5/27/2025

🎻 Instrução Prática (de Natália Paz) — Quando o erotismo se escreve em clave de sol


Um conto que pulsa entre o desejo e a contenção, a música e o corpo, com prosa refinada e tensão narrativa digna dos grandes mestres.

Poucos textos contemporâneos conseguem, com tanta elegância e densidade sensorial, conjugar erotismo e literatura sem escorregar em clichês ou vulgaridades. Instrução Prática, conto de Natália Paz, não apenas entra nesse seleto grupo — ele o eleva.

Desde os primeiros parágrafos, a ambientação se impõe como elemento narrativo por si só. O estúdio de música não é cenário: é pele, nervo, verniz, respiração contida. A autora constrói um espaço vivo, impregnado de memória, som e tensão, onde o desejo não é gritado, mas ressoado — como um grave de violoncelo que vibra por dentro da pele do leitor.

A metáfora entre ensino musical e sedução não é inédita — mas aqui, é reinventada com uma sofisticação que beira o literariamente sinestésico. A linguagem é refinada, cheia de pausas milimetricamente calculadas, frases que prendem o fôlego e silêncios que dizem mais que muitas palavras. A autora domina o tempo narrativo como quem rege uma partitura de câmara: alternando passagens lentas, sensuais, com crescendos que ameaçam romper o compasso da contenção.

Vicente, o ex-solista marcado pela perda física, e Sofia, a prodígio orgulhosa recém-chegada de Viena, formam um dueto emocionalmente denso. A relação deles é feita de gestos contidos, silêncios carregados e toques que, ao mesmo tempo, ensinam e imploram. A tensão entre mestre e aluna, que poderia facilmente escorregar para o óbvio, aqui é executada com camadas de ambigüidade e reciprocidade que revelam personagens humanos, falhos, sensíveis — e, sobretudo, cúmplices em sua busca pelo indizível.

Há uma ousadia estilística especialmente marcante no final do conto: a quebra metalinguística, que devolve ao leitor seu próprio corpo como parte da narrativa. É um risco — e um acerto. O texto se fecha num gesto circular que queima devagar na tela e na pele de quem lê.

Se há uma “chatice” possível, é talvez o excesso ocasional de lirismo em duas ou três imagens — mas mesmo esses momentos se justificam dentro da atmosfera febril que o texto constrói.


🌟 Avaliação Técnica:

  • Enredo e História: ★★★★★
    A história cativa desde a primeira frase e sustenta a tensão até o fim. Bem ritmada, com ótimo equilíbrio entre o sensual e o narrativo.

  • Qualidade e Estilo: ★★★★★
    Linguagem sofisticada, criativa, precisa. Raras vezes o erotismo foi narrado com tamanha contenção e potência.

  • Desenvolvimento de Personagem: ★★★★☆
    Vicente e Sofia têm ótima densidade emocional, embora talvez coubesse um leve aprofundamento maior em Vicente.

  • Originalidade e Potencial: ★★★★★
    A fusão entre música, desejo e linguagem funciona de forma original, com grande potencial para conquistar leitores exigentes.

  • Impressão Geral: ★★★★★
    O conto provoca arrepios e mantém a temperatura da leitura alta até o fim. Um dos melhores textos eróticos literários nacionais recentes.


Leia com fôlego — e com cuidado. Mas leia. Porque certos textos merecem vibrar dentro da gente como cordas bem afinadas.

Véspera (de Natália Paz) – A anatomia de um império em combustão lenta

(Link para o conto: https://getinkspired.com/story/575044/v-spera)

Há contos que se lêem com prazer. Outros, com adrenalina. Véspera, de Natália Paz, exige ser lido com o corpo todo: pupilas dilatadas, respiração suspensa, mãos tensas na borda da cadeira ou da poltrona. É uma narrativa que sangra e arde — não só pela temática, mas pelo modo como sua autora domina o ritmo, o espaço e, sobretudo, o silêncio entre os tiros.

A história começa no meio de um colapso: Gregório chega baleado, Lorena o costura com linha de pesca embebida em vodca, e a pergunta que paira — “de onde veio o tiro?” — não é apenas literal. É também moral, afetiva, política. O que se segue é uma sinfonia de tensão, sexo, memória e traição costurada com frases afiadas e diálogos que ressoam como disparos.

