O seu copo está meio cheio ou meio vazio?
Essa experiência é considerada uma maneira de diferençar os pessimistas dos otimistas. A lição é inequívoca — uma diferença fundamental de percepção pode levar a um enfoque profundamente diferente em relação à vida.
As críticas de Nietzsche aos estóicos expõem esse tipo de diferença fundamental. é um conflito de filosofias que nos permite refletir sobre como a nossa percepção do mundo forma nossa compreensão dele, e como podemos encontrar significado nele.
Existe um ponto em comum entre a filosofia de Nietzsche e a dos estóicos. Ambos acreditavam que as pessoas não tinham "livre arbítrio" — ou seja, não desempenhamos um papel ativo em nossos destinos.
Porém, Nietzsche é famosos por seus ataques sarcásticos, e o estoicismo é alvo de vários desses ataques, especialmente nos últimos escritos de Nietzsche.
A principal "pinimba" do filósofo do século XIX com os estóicos é a insistência da escola de Sêneca e Marco Aurélio em que seus seguidores deveriam "viver de acordo com a natureza". Esse é o princípio central dos estóicos, que acreditavam que o cosmo e Deus são um só e, portanto, havia uma ordem no cosmo.
Vale mencionar aqui que "natureza" não significa "o mundo natural" (árvores, animais, etc), e sim o cosmo — o todo absoluto do qual fazemos parte.
Viver em conformidade com a natureza é viver de forma racional. Isso porque os estóicos acreditavam que a capacidade distintiva da espécie humana é o pensamento racional. Nenhuma outra espécie tem essa capacidade. Eles acreditavam que a ordem do cosmo se reflete na ordem das nossas mentes.
Ser racional é alcançar a felicidade e a tranqüilidade da mente (“Eudaimonia”), porque assim a pessoa segue o fluxo do cosmo, e não caminha contra ele.
Um Mundo Sem Sentido
Para Nietzsche, a natureza — o cosmo — é um hipercaos sem Deus. Qualquer “ordem” no mundo é apenas acidental.
As chamadas leis da natureza são apenas o comportamento arbitrário dos fenômenos, que podem muito bem mudar ao longo do tempo. Ver “leis” na natureza não é nada além de perceber padrões e acreditar que eles seguem regras. Quem cria leis e regras são as pessoas, não a natureza.
Nietzsche acreditava que os estóicos se iludiam ao pensar que, escondido nessas supostas leis da natureza, existe um caminho ideal que os seres humanos poderiam seguir. Isso seria a “virtude”, que, para os estóicos, era o mesmo que “viver de acordo com a natureza”.
Mas para um filósofo cético como Nietzsche, não existe nenhuma noção ideal de “virtude” esperando para ser descoberta pelos seres humanos. Em vez de nos conformarmos com um comportamento ideal imaginado, Nietzsche acreditava que cada pessoa devia encontrar seu próprio caminho.
Num mundo caótico e sem sentido, devemos aspirar a criar nosso próprio ideal de nós mesmos, nos nossos próprios termos. A filosofia de Nietzsche enfatiza a criatividade e a exuberância do indivíduo, ao contrário das “morais de rebanho” das filosofias sistemáticas (como o estoicismo) e das religiões.
Há duas razões pelas quais Nietzsche critica a doutrina estóica de viver de acordo com a natureza.
Em primeiro lugar, Nietzsche destaca que, se observarmos o cosmo (o que os estóicos chamam de “natureza” nesse contexto), ele é caótico e desprovido de sentido. Conjuntos inimagináveis de sóis e planetas são destruídos num piscar de olhos por explosões cósmicas; todos os dias, neste planeta, milhões de animais devoram outros animais para sobreviver. As coisas simplesmente acontecem. O cosmo é totalmente indiferente.
Para Nietzsche, não há propósito nem razão na natureza. Como os estóicos acreditavam que a natureza era um ser vivo em si, Nietzsche nos pede que imaginemos uma criatura como a natureza para ilustrar seu argumento:
Gemäss der Natur" wollt ihr leben? Oh ihr edlen Stoiker, welche Betrügerei der Worte! Denkt euch ein Wesen, wie es die Natur ist, verschwenderisch ohne Maass, gleichgültig ohne Maass, ohne Absichten und Rücksichten, ohne Erbarmen und Gerechtigkeit, fruchtbar und öde und ungewiss zugleich, denkt euch die Indifferenz selbst als Macht - wie könntet ihr gemäss dieser Indifferenz leben?
Quereis viver ‘de acordo com a natureza’? Oh, nobres estóicos, que engano verbal! Imaginai um ser como a natureza realmente é: desmedidamente pródiga, desmedidamente indiferente, sem propósito nem escrúpulos, sem compaixão nem justiça, ao mesmo tempo fecunda e estéril, incerta — imaginai a própria Indiferença como força — como poderíeis viver de acordo com tal indiferença? (Em tradução minha).
