8/23/2025

O lupanar* bem familiar da dona Sebastiana

– Pois esse meu amigo tinha uma espécie de tia, uma velhinha que eu conhecia de vista. Ela pintava de vez em quando no boteco dele pra comer mocotó numa travessa enorme, com pimenta vermelha e uma jarra de vinho tinto pra rebater.

– Ô, velha porreta!

– Um dia eu estava tomando cerveja com o cara e ele me contou essa história: a velhinha era aposentada e tinha trabalhado muito tempo num lugar onde havia muitas oportunidades de conhecer gente nova. Ela saiu de lá com uma porção de amigos, amigas, conhecidos, camaradas, o escambau, e resolveu adotar um meio de vida bem peculiar. Ela começou a “agenciar” encontros entre seus amigos e suas amigas. Normalmente eram velhinhos que estavam a fim de uma bimbada. Então ligavam para a casa dela, pedindo uma mulher assim assado, ou já pediam direto uma que fosse preferida deles. Então a tia ligava para a mulher e marcava uma ponta pra dali a dois, três dias.

– Mas que espécie de mulheres faziam esse tipo de programa?

– Aí que me caiu a bunda de espanto: eram mulheres casadas, algumas muito bem casadas. Tinha uma que era mulher de um fazendeiro, um puta mulherão, que ia dar o rabo porque gostava. De dinheiro ela não precisava. Só dá pra imaginar que o maridão não dava no couro, então ela ia lá pra levar ferro.

– Que coisa...

Yeah, sei que, um dia, um velhinho foi lá pra "dar de comer pro ganso". Chegou, tomou um uisquezinho na sala, sentado no sofá. A mulher que ele ia comer já tava lá, sentada numa poltrona. Na outra poltrona, a tia fazia tricô. Conversaram amenidades por meia hora, depois chegou a hora do vamo-vê. Foram os dois pro quarto, e a tia continuou no tricô, mas deu uma olhada discreta no relógio, no caso do velho passar do horário. Muy bien, de repente vem a gritaria de dentro do quarto: “ai ai ai, socorro! aaaaaai, aaaaai!”

– Putz, que foi que houve?

– A velha abriu a porta e se deparou com a cena: a mulher se torcia feito cobra doida debaixo do velho, que estava MORTO em cima dela. O cara tinha tido um troço no coração enquanto comia a donzela, e foi fulminante.

– Porra, isso é que é jeito de morrer!

– Sei que tiraram o velho de dentro daquela buceta e deitaram ele de costas. O pau do véio ainda tava de pé, feito mastro de bandeira. A puta começou a chorar, dizendo: “Dona fulana, ele tá morto, ele morreu, e agora?”. A véia disse: “Olha, põe a tua roupa e vai embora, eu me viro com esse presunto.”. Foi o que a mina fez. Então a velha se sentou na sala, pegou um uísque e começou a pensar no que fazer...

– Situação de bosta, hein?

– Sim, ela não podia chamar a polícia, porque ia acabar presa como assassina ou cafetina, ou os dois. Se livrar do presunto era mais arriscado e suspeito que chamar a polícia. Meio desesperada, ela ligou pra uma irmã, e disse: “Vem pra cá que tem um pepino dos grandes”. Quando a irmã chegou e soube do caso, se sentou e começou a pensar também. Sei que tiveram uma idéia...

– Que idéia?

– Pegaram o defunto, deram um banho e vestiram. Colocaram ele sentado na sala, com um copo d'água na mão. Na carteira dele, acharam um número de telefone e discaram. Era do trabalho da filha do véio. Aí a tia disse: “Ah, dona fulana, seu pai está aqui na minha casa. ele bateu na porta e disse que estava se sentindo mal, e pediu um copo d’água. Eu dei o copo d’água e vi que ele estava mal mesmo. Perguntei se ele queria entrar e sentar um pouco. Ele disse que sim e pediu pra ligar pro seu número. Por favor, venha pra cá que seu pai está mal!”

– Putz! E colou a história?