Lorena: a anti-heroína definitiva

A protagonista é o grande trunfo do conto. Quando Lorena diz, entre sangue e luxúria, “Ou dominamos o mundo ou ele engole a gente”, não está apenas definindo seu pacto com Gregório — está estabelecendo a lógica do próprio texto. Ela não é boazinha, não busca redenção. É astuta, letal, magnética. E o melhor: a autora nunca nos pede que simpatizemos com ela. Lorena nos conquista pela inteligência, pela sensualidade instrumentalizada e pela brutalidade lúcida de quem já não separa sobrevivência de poder.

Um dos momentos mais impactantes é quando, diante do corpo do amante traidor, Lorena murmura “Você sempre foi um teimoso de merda”, deixando cair o revólver. A frase, aparentemente banal, carrega em si um oceano de mágoa contida e amor diluído em ódio. É esse tipo de detalhe — de escrita e atuação emocional — que eleva o texto.

Prosa cinematográfica, estrutura precisa

Natália Paz demonstra domínio técnico notável. Sua prosa é sensual sem ser gratuita, violenta sem ser vulgar. Ela escreve como quem filma com palavras: cada cena é visual, ritmada, intensamente física. As transições entre o presente e os flashbacks são fluídas, nunca artificiais — e sempre funcionais à construção dramática. Não há enfeite: tudo serve à tensão.

Há ecos de Quentin Tarantino, especialmente na violência estilizada e nos diálogos carregados de tensão sexual. Mas Véspera não é pastiche. É releitura autoral com sotaque latino e sangue quente. Uma espécie de Amores Perros com a pulsação de Cidade de Deus, mas com uma mulher no centro da guerra — e no controle do jogo.

O que poderia ser ajustado

Como toda crítica que se preze, vale uma pequena nota de ressalva: o conto talvez seja tão ambicioso em sua carga dramática que quase transborda o espaço do formato curto. São muitos elementos — PF, helicóptero, plano de fuga, dossiês, sexo tático, incêndio, duplo twist — e há momentos em que o leitor quase precisa parar para reorganizar as peças. Nada grave, mas um ajuste fino aqui e ali deixaria a curva dramática ainda mais precisa.

Além disso, certas metáforas simbólicas (a costura, por exemplo) são belíssimas na primeira aparição, mas poderiam ser um pouco mais econômicas ao retornarem — efeito de revisão mais do que de concepção.

Conclusão: um conto que queima bem depois da última linha

Véspera é um conto que não pede licença. Abre a porta com o pé, atira antes de perguntar e deixa fumaça no ar muito tempo depois da leitura. Lorena já nasce clássica. Gregório é trágico sem perder a dignidade. E Rui... bem, Rui é o canalha necessário para manter a roda girando.

O conto poderia ser um episódio impecável de uma série noir brasileira (fica a sugestão para produtores atentos). Mas, enquanto isso, é literatura viva, vibrante e com uma protagonista que parece ter sido desenhada com lâmina em vez de teclas.


Avaliação

Enredo e História: ★★★★☆

(Narrativa eletrizante, mas um pouco saturada de eventos para o espaço de um conto)

Qualidade e Estilo: ★★★★★
(Prosa segura, sensorial, com domínio técnico e ritmo afiado)

Desenvolvimento de Personagem: ★★★★★
(Lorena é inesquecível; os secundários têm peso, voz e função)

Originalidade e Potencial: ★★★★☆
(A execução é brilhante; a estrutura básica do gênero é conhecida, mas revitalizada com frescor e inteligência)


Total: 4,5 estrelas de 5
Leitura indispensável para quem gosta de crime, tensão sexual e personagens que não devem nada a ninguém — muito menos ao leitor.


5/13/2025

De Aria Zênite a Anton Tchékhov: um exercício de estilo

Hoje, vamos brincar de exercício de estilo. A proposta é simples — e deliciosamente literária: pegar uma crônica contemporânea e recontá-la à maneira de um clássico. O ponto de partida é o texto de Aria Zênite, autora que aprendi a admirar, dona de um talento literário absurdamente grande. O link do início do texto no Threads é https://www.threads.com/@rainhadoimortal/post/DJmwaNAPLIH?xmt=AQF0xfW8Z0-NNqha79FuFLppb7akh5_lx9DwcYFb7NzcCg.