(Além do Bem e do Mal, 1:9)
Em segundo lugar, Nietzsche aponta a contradição óbvia da aspiração de viver em conformidade com a natureza: nós já somos natureza. Viver de acordo com a natureza é simplesmente… viver. É uma tautologia semelhante à expressão “viver de acordo com a vida” — bem, isso já acontece.
Und gesetzt, euer Imperativ "gemäss der Natur leben" bedeute im Grunde soviel als "gemäss dem Leben leben" - wie könntet ihr's denn nicht? Wozu ein Princip aus dem machen, was ihr selbst seid und sein müsst? (...) ist denn der Stoiker nicht ein Stück Natur?
E supondo que o vosso imperativo ‘viver conforme a natureza’ signifique, no fundo, o mesmo que ‘viver conforme a vida’ — como poderíeis fazer diferente? Por que transformar em princípio aquilo que vocês mesmos são e têm de ser? (…) — acaso não seria o estóico também parte da natureza? (Em tradução minha).
(ibid.)
Nietzsche suspeita que o verdadeiro imperativo seja, na verdade, o oposto: em vez de a natureza dar significado e propósito ao estóico, é o estóico quem impõe um significado e propósito à natureza.
In Wahrheit steht es ganz anders: indem ihr entzückt den Kanon eures Gesetzes aus der Natur zu lesen vorgebt, wollt ihr etwas Umgekehrtes, ihr wunderlichen Schauspieler und Selbst-Betrüger! Euer Stolz will der Natur, sogar der Natur, eure Moral, euer Ideal vorschreiben und einverleiben, ihr verlangt, dass sie "der Stoa gemäss" Natur sei und möchtet alles Dasein nur nach eurem eignen Bilde dasein machen - als eine ungeheure ewige Verherrlichung und Verallgemeinerung des Stoicismus!
Na verdade, a situação é bem diferente: ao fingirdes que leis com êxtase o cânon de vossa lei na natureza, quereis na realidade o contrário, ó extravagantes atores e enganadores-de-si-mesmos! Vosso orgulho quer ditar à natureza — sim, à própria natureza — a vossa moral e o vosso ideal, quer impor-lhos e incorporá-los nela; exigis que ela seja “natureza segundo a Stoa” e desejais moldar toda a existência à imagem de vós mesmos — como uma imensa e eterna glorificação e universalização do estoicismo! (Em tradução minha)
(ibid.)
A acusação que Nietzsche faz aqui é semelhante ao que chamamos de “falácia patética”. Isso acontece quando projetamos atributos humanos em animais, objetos inanimados ou mesmo na natureza como um todo (pense, por exemplo, na “Mãe Natureza”). “Propósito” e “significado” são conceitos humanos que existem apenas em nossas mentes. Percebemos “ordem” apenas porque o universo se comporta de maneira coerente para nós.
As filosofias do mundo antigo com as quais Nietzsche mais se identificava eram o ceticismo e o cinismo. Nietzsche era o que chamaríamos de “perspectivista” — ele acreditava que nenhum ser humano tem realmente acesso à verdade objetiva.
Segundo Nietzsche, só entendemos o mundo do nosso ponto de vista particular. Em última análise, não existe verdade a ser descoberta, pois "verdade", como "propósito" e "significado", não existe fora da consciência humana.
Um delírio patológico?
Os céticos tinham uma visão semelhante. O fundador da escola, Pirro de Élis (~360 —~270 a.C.), recusava-se a “endossar” qualquer opinião sobre qualquer assunto, porque nenhuma poderia ter base firme na verdade. Para Pirro, as opiniões que temos sobre o mundo, na verdade, nos deixam infelizes (porque o mundo nunca será como desejamos).
Nietzsche, seguindo figuras como Pirro, refutou a idéia de que os seres humanos pudessem realmente ter acesso a verdades profundas. As palavras, afinal, só se referem a outras palavras. Ele escreveu sobre o estoicismo:
Mit aller eurer Liebe zur Wahrheit zwingt ihr euch so lange, so beharrlich, so hypnotisch-starr, die Natur falsch, nämlich stoisch zu sehn, bis ihr sie nicht mehr anders zu sehen vermögt, - und irgend ein abgründlicher Hochmuth giebt euch zuletzt noch die Tollhäusler-Hoffnung ein, dass, weil ihr euch selbst zu tyrannisiren versteht - Stoicismus ist Selbst-Tyrannei -, auch die Natur sich tyrannisiren lässt: ist denn der Stoiker nicht ein Stück Natur?