– Bom, meia hora depois chega a família em peso. Cercam o presunto no sofá. É claro que levam meio segundo pra descobrir que o velho estava morto. Quando o filho do cara diz isso, a tia faz o maior escândalo, e desata a chorar. Sei que começaram a consolar a tia! Agradeceram profusamente o fato de ela ter socorrido o velhinho, disseram que ele era cardíaco, com meia dúzia de pontes de safena. A história colou mais do que bem. A família acabou amiga da tia, deram presentes pra ela, inclusive deram dinheiro!

– Não acredito... e nunca souberam?

Nyet. Nunca desconfiaram que a tia armava bimbada pro véio... hehehe...

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(*) "Lupanar" é "puteiro", bando de ignorantes!

8/04/2025

Resenha Crítica – “Claire.exe”, de Lady Sacerdotisa


Se Philip K. Dick e Virginia Woolf tivessem tomado chá juntos num café pós-pandemia de Los Angeles – digamos, o Café Solaris na Hillhurst, com aqueles croissants amanteigados – talvez sonhassem algo como Claire.exe. Mas foi a Lady Sacerdotisa, essa autora novata da plataforma Inkspired (que, confesso, só descobri tardiamente por indicação da excelente Aria Zênite - @rainhadoimortal, no Threads), quem realmente trouxe essa jóia à vida. E olha, mereceu cada voto que lhe fez conquistar a medalha de prata no desafio “A Pintora” da plataforma. Não só pela inventividade, mas pela coragem emocional que raramente veio em ficções científicas desde que li Arrival pela décima vez.

A Máquina de Sentir (e como ela me fez chorar no metrô)

Claire.exe é sobre memórias que vazam – sabe aquelas que grudam na pele feito chiclete no asfalto? Não a memória RAM do seu notebook, mas a coisa woolfiana mesmo: confusa, cheia de buracos e dolorida feito cotovelo ralado. Claire, nossa gênia adolescente com pavor de sentimentos, tenta curar uma dor de amor com... pintura? Sim! E aqui a Sacerdotisa me fisgou: a garota acidentalmente recria o ex-namorado Matthew como um tamagochi emocional dentro de uma simulação neural. O troço devia ser uma fuga, mas vira um espelho torto daqueles de parque de diversões – distorce tudo, mas não te deixa mentir pra você mesma. Genial.

Pintura = Código? Até Monet viraria programador

A sacada mais doida: pintar virou programar sentimentos. Pinceladas viram linhas de código cheias de if/else emocionais. Tipo Monet fazendo backend em Java após três espressos. A autora evita o cyberpunk clichê (nada de neon e chuva ácida, graças a Deus) pra focar na dor real de uma adolescente tentando debugar o próprio coração.

Ah, e o ROXO! Nunca pensei que uma cor me daria arrepios literários. Aqui, roxo é resistência, raiva e cura – um símbolo tão bem costurado que eu sugeriria ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP fazer um seminário só sobre isso.

Matthew: O Ex-Namorado que Virou Vírus

Aqui a Sacerdotisa estraçalha a gente: Matthew começa como príncipe encantado (olhos verdes! ombros largos!), mas logo vira um parasita emocional controlador. A virada não é só narrativa – é um soco no estômago. A autora expõe como a gente programa fantasias tóxicas pra justificar feridas. Brutal.

Metadroid: Meu robô favorito (e possível crush ficcional)

Ironia das grandes: o andróide Metadroid é o ser mais humano da história. Enquanto humanos mentem, ele fica ali: paciente, leal, consertando placas com dedos de aço. A cena final dele com Claire na oficina suja? Perfeição. Não há cura tecnológica pra luto, só prosa suja de quem refaz a vida peça por peça.

Estilo: preciso, mas com alma

A escrita da Sacerdotisa tem a exatidão de um relógio suíço e a bagunça calorosa de um ateliê. Senti ecos de Clarice Lispector (aquela angústia existencial), mas com um ritmo de TikTok filosófico – rápido, visual, sem pieguice. Os diálogos da Claire adolescente soam reais, sem cair no drama de novela das 6.

Único senão: tanta camada, tão pouco fôlego?

Confesso: em alguns trechos, senti que o conto quase engasga na própria genialidade. Tanta idéia brilhante (memória! código! arte! luto!) num espaço curto me deixou exausto. Queria uma versão estendida – nem que fosse só pra ver o Metadroid fazendo mais piadas secas.