Nele, acompanhamos o cotidiano silenciosamente trágico de Helena, uma mulher engolida pelas expectativas alheias, até que, enfim, ousa dizer “não”.

A partir dessa premissa, propomos uma releitura à moda de Anton Tchekhov, mais especificamente de seu conto "A Morte do Funcionário". A graça do exercício está em deslocar o enredo moderno para a estética da Rússia czarista, com seus personagens humilhados, tragicamente passivos, e finais que nos arrancam um sorriso nervoso — ou um suspiro de resignação.

Vamos ver o que acontece quando Helena vira Ivan, e o escritório se transforma num gabinete imperial?

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A Última Compreensão de Ilyá Afanássievitch
(Petersburgo, inverno de 1864)

Ilyá Afanássievitch estava na cozinha escura do Ministério de Assuntos Internos, acendendo com dificuldade o samovar — um velho, de cobre, que cuspia vapor como um cavalo ferido — enquanto escutava, quase sem escutar, as lamúrias de Sergei Dmitrievitch, seu colega de repartição, que falava com veemência sobre a febre do filho e o telhado que cedia com o peso da neve.

Ilyá baixava a cabeça. Sempre baixava. Concordava, mesmo sem ouvir. Era-lhe mais fácil assim.

Seus dedos, finos e esbranquiçados do frio, apertavam a colher de açúcar como se pudessem esmagar o tempo. Pensava em quantas horas extras teria de cumprir para salvar, mais uma vez, o nome da seção — como nas outras vezes em que Sergei deixara tudo para o último instante.

— Tu és um santo, Ilyá Afanássievitch. Um verdadeiro servo de Cristo! — disse Sergei, batendo-lhe no ombro com familiaridade, antes de sair com o chá que Ilyá havia preparado. Ilyá permaneceu, olhando para o vapor que se dissipava.

No bolso do paletó, três bilhetes amarrotados enviados ao seu velho amigo Mikhail Alexeievitch — um convite tímido para jantar naquela noite. Aniversário de seus trinta anos. Nenhuma resposta. Nenhuma promessa. Só silêncio.

Voltou à sua escrivaninha. Cruzou com Rodion Vasilievitch, que lhe devia oitenta rublos desde setembro — valor emprestado para consertar o trenó que não usara nem duas vezes. Agora desviava o olhar, como se o reconhecimento da dívida lhe consumisse o fígado.

Sentado, Ilyá abriu os memorandos. Cinco documentos carimbados com urgência, todos entregues após o horário estipulado pelo regulamento ministerial — e três deles sem qualquer relação com suas obrigações.

Mas ele sabia.

“Tu escreves tão depressa, com tanta clareza, Afanássievitch”, diziam-lhe os chefes.

Ou seja: “Faz tu.”

— Reunião geral em dez minutos — murmurou Piotr Arkadievitch, o subdiretor, passando pela repartição sem olhar para nenhum deles, com a pressa de quem sabe que nada o toca.

Ilyá recolheu suas notas. Tinha feito sozinho o relatório sobre as propostas fiscais para as novas províncias do Império. Trinta e seis páginas de cálculos. Quinze noites sem descanso, enquanto os demais iam ao teatro, à vodca, às mulheres.

Na sala de reuniões, sentou-se no banco mais distante da lareira, onde o frio ainda resistia.

Piotr anunciou:

— Aleksandr Nikolaevitch irá apresentar o projeto destinado à nova comissão imperial.

Ilyá tremeu.

Seu projeto. O mesmo ao qual Aleksandr contribuíra com meia página e um gráfico copiado de relatórios anteriores.

Observou Aleksandr apresentar, com desembaraço e confiança, os dados que ele próprio compilara à exaustão.

— Brilhante, Nikolaevitch — disse Piotr. — Vê-se aqui um verdadeiro talento administrativo, digno dos novos tempos que Sua Majestade, o czar Alexandre II, deseja fomentar.

Aplausos.

Aleksandr, condescendente, virou-se:
— Naturalmente, Ilyá Afanássievitch ajudou um pouco...

Silêncio.

Ninguém pediu sua palavra. Nem um gesto. Nem um olhar.