Com todo o vosso amor pela verdade, forçais-vos por tanto tempo, tão obstinadamente, com uma rigidez quase hipnótica, a ver a natureza de modo falso — isto é, de modo estóico — até que não mais sois capazes de vê-la de outra maneira; e, por fim, alguma soberba insondável ainda vos inspira a esperança de loucos de que, porque sabeis tiranizar a vós mesmos — o estoicismo é auto-tirania —, a natureza também se deixará tiranizar: acaso o estóico não é ele próprio parte da natureza? (Em tradução minha)
(ibid.)
Essa é uma crítica bastante feroz ao estoicismo — a ideia de que a filosofia estóica é mais um sintoma psicológico do que uma visão de mundo.
Os estóicos são retratados aqui como alucinados (loucos), com uma auto-tirania que eles ilusoriamente esperam impor ao universo. Tal esperança é vã, porque a natureza engloba tudo dentro de si, incluindo aqueles que afirmam saber como ela funciona. Suas teorias seriam, então, delírios patológicos.
Nietzsche previu a chamada “virada linguística” na filosofia do século XX. Filósofos passaram a examinar a própria linguagem como a raiz dos “problemas da filosofia”. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein acreditava que todos os problemas filosóficos eram simplesmente “quebra-cabeças de linguagem” que precisavam ser resolvidos.
Para filósofos como Nietzsche e, mais ainda, Wittgenstein, a linguagem é uma ferramenta que os seres humanos usam para alcançar objetivos. Pensar que a linguagem é capaz de descrever o mundo como ele realmente é leva a grande confusão e contradição. Quando perguntamos “o que é o mal?” ou “o que é o real?”, estamos apenas mal-entendendo e mal-usando palavras como “mal” e “real”.
Nietzsche, ainda que critique o estoicismo, acredita que ele caiu na mesma armadilha geral em que todas as filosofias acabam caindo.
Aber dies ist eine alte ewige Geschichte: was sich damals mit den Stoikern begab, begiebt sich heute noch, sobald nur eine Philosophie anfängt, an sich selbst zu glauben. Sie schafft immer die Welt nach ihrem Bilde, sie kann nicht anders; Philosophie ist dieser tyrannische Trieb selbst, der geistigste Wille zur Macht, zur "Schaffung der Welt", zur causa prima.
Mas esta é uma velha e eterna história: o que aconteceu outrora com os estóicos acontece ainda hoje, tão logo uma filosofia começa a crer em si mesma. Ela cria sempre o mundo à sua própria imagem, não pode agir de outro modo; a filosofia é esse impulso tirânico em si, a mais espiritual vontade de poder, a “criação do mundo”, a causa prima. (Em tradução minha).
(ibid.)
Essa ideia é muito semelhante à alegoria de Borges sobre o mapa e o território. Um cartógrafo deseja criar um mapa tão preciso que tenha proporção de 1:1 com o território. O mapa — a imagem do mundo — passa a ser confundido com o próprio mundo. Os filósofos, argumenta Nietzsche, começam a acreditar tanto em suas teorias que essas teorias passam a moldar sua visão da realidade.
Esse é o tipo de “loucura” coletiva que o filósofo descreve quando disse:
Der Irrsinn ist bei Einzelnen etwas Seltenes, - aber bei Gruppen, Parteien, Völkern, Zeiten die Regel.
Nos indivíduos, a insanidade é rara; mas nos grupos, nos partidos, nas nações e nas épocas, é a regra. (Em tradução minha)
(Além do Bem e do Mal, 156)
A Razão como Evidência por Si Mesma
Então como um estóico responderia a um ataque tão devastador?
Uma forma de responder seria partir de primeiros princípios. Epicteto, filósofo do século I d.C., argumenta em seus Discursos que nossa razão é uma verdade evidente por si mesma. Ele ensinou:
[1] ὕλη τοῦ καλοῦ καὶ ἀγαθοῦ τὸ ἴδιον ἡγεμονικόν, τὸ σῶμα δ᾽ ἰατροῦ καὶ ἀπἀλείπτου, ὁ ἀγρὸς γεωργοῦ ὕλη: ἔργον δὲ καλοῦ καὶ ἀγαθοῦ τὸ χρῆσθαι ταῖς φαντασίαις κατὰ φύσιν. [2] πέφυκεν δὲ πᾶσα ψυχὴ ὥσπερ τῷ ἀληθεῖ ἐπινεύειν, πρὸς τὸ ψεῦδος ἀνανεύειν, πρὸς τὸ ἄδηλον ἐπέχειν, οὕτως πρὸς μὲν τὸ ἀγαθὸν ὀρεκτικῶς κινεῖσθαι, πρὸς δὲ τὸ κακὸν ἐκκλιτικῶς, πρὸς δὲ τὸ μήτε κακὸν μήτ᾽ ἀγαθὸν οὐδετέρως. [3] ὡς γὰρ τὸ τοῦ Καίσαρος νόμισμα οὐκ ἔξεστιν ἀποδοκιμάσαι τῷ τραπεζίτῃ οὐδὲ τῷ λαχανοπώλῃ, ἀλλ᾽ ἂν δείξῃς, θέλει οὐ θέλει, προέσθαι αὐτὸν δεῖ τὸ ἀντ᾽ αὐτοῦ πωλούμενον, οὕτως ἔχει καὶ ἐπὶ τῆς ψυχῆς. [4] τὸ ἀγαθὸν φανὲν εὐθὺς ἐκίνησεν ἐφ᾽ αὑτό, τὸ κακὸν ἀφ᾽ αὑτοῦ. οὐδέποτε δ᾽ ἀγαθοῦ φαντασίαν ἐναργῆ ἀποδοκιμάσει ψυχή, οὐ μᾶλλον ἢ τὸ Καίσαρος νόμισμα. ἔνθεν ἐξήρτηται πᾶσα κίνησις καὶ ἀνθρώπου καὶ θεοῦ.