Conclusão: Conto para ler e reler compulsivamente

Claire.exe é daquelas raridades que cutucam sua ferida existencial com um ferro de soldar. Fala de solidão digital, arte como analgésico, e como um coração partido pode ser remendado com pincéis e Python. No fim, Claire descobre que companhia de verdade não vem de ex-namorados pixelados, mas daquilo que você monta na garagem da vida.

Lady Sacerdotisa não só foi pódio num desafio: criou um manual de sobrevivência emocional para a nossa era. É para usar em aulas de Escrita Criativa.

Nota pessoal: 9,3 (mas arredondaria pra 9,5 porque o Metadroid me conquistou)

Indicação: Leitura obrigatória pra quem já tentou curar dor de amor com Netflix e algoritmos. Spoiler: só arte + código-fonte salvam.

Resenha crítica do conto TRACE, de Aria Zênite

(O texto do conto pode ser lido em https://getinkspired.com/pt/story/606713/trace-pt-br/)

Na tradição da melhor ficção especulativa com alma adolescente — pense Black Mirror escrito por uma discípula de Clarice Lispector — o conto TRACE, de Aria Zênite, emerge não apenas como uma obra ganhadora de um concurso chamado “A Pintora” (da plataforma de publicações independentes Inkspired), mas como uma pequena jóia emocionalmente densa e surpreendentemente madura em seu uso do fantástico como espelho da dor. Em um mundo saturado de simulações e gadgets, o dispositivo mágico aqui não é um artifício cômico ou um truque escapista: é uma extensão da psique ferida de uma garota.

A protagonista, Nay, é apresentada com uma honestidade cortante logo nos primeiros parágrafos — abandonada no baile de formatura, exposta diante dos colegas, e emocionalmente desarmada. Há aqui uma ferida universal, e Aria Zênite a esculpe sem sentimentalismo piegas: sua dor é crua, ruidosa, íntima, e essencial. As falas iniciais — que poderiam resvalar para o dramalhão adolescente — são salvas pelo tom realista e por uma rara capacidade de ritmo e cadência nos diálogos. A autora tem ouvido.

E então vem o TRACE — o dispositivo estranho, a caixa pulsante, a metáfora tecnológica do luto emocional e da recusa em aceitar o irreversível. Não é exagero dizer que este pequeno objeto carrega em si a mesma força simbólica do espelho em Borges ou do aleph em, bem... O Aleph. Mas em vez de abrir janelas para o infinito, o TRACE oferece o convite mais perigoso de todos: o de reescrever o passado para torná-lo habitável.

É nesse ponto que o conto se expande para além de sua promessa inicial e toca em algo mais profundo: a questão da realidade subjetiva. Nay não quer apenas apagar a dor — ela quer reconstruir a si mesma por meio da arte. Cada desenho, cada floresta que brota, cada carta flutuante é uma tentativa de tornar tolerável o intolerável. Em outras palavras: arte como fuga, sim, mas também como reconquista do próprio eixo. A autora entende que o trauma raramente é superado com lógica — ele é metabolizado em camadas, com repetições, recaídas e lampejos de consciência.

A estrutura narrativa acompanha esse processo com fluidez quase cinematográfica. Aria conduz a leitura com um controle de tempo e alternância de cenários que lembram os melhores episódios de The OA ou Russian Doll, sem jamais perder o vínculo com o real. O momento em que Nay encontra o pai — vivo — e depois se dá conta da distorção temporal provocada pelos próprios desejos, é o equivalente emocional de um murro no estômago bem dirigido.

Talvez o maior mérito de TRACE seja justamente seu final. Aria Zênite, sabiamente, recusa a resolução fácil. O TRACE não é a redenção — é uma armadilha. E Nay, quando finalmente escolhe abandoná-lo, o faz não por resignação, mas por maturidade. Há algo de profundamente libertador em sua escolha de pintar, literalmente, o tablet quebrado. Como quem diz: “chega de atalhos; agora é só eu e o mundo real”.