Dentro dele, uma voz sussurrava:
“Ele precisa mais do que tu. E tu compreendes. Tu sempre compreendes.”

No lavatório do porão, Ilyá fitou o espelho ovalado — rachado desde o verão anterior.

Ali estava ele: as pálpebras fundas, o rosto cinzento, a boca trêmula. Aquele que dissera “sim” por medo do “não”.

Na manhã seguinte, chegou antes do sol. Separou, com método e precisão, duas pilhas de documentos: os seus, e os dos outros.

A segunda pilha era enorme.

Descomunal.

Como um peso que lhe empurrava o coração contra as costelas.

Às 8h34, Andrei Petrovitch, o secretário do vice-ministro, surgiu com um maço de papéis atado por fita vermelha.

— Ilyá Afanássievitch, meu caro, preciso que revises esses contratos ainda hoje. Tu entendes, não é? Tenho a recepção no Palácio da Tauride...

Ilyá o olhou. Seus olhos estavam estranhos — molhados, mas firmes.
E disse:

— Não.

Uma só palavra. Baixa. Definitiva.

Andrei recuou.

— Como?

— Esses contratos são vossa responsabilidade, Petrovitch. Não minha.

— Sempre ajudas...

— Por isso mesmo. Agora, basta.

Pela primeira vez, Ilyá ficou de pé diante de alguém. E não tremia.

— Se puder ajudar, que seja dentro da razão. Mas não carrego mais a carga de ninguém, enquanto me chamam de “modesto” e entregam louros a outros.

Andrei apertou os papéis contra o peito.

— Pensei que fôssemos todos servidores do Império...

— Servidores, sim. Escravos — não.

Voltou à cadeira. E sentou-se.

As mãos já não tremiam, mas havia algo estranho no peito. Uma dor seca. Pequena, mas constante. Como se o coração lutasse contra uma mão invisível que o apertava.

Naquela noite, caminhou sozinho pela margem do Neva. A neve caía sobre seu chapéu velho. Pensava em tudo e em nada.

Em casa, recusou o jantar. Não havia fome.

Deitou-se ainda com a sobrecasaca, como se apenas quisesse repousar por instantes.

E então sussurrou:

— Eu compreendo... sempre compreendi...

Fechou os olhos.

E morreu.

Na manhã seguinte, o zelador encontrou-o deitado, sereno. Disse-se que fora de “exaustão”.

No ministério, todos pareciam consternados.

— Um funcionário devotado — comentou Piotr Arkadievitch. — O czar precisa de homens assim... discretos, obedientes.

— Uma pena — disse Aleksandr. — Afanássievitch era tão útil.

Rodion herdou sua escrivaninha. Sergei foi dispensado do relatório daquele mês.
Andrei achou alguém mais jovem para revisar seus contratos.

E Ilyá Afanássievitch?

Não foi mencionado novamente.

4/29/2025

Manual Irônico da Exaustão Tradutória

(ou: Como sobreviver ganhando por palavra e morrendo por dentro)

Nota do adaptador: Este texto é uma versão sarcástica e tradutória — com licença poética e uma pitada de fel — de um original brilhante da professora Michelle (@letrasmichelle), que sigo com admiração lá no Threads. Se o mundo fosse justo, ela teria uma estátua numa sala dos professores (com ar-condicionado e aumento real). O thread original está aqui:


*** *** ***

Acorda cedo (ou tarde — o fuso do cliente é sempre outro), esfrega os olhos, encara o espelho e repete: “Eu sou um ser bilíngue útil para a sociedade.” E acredita. Porque tradutor é assim: otimista crônico, mesmo quando está traduzindo o contrato de aluguel de uma empilhadeira hidráulica às 23h.

Ama o que faz? Claro. Ama tanto que não consegue dormir sem pensar se “accountability” devia ser traduzido ou extirpado do idioma. Mas amor, já sabemos, não paga boletos, nem resolve o bug do CAT tool que travou às vésperas do prazo.

Senta à frente do computador como quem sobe ao cadafalso. Tela cheia de texto mal formatado, termos obscuros, frases que fariam um professor de lógica chorar. Do outro lado, um cliente sorridente dizendo: “É só adaptar rapidinho, coisa de 50 mil palavras pra amanhã.” E você, com seu vocabulário extenso, responde: “Claro, imagina.”