[1] A matéria (hylē) do homem belo e bom (kalos kagathos, isto é, do virtuoso) é o seu próprio hegemonikón (a faculdade dirigente da alma); já o corpo é matéria para o médico e para o massagista, e o campo é matéria para o agricultor. A obra (ergon) do homem belo e bom é fazer uso das representações (phantasiai) de acordo com a natureza. [2] Toda alma é naturalmente inclinada a dar assentimento ao verdadeiro, recusar o falso e suspender o juízo (epoché) sobre o que é incerto; assim também, ela é movida com desejo (orektikōs) em direção ao bem, com aversão para longe do mal, e, quanto ao que é nem bom nem mau, permanece neutra. [3] Pois, do mesmo modo que não é permitido ao banqueiro ou ao vendedor de legumes rejeitar a moeda do César, mas, apresentada a moeda, queira ou não queira, ele deve aceitá-la em troca do que vende, assim também acontece com a alma. [4] Uma vez que o bem se apresente, ele move a alma imediatamente em direção a si; e, da mesma forma, quando o mal se apresenta, afasta a alma de si. Jamais uma alma rejeita uma representação clara do bem, não mais do que rejeitaria a moeda do César. Daí dependem todos os movimentos tanto dos seres humanos quanto dos deuses. (Em tradução minha)
Nesse sentido, Epicteto concorda com Nietzsche ao afirmar que nada na vida é “bom” ou “mau” em si mesmo — apenas nosso pensamento torna as coisas assim. O valor de, digamos, o dinheiro, existe apenas em nossas mentes. Os estóicos também eram perspectivistas.
A natureza — ou melhor, tudo no cosmo — não tem valor intrínseco. Tudo é “indiferente” — nada significa coisa alguma até que nós lhe atribuamos significado. Esse é um aspecto central do pensamento estóico.
Apenas a razão confere significado e propósito ao mundo, e a razão é evidente por si mesma — nós a usamos a cada instante em que fazemos juízos sobre as coisas.
Provavelmente partindo desse princípio, os estóicos construíram uma teologia mais “racional” do panteísmo, que lhes permite descrever o funcionamento do mundo.
Tudo o que é matéria — todas as coisas indiferentes no mundo — é animado por uma razão divina (logos). Se encontramos significado nas coisas, então nossa faculdade racional deve refletir uma razão superior. Como meros fragmentos do universo, não podemos compreender essa razão superior, mas podemos observá-la na relativa previsibilidade de causa e efeito.
Assim, a diferença fundamental entre Nietzsche e os estóicos está em saber se o cosmos é ordenado ou caótico.
Quem acredita numa ordem última no cosmo encontra virtude e até felicidade no código-fonte da existência. Quem acredita no caos último buscará dentro de si mesmo o significado.
A advertência de Nietzsche foi que, se ficarmos entre esses dois caminhos, dogmas que impõem ordem ao mundo acabarão impondo ordem sobre nós mesmos como indivíduos.
Como o próprio Nietzsche escreveu em "Assim Falava Zaratustra (Parte I, Prefácio de Zaratustra, cap. 5):
Ich sage euch: man muss noch Chaos in sich haben, um einen tanzenden Stern gebären zu können. Ich sage euch: ihr habt noch Chaos in euch.
Eu vos digo: é preciso ainda ter caos dentro de vós para poder dar à luz uma estrela bailarina. Eu vos digo: ainda tendes caos dentro de vós. (Em tradução minha)
Nietzsche é um grande desconstrutor, um grande crítico. Suas intuições são como raios-X — penetram a superfície dos dogmas e teorias com os quais ele trava combate. Suas críticas fariam qualquer estóico refletir.
Mas a lição da crítica de Nietzsche é, em última análise, esta: a maneira como encontramos significado e propósito depende de como enxergamos o mundo. O seu copo está meio cheio, ou meio vazio?