Em termos estilísticos, a prosa é clara, fluida, e surpreendentemente lírica em certos trechos. Frases como “a dor não vai embora, filha. A gente só… constrói uma vida maior ao redor dela” soam autênticas porque foram merecidas pelo enredo — não impostas. O controle da voz narrativa é firme mesmo nas viradas mais surreais. E o ponto de vista de Nay — que envelhece emocionalmente ao longo da trama — é tratado com uma progressão notável.

É claro, o conto não está isento de tropeços menores. Certos trechos do meio ensaiam cair no didatismo, e há um ou outro diálogo onde o subtexto poderia ser mais sutil. Mas esses deslizes são marginais diante da potência emocional e conceitual do texto.

TRACE, em resumo, é um conto que honra sua premissa com coragem e inteligência. Aria Zênite demonstra domínio do gesto narrativo e entrega um texto que, embora breve, ressoa como um romance. Em tempos de distrações e narrativas ocas, eis aqui uma história que ousa perguntar: E se pudéssemos redesenhar a dor? E se a memória fosse um aplicativo? Mas, mais importante, ela responde: Sim, podemos... mas a vida de verdade só começa quando decidimos parar de editar.

Nota editorial:

O título do desafio — “A Pintora” — encontra em Nay não apenas uma personagem, mas um arquétipo moderno: a jovem que pinta para sobreviver ao naufrágio emocional e descobre que a arte não é consolo. É resistência. É escolha.

Nota crítica: 9,0 / 10

(Com direito a destaque em qualquer coletânea de contos contemporâneos sobre identidade e realidade expandida.)

7/14/2025

🧠 Como é que se vive depois de trinta anos de afeto?

Ou: Manual provisório do homem recém-só e intencionalmente irrecuperável

Sou um homem que atravessou três décadas de vida afetiva sem intervalos comerciais. Um relacionamento que começou em 1996 e terminou em 2014. Outro que começou em 2012 e terminou oficialmente em 8 de julho de 2025. Sim, houve sobreposição. Não, não vou explicar.

A verdade é que, pela primeira vez desde 1993, quando Itamar Franco ainda sorria e os celulares pesavam o mesmo que uma jaca, estou absolutamente só. Não “sozinho esperando alguém”. Só. Sem preâmbulo, sem rodapé, sem intenção. E, mais importante: sem projeto de mudança.

A questão não é sentimental, nem dramática. É topológica. Eu não estou ferido, apenas estou fora do mapa.

Por isso, achei justo escrever este pequeno manual de coping para quem se vê nessa estranha e inédita posição:

🧠 Como é que se vive depois de 30 anos de afeto contínuo? (Ou, como alguns amigos mais toscos diriam: “e agora, vai fazer o quê da vida?”)


I. A solidão ritualizada (com guardanapo de pano)

O primeiro erro é tentar “preencher o vazio”. A grande virada vem quando você percebe que o vazio não está pedindo nada. Ele só quer ser respeitado. Então, em vez de combatê-lo com barulho, preencha-o com rituais privados:

  • Um vinho decantado só para você, numa terça à noite.

  • Um jantar lento, com mise en place, mesmo que seja para uma única boca (a sua).

  • Um disco inteiro, ouvido no escuro, sem distrações, como se fosse uma missa laica. (Sim, leitorada, "disco" mesmo, ainda que no Spotify, Deezer, streaming, o lo que sea. Sou declaradamente antigo).

A solidão, quando ritualizada, vira território. E território se habita, não se decora com flores artificiais denominadas "expectativa amorosa".


II. Escrever como quem faz uma autopsia (e não à espera de um milagre)

Escreva, mas não para exorcizar fantasmas. Escreva como quem anota os dados do óbito de uma fase. Escreva assim:

“Hoje, não senti falta de dividir o sofá.”
“Não precisei negociar onde almoçar no domingo.”
“Não precisei justificar meu silêncio. Aleluia.”

Transforme isso num inventário. Você vai descobrir que boa parte da “companhia” era negociação, barulho, redundância. A ausência, nesse caso, é música ambiente, um belo Muzak.


III. Abster-se não é falência — é decisão editorial

Quando eu digo que não quero me envolver, não é blefe. Não é trauma. Não é medo de me machucar. É simplesmente o reconhecimento de que meu sistema operacional não roda mais esse tipo de aplicativo.