Carrega nas costas o peso da cultura alheia, da vírgula assassina, do verbo torturado. E também aquela culpa deliciosa de cobrar mais de R$ 0,10 por palavra — porque, veja bem, "você trabalha de casa", né?

Enquanto tenta transformar um relatório ilegível em algo que não ofenda a gramática de cinco continentes, compete com a inteligência artificial (essa prima rasa e burra), com o cliente que "já traduziu no Google" e com o revisor que reverte tudo “pro original, que tava melhor”.

No fim do dia, só resta você, um olho tremendo, a lombar gritando e um orgulho estranho de ter salvo mais um texto da autodestruição. Por dentro, exausto. Por fora, emoji sorridente.

A sociedade diz que tradutor é essencial. Tão essencial quanto o Wi-Fi público: ninguém dá valor até dar ruim. A autoria é do outro, a glória é do outro — e a culpa, claro, é sua.

O colega do lado também está na labuta. Finge entusiasmo nas redes sociais, posta “gratidão pelo job novo” enquanto mastiga a tampa da caneta em busca de um termo para “governança sustentável de stakeholders”.

A tradução virou campo minado. Mas sem medalha. Sem seguro. Sem hora extra. Ah, sim — tem “crédito na última página, se couber”.

E o mais irônico: você quer continuar. Você ama essa tortura. Quer ser ponte, ser eco, ser espírito de porco interlinguístico. Quer que alguém diga: “Ficou natural, nem parece traduzido.” E você responde: “Obrigado, vou fingir que isso foi elogio.”

Mas anote aí, caro leitor: amar traduzir e estar de saco cheio são coisas perfeitamente compatíveis. O que mata não é o trabalho. É a síndrome de invisibilidade crônica. É traduzir o mundo inteiro — e ver que ninguém traduziu você.

4/17/2025

Dom, Esforço e a Maldade das Hierarquias Invisíveis

Por que alguns escrevem como Romário driblava zagueiros e outros só chegam até o meio de campo.

Introdução
Volta e meia alguém pergunta: “Escrever é dom ou é treino?” A resposta curta: os dois. A resposta longa envolve Romário, Ronaldinho, Djokovic, e aquele seu colega de oficina literária que se esforça como um condenado e ainda escreve como um relatório da Receita Federal.

Essa não é uma discussão sobre talento apenas — é sobre resultados. E para entendermos por que nem todo mundo pode ser um gênio, mesmo tentando muito, precisamos aceitar uma verdade um pouco indigesta: o mundo opera sob uma hierarquia invisível. E escrever, como jogar bola ou disputar Wimbledon, também tem sua escada.


A Hierarquia dos Resultados
Para fins didáticos (e um pouco cruéis), vamos organizar os resultados humanos em cinco categorias:

Excepcional – o nível que vira referência, mito, gênio.

Ótimo – admirável, inspirador, talentoso.

Muito bom – competente, consistente, respeitável.

Bom – funcional, correto, decente.

Médio – esforçado, mas esquecível.

Agora vamos aplicar essa escala à equação: Dom + Esforço.


1. Esforço sem dom: o teto é o “muito bom”
Aqui temos o Kaká. Profissional exemplar, disciplinado, humilde. Foi o melhor do mundo em 2007, é verdade — mas raramente lembrado como um gênio criativo. Seu jogo era limpo, técnico, eficiente — mas não encantava multidões como Romário ou Ronaldinho.

Na escrita, o “Kaká” é aquele autor que trabalha duro, revisa mil vezes, estuda técnicas, segue regras. E sim, ele pode publicar livros muito bons. Mas dificilmente será aquele nome que muda a história da literatura.

No tênis, temos Thiago Monteiro. Um guerreiro em quadra, mas o máximo que consegue é flertar com o top 80. Porque, sejamos francos: falta o toque divino.


2. Dom sem esforço: o talento preguiçoso que ainda brilha
Ronaldinho Gaúcho é o caso clássico. Gênio absoluto com a bola — mas com fama de treinar menos do que deveria. Mesmo assim, jogava como se as leis da física estivessem de férias.

Entre escritores, esse é o tipo que escreve um conto genial num café, com guardanapo e caneta emprestada. Mas não termina o romance, não revisa o original, não responde e-mail de editora. E mesmo assim… quando publica, todo mundo para pra ler.