Eu olho para a idéia de “relacionamento” com o mesmo entusiasmo de um day trader que virou monge budista e olha para as cotações da B3, Dow Jones, NASDAQ e quejandos: pode até ser útil para os outros, mas ele não se vê mais ali.

E, sinceramente, isso não é triste, e sim libertador. É como parar de tentar ser fluente num idioma que nunca fez sentido.


IV. Sexo? Talvez. Amor? Só em condições atmosféricas experimentais

Não me tornei assexuado. Mas virei um hedonista vigilante.

Nada contra aventuras, corpos, noites interessantes. Desde que tudo venha sem embalagem emocional, sem promessas de cafoço (não falo brunch nem amarrado) no domingo, e sem aquela conversa fiada do tipo “o que nós somos?”.

Somos dois mamíferos adultos dividindo calor. E isso basta.


V. Crie um figurino para sua nova fase

Você não precisa se reinventar. Mas pode se estilizar.

Crie uma estética. Uma playlist para os dias bons. Um figurino para as noites de "entrega narcisista". Um perfume que diga “sou meu próprio date”. Isso não é vaidade — é identidade pós-romântica.

Vista-se como quem foi salvo de um naufrágio e agora bebe uísque em paz no litoral.


VI. Fuja dos "bons samaritanos"

Você vai encontrar gente querendo te “salvar”.

Vão dizer: “você vai mudar de idéia”, “é só fase”, “ainda vai encontrar alguém”.

A essas pessoas, ofereça um sorriso educado e o caminho da porta. Você não está doente, nem perdido. Só está onde está e, pela primeira vez, por escolha própria.


VII. Evite responder às carícias disfarçadas de preocupação

Sempre aparece alguém com um comentário meigo e envenenado:

“Mas você tem tanto a oferecer...”
“Você diz isso agora, mas o amor acontece quando menos se espera.”
“Nossa... que pena, alguém vai perder um homão desses.”

A essas pessoas, ofereça silêncio. Ou, num dia generoso, um trecho de Cioran ou Millôr. Porque não se trata de dor, mas de soberania.


VIII. E se um dia mudar de idéia?

Pode ser. Mas será exceção, não projeto.

Se um dia algo acontecer, será como encontrar uma pérola entre livros num sebo: inesperado, bonito e absolutamente dispensável.

Até lá, sigo bem. Indisponível emocionalmente. Afetivamente. Existencialmente. E com meu colesterol em dia, o que, honestamente, já é uma vitória.


Para encerrar...

Este não é um texto de lamento nem de provocação. É pura e simples constatação: depois de três décadas de amor, apego, partilha, tentativa e tropeço, estou só. E mais do que isso: estou inteiro.

A vida continua, como sempre continuou, mas agora com menos ruído e mais espaço interno.

Se é definitivo? Não sei. Mas é o agora — e o agora, neste caso, é perfeitamente suficiente.

6/21/2025

Antônio Pinto e a minha estréia como orador fúnebre — com batina e tudo

Era fim de tarde em São Paulo, setembro de 1988. A primavera ainda ensaiava seu retorno, mas o ar tinha aquela melancolia concreta que só os fins de tarde na Dr. Arnaldo conseguem destilar. Eu estava de férias do Banco do Brasil — o que significava, para mim, liberdade remunerada e tempo para as pequenas grandes missões da vida urbana.

A missão do dia: comprar cordas novas para o meu baixo Wal MK2 de 5 cordas e para minha intimorata Fender Stratocaster. Fui à Teodoro Sampaio como quem vai a Meca — e depois da visita sagrada à loja de instrumentos, resolvi ir a pé até a Dr. Arnaldo. Caminhar por São Paulo, naquela época, era uma forma honesta de meditação.

Foi nesse caminho que a realidade resolveu tropeçar na ficção.

Ao passar em frente ao Cemitério do Araçá, fui abordado por um homem de aparência aflita e ternura institucional. Ele me fitou por alguns segundos, mediu minha aparência — e talvez minha alma — e disparou, sem introdução:

— Moço, o orador do velório não apareceu. O senhor não poderia dizer algumas palavras pelo falecido?

Olhei em volta: flores, tristeza, um punhado de parentes e um caixão modesto. O falecido, fui informado, se chamava Antônio Pinto. Um nome ao mesmo tempo singelo e cômico, daqueles que a gente ouve e pensa: esse homem deve ter tido uma vida honesta e alguns apelidos inevitáveis.

Agora, um detalhe importante: eu tinha 17 anos, mas aparentava bem mais. Sempre tive essa cara de quem já leu Santo Agostinho no original e está pronto para dar conselhos sobre castidade e política tributária. Naquele dia em especial, vestia camisa fechada até o último botão, cabelo penteado para o lado e um ar de seminarista prestes a ser promovido a vigário.

Talvez tenha sido esse conjunto que motivou a sugestão do grupo enlutado: “Tem uma batina aqui, do orador que faltou. Serve em você?”

E como não aceitar? Em plena São Paulo dos anos 80, com a alma aberta à aventura e a mente embriagada de cordas novas, aceitei vestir a batina e o papel. E ali, com o sol morrendo sobre os túmulos e as pessoas se ajeitando em volta como quem espera o sermão da montanha, subi numa pequena elevação e fiz o que se esperava de mim: improvisei um discurso fúnebre. Um improviso sacro-profano, delirante e sincero, que transcrevo abaixo sem cortes nem pudores:

---

"Irmãos, aqui estamos irmanados num congestionamento de sentimentos profundos.

Temos que aceitar. Porque assim é a trajetória. Assim é (sic) os desígnios.

Meus amigos, hoje perdemos Antônio Pinto! Aqui está Antônio Pinto calmo, sereno, descansando. Acabou a sua responsabilidade.

SABEMOS... que, como todos nós, o senhor Antônio Pinto seguiu por trajetos difíceis. Foi uma batalha.

Este homem, Antônio Pinto, foi um batalhador incansável, que, depois de tantas lutas, de tantos entreslevros (sic), cansou, desanimou, não tinha mais motivação.

POR MAIS QUE SE ESFORÇASSE, não conseguia mais enfrentar as batalhas. Senhor Antônio Pinto foi chacoalhado, prensado pelo mundo, por este mundo cheio de apertos! Por este mundo que vai pra lá e vai pra cá!

Este homem, Antônio Pinto, segue, e deixa — para seguir seus passos, seus caminhos — o seu sobrinho, que tem vitalidade para pegar na batalha.

Este homem, senhor Antônio Pinto, muitas vezes foi agressivo. Outras vezes, recuava. E, muitas vezes, curvava-se humilhado pela situação.

Agora, Antônio Pinto segue para as alturas. TENHO CERTEZA de que ele está me ouvindo neste momento. SENHOR ANTÔNIO PINTO, NÃO SE ENVERGONHE! NÃO SE ENVERGONHE DE SEUS FRACASSOS.

Lembre-se sempre, apenas, dos momentos em que você foi chamado à responsabilidade e compareceu de forma brilhante, de forma rígida, como um torpedo enlouquecido.

Como um torpedo enlouquecido! Como uma cascavel, uma urutu, que se desenrola e se envereda pelos pântanos.

Não podemos condenar ninguém. Aqui, por exemplo, deparo com pessoas. O que cada um de nós fez ontem à noite? Vejo pessoas com o rosto descansado. Outras com olheiras profundas. Alguns dormiram. Outros, talvez, tomando banho, tiveram pensamentos alucinados. Outros estudaram. E outros, provavelmente, debandaram em badernas profundas.

VÁ, ANTÔNIO PINTO, VÁ! A vida é igual para todos! Só nos resta dizer ao Antônio Pinto, que aqui está escangalhado... escangalhado... adeus! Vá, Antônio Pinto, e descanse verdadeiramente!"

---

O silêncio que se seguiu foi tão completo que ouvi uma flor cair. Uma senhora enxugou discretamente os olhos. Um senhor pigarreou. Um jovem me olhou com ar de revelação. Eu, suando sob a batina, não sabia se era um novo João Batista ou apenas o protagonista de uma peça de Ionesco encenada por engano num enterro.

Mas fiz o que era preciso. Dei a Antônio Pinto sua passagem — e a mim mesmo, um batismo de absurdo.