3. Dom + Esforço: o gênio imbatível
Romário é o exemplo mais cruel e fascinante disso. Dormia nos treinos? Sim. Mas no jogo… ah, no jogo, ele reinventava o espaço. E, nos bastidores, trabalhava o essencial: posicionamento, frieza, finalização. Esforço focado, silencioso.

No tênis, Djokovic é esse monstro híbrido: nasceu com dom e decidiu treinar como se não tivesse nenhum. Resultado? Um dos maiores da história, talvez o maior.

Na literatura, são os que publicam obras-primas atrás de obras-primas. Leem de tudo, escrevem sempre, estudam obsessivamente a língua, e ainda têm aquele "quê" inexplicável na voz. São poucos. São os que fazem os outros escritores considerarem abrir um food truck.


4. E você, onde entra nessa escala?
Essa é a parte que machuca. Porque a verdade é que nem todo mundo pode ser excepcional — nem ótimo. E está tudo bem.

A maior tragédia talvez não seja não ter dom, mas achar que só o esforço basta. E aqui entra o recado mais sincero (e um pouco ácido) para escritores iniciantes: o esforço é louvável, mas não é mágico. Ele é o que te tira do “ruim” e te leva ao “muito bom”. Para passar disso, você precisa daquele fator indefinível. Que, sim, às vezes é dom. Às vezes é obsessão. Às vezes é um trauma tão bem metabolizado que virou poesia.


Conclusão: o que fazer com tudo isso?
Se você não tem dom, escreva assim mesmo. Porque o mundo precisa de livros bons, muito bons e até médios. Nem toda obra precisa ser genial para ser necessária. Só não se iluda achando que basta se matar de estudar pra virar Guimarães Rosa.

E se você tem dom… pelo amor dos deuses da caneta: esforce-se. Senão, vai acabar como Ronaldinho no Flamengo: sendo gênio só no YouTube, enquanto o mundo real segue tocando sem você.

4/15/2025

Divagar, Mussacarino!

Mussacarino, o ponto a que chegaste. As mãos enxutas, no ato mesmo de pingar en nada. Aos dois, num tiro só, enquanto é tempo. Seguindo ainda em vida, pois já é necessário, e muito. Olha, não esquece: o saco, a pua, o rasto, a dor que mora n'alma, e, enfim, aquilo. Aquilo que te já foi precioso outrora. Procura, agora, Mussacarino. Teu tempo é escasso. Se a cor é brique, se o pulmão resiste, se o pulsar demora, se a partida empata, se a partida é antes da chegada, só resta um passo em falso. Conta de novo, tenta subtrair o que não podes, esconde o gesto e segue em frente, pois o simples ato de morrer tem seus dilemas.

A cor de meus poemas, diademas. Judas sabia que era um traidor ou inventou a traição naquele momento? Cristo sabia que era um vero mártir ou foi condenado apenas por não pagar a ceia? E aí, então, casou-se com a dialética? Ah, sim, não disse tudo -- o húmus prolifera, a bandeira estandarda, o pai é pai da pátria, a mãe é celibata, e, apoiando tudo, volutas de fumaça.

Foi então que eu saí. Saí porque chovia dentro. Voltando, escondi minha angústia por trás da cortina. Volta. Volta. Mas não volta, Mussacarino. Algo terrível te espera.

Depois, houve um soluço breve e o luminoso astro-rei caiu de quatro. Contei os dedos da mão -- eram doze. È preciso operar, aritmética. Na festa da cidade, houve um Palmeiras x Corinthians entre São Paulo e Santos. Venceu o tricolor mais auriverde. E se não estou enganado, então me equivoco a respeito do erro. Pois a esbórnia de ontem é a revolução em marcha. Aponto a minha arma, grito "fogo" e disparo a correr. Aponto o indicador, grito "socorro" e, sem pensar, só corro. Pois havendo os que passam, há os que ficam.

Eu, na minha volta, sou um eterno ausente, pois vou. Se saio da fantasia, e não estando, desejo que a queda do avião te seja leve e breve.