Nunca mais vesti batinas, tampouco fui convidado para outros velórios aleatórios. Mas a cada vez que passo pela Dr. Arnaldo e vislumbro os muros do Araçá, me pergunto se, em algum túmulo, repousa alguém esperando que eu repita: “Como um torpedo enlouquecido… como uma cascavel…”

E talvez seja isso que nos salva: a capacidade de transformar o insólito em rito, o improviso em memória, e o Antônio Pinto em lenda.

5/27/2025

🎻 Instrução Prática (de Natália Paz) — Quando o erotismo se escreve em clave de sol


Um conto que pulsa entre o desejo e a contenção, a música e o corpo, com prosa refinada e tensão narrativa digna dos grandes mestres.

Poucos textos contemporâneos conseguem, com tanta elegância e densidade sensorial, conjugar erotismo e literatura sem escorregar em clichês ou vulgaridades. Instrução Prática, conto de Natália Paz, não apenas entra nesse seleto grupo — ele o eleva.

Desde os primeiros parágrafos, a ambientação se impõe como elemento narrativo por si só. O estúdio de música não é cenário: é pele, nervo, verniz, respiração contida. A autora constrói um espaço vivo, impregnado de memória, som e tensão, onde o desejo não é gritado, mas ressoado — como um grave de violoncelo que vibra por dentro da pele do leitor.

A metáfora entre ensino musical e sedução não é inédita — mas aqui, é reinventada com uma sofisticação que beira o literariamente sinestésico. A linguagem é refinada, cheia de pausas milimetricamente calculadas, frases que prendem o fôlego e silêncios que dizem mais que muitas palavras. A autora domina o tempo narrativo como quem rege uma partitura de câmara: alternando passagens lentas, sensuais, com crescendos que ameaçam romper o compasso da contenção.

Vicente, o ex-solista marcado pela perda física, e Sofia, a prodígio orgulhosa recém-chegada de Viena, formam um dueto emocionalmente denso. A relação deles é feita de gestos contidos, silêncios carregados e toques que, ao mesmo tempo, ensinam e imploram. A tensão entre mestre e aluna, que poderia facilmente escorregar para o óbvio, aqui é executada com camadas de ambigüidade e reciprocidade que revelam personagens humanos, falhos, sensíveis — e, sobretudo, cúmplices em sua busca pelo indizível.

Há uma ousadia estilística especialmente marcante no final do conto: a quebra metalinguística, que devolve ao leitor seu próprio corpo como parte da narrativa. É um risco — e um acerto. O texto se fecha num gesto circular que queima devagar na tela e na pele de quem lê.

Se há uma “chatice” possível, é talvez o excesso ocasional de lirismo em duas ou três imagens — mas mesmo esses momentos se justificam dentro da atmosfera febril que o texto constrói.


🌟 Avaliação Técnica:

  • Enredo e História: ★★★★★
    A história cativa desde a primeira frase e sustenta a tensão até o fim. Bem ritmada, com ótimo equilíbrio entre o sensual e o narrativo.

  • Qualidade e Estilo: ★★★★★
    Linguagem sofisticada, criativa, precisa. Raras vezes o erotismo foi narrado com tamanha contenção e potência.

  • Desenvolvimento de Personagem: ★★★★☆
    Vicente e Sofia têm ótima densidade emocional, embora talvez coubesse um leve aprofundamento maior em Vicente.

  • Originalidade e Potencial: ★★★★★
    A fusão entre música, desejo e linguagem funciona de forma original, com grande potencial para conquistar leitores exigentes.

  • Impressão Geral: ★★★★★
    O conto provoca arrepios e mantém a temperatura da leitura alta até o fim. Um dos melhores textos eróticos literários nacionais recentes.


Leia com fôlego — e com cuidado. Mas leia. Porque certos textos merecem vibrar dentro da gente como cordas bem afinadas.

Véspera (de Natália Paz) – A anatomia de um império em combustão lenta

(Link para o conto: https://getinkspired.com/story/575044/v-spera)

Há contos que se lêem com prazer. Outros, com adrenalina. Véspera, de Natália Paz, exige ser lido com o corpo todo: pupilas dilatadas, respiração suspensa, mãos tensas na borda da cadeira ou da poltrona. É uma narrativa que sangra e arde — não só pela temática, mas pelo modo como sua autora domina o ritmo, o espaço e, sobretudo, o silêncio entre os tiros.

A história começa no meio de um colapso: Gregório chega baleado, Lorena o costura com linha de pesca embebida em vodca, e a pergunta que paira — “de onde veio o tiro?” — não é apenas literal. É também moral, afetiva, política. O que se segue é uma sinfonia de tensão, sexo, memória e traição costurada com frases afiadas e diálogos que ressoam como disparos.

Lorena: a anti-heroína definitiva

A protagonista é o grande trunfo do conto. Quando Lorena diz, entre sangue e luxúria, “Ou dominamos o mundo ou ele engole a gente”, não está apenas definindo seu pacto com Gregório — está estabelecendo a lógica do próprio texto. Ela não é boazinha, não busca redenção. É astuta, letal, magnética. E o melhor: a autora nunca nos pede que simpatizemos com ela. Lorena nos conquista pela inteligência, pela sensualidade instrumentalizada e pela brutalidade lúcida de quem já não separa sobrevivência de poder.

Um dos momentos mais impactantes é quando, diante do corpo do amante traidor, Lorena murmura “Você sempre foi um teimoso de merda”, deixando cair o revólver. A frase, aparentemente banal, carrega em si um oceano de mágoa contida e amor diluído em ódio. É esse tipo de detalhe — de escrita e atuação emocional — que eleva o texto.

Prosa cinematográfica, estrutura precisa

Natália Paz demonstra domínio técnico notável. Sua prosa é sensual sem ser gratuita, violenta sem ser vulgar. Ela escreve como quem filma com palavras: cada cena é visual, ritmada, intensamente física. As transições entre o presente e os flashbacks são fluídas, nunca artificiais — e sempre funcionais à construção dramática. Não há enfeite: tudo serve à tensão.

Há ecos de Quentin Tarantino, especialmente na violência estilizada e nos diálogos carregados de tensão sexual. Mas Véspera não é pastiche. É releitura autoral com sotaque latino e sangue quente. Uma espécie de Amores Perros com a pulsação de Cidade de Deus, mas com uma mulher no centro da guerra — e no controle do jogo.

O que poderia ser ajustado

Como toda crítica que se preze, vale uma pequena nota de ressalva: o conto talvez seja tão ambicioso em sua carga dramática que quase transborda o espaço do formato curto. São muitos elementos — PF, helicóptero, plano de fuga, dossiês, sexo tático, incêndio, duplo twist — e há momentos em que o leitor quase precisa parar para reorganizar as peças. Nada grave, mas um ajuste fino aqui e ali deixaria a curva dramática ainda mais precisa.

Além disso, certas metáforas simbólicas (a costura, por exemplo) são belíssimas na primeira aparição, mas poderiam ser um pouco mais econômicas ao retornarem — efeito de revisão mais do que de concepção.

Conclusão: um conto que queima bem depois da última linha

Véspera é um conto que não pede licença. Abre a porta com o pé, atira antes de perguntar e deixa fumaça no ar muito tempo depois da leitura. Lorena já nasce clássica. Gregório é trágico sem perder a dignidade. E Rui... bem, Rui é o canalha necessário para manter a roda girando.

O conto poderia ser um episódio impecável de uma série noir brasileira (fica a sugestão para produtores atentos). Mas, enquanto isso, é literatura viva, vibrante e com uma protagonista que parece ter sido desenhada com lâmina em vez de teclas.


Avaliação

Enredo e História: ★★★★☆

(Narrativa eletrizante, mas um pouco saturada de eventos para o espaço de um conto)

Qualidade e Estilo: ★★★★★
(Prosa segura, sensorial, com domínio técnico e ritmo afiado)

Desenvolvimento de Personagem: ★★★★★
(Lorena é inesquecível; os secundários têm peso, voz e função)

Originalidade e Potencial: ★★★★☆
(A execução é brilhante; a estrutura básica do gênero é conhecida, mas revitalizada com frescor e inteligência)


Total: 4,5 estrelas de 5
Leitura indispensável para quem gosta de crime, tensão sexual e personagens que não devem nada a ninguém — muito menos ao leitor.