(noite de 21 de julho de 1988, aos 17 anos, datilografado em minha intimorata máquina de escrever Remington 25)

Resenha crítica - (Des)amor de Família, de Sam Alves: um conto com sangue, tinta e alma

(Leia o conto em https://getinkspired.com/en/story/558398/des-amor-de/)

I. Um conto necessário

De tempos em tempos, surge uma autora que nos obriga a parar. Não por alarde, nem por hype, mas por algo mais visceral: a urgência. Sam Alves me encontrou assim. Sem aviso, sem promessas. Apenas com um título entre parênteses e uma história que atravessa o peito como uma farpa que se recusa a sair.

"(Des)amor de família" é mais do que um conto. É uma cicatriz aberta. E como toda boa cicatriz, pulsa, lateja, guarda camadas de dor, silêncio e resistência.



II. O realismo que arde, o fantástico que liberta

Sam constrói o ambiente doméstico com precisão cirúrgica. O cotidiano violento, o machismo estruturado, a mãe cúmplice, o irmão agressor — tudo é delineado com uma familiaridade incômoda. Nada aqui soa falso. A naturalidade com que os diálogos surgem — e com que a violência se instala — denuncia uma autora que entende profundamente o que está dizendo.

E então, quando já estamos sufocados pela dureza do mundo, surge o insólito: um pincel prateado, encontrado por acaso, capaz de transformar a pintura em realidade. Pode parecer um desvio, mas não é. Sam não usa o realismo mágico como fuga, e sim como instrumento de reparação. A fantasia não alivia. Ela age. Corrige. Vinga. Liberta.


III. Carla: protagonista, sobrevivente, artista do impossível

A personagem central, Carla, é daquelas que ficam. Uma mulher marcada — no corpo e na alma — que encontra na arte a única possibilidade de sobrevivência. Sua trajetória é contada sem romantização, mas também sem reducionismos. Carla é vítima, sim. Mas é também agente. Criadora. Portadora de uma força silenciosa que, quando finalmente explode, se revela quase divina.

O mais admirável é que Sam não cede à tentação do heroísmo óbvio. Carla não é perfeita. Seu desejo de justiça tangencia a vingança. Sua humanidade está justamente no desequilíbrio, na culpa, no medo e na escolha. E isso torna tudo ainda mais real.


IV. Escrita sem maquiagem: a força de quem conhece a dor por dentro

A linguagem de Sam é direta, por vezes crua, sempre eficaz. Cada linha parece escrita com os dentes cerrados. Não há concessões, floreios nem firulas. E é exatamente por isso que emociona. Há um domínio instintivo de ritmo, progressão narrativa e tensão — digno de quem já nasceu escritora.

A construção do suspense, a oscilação entre cotidiano e sobrenatural, a capacidade de dizer muito com poucas palavras: tudo isso revela uma autora madura, mesmo em sua primeira aparição. Sam Alves escreve com a urgência de quem não teve o luxo de escrever por capricho.


V. Últimas palavras e primeiras promessas

Terminei a leitura em estado de alerta. A respiração presa, a garganta seca, e um pensamento insistente: “preciso ler mais dessa mulher”.

Se esta foi a primeira história que li de Sam Alves, as próximas prometem me destruir de novas maneiras. E confesso: mal posso esperar.

Carla pinta com tinta e trauma.
Sam escreve com lâmina e lirismo.
E nós, leitores, saímos marcados.


Ficha Técnica — Primeira Impressão

✂️ Ritmo narrativo

O texto tem potência, mas também se estende além do necessário em certos trechos. Algumas cenas poderiam ser mais enxutas sem perder impacto. Nota: 8,5

🎭 Construção de personagem

Carla é uma criação maravilhosa. O irmão é um vilão realista — assustadoramente próximo de muita gente que conhecemos. A mãe, porém, beira o arquétipo. Faltou nuance ali, mesmo que tenha sido intencional. Nota: 9,0

💬 Diálogos e autenticidade

Um dos pontos mais fortes. Sam domina o sotaque da raiva e da omissão, o ritmo das discussões familiares, a brutalidade da fala sem afeto. Nota: 10

Inserção do elemento fantástico

Funciona. É eficaz e bem amarrado. Mas ainda há espaço para refinar o simbolismo e o timing de entrada. Nota: 8,8

🫀 Impacto emocional

Intenso, genuíno, persistente. Nota: 10

🧠 Densidade simbólica

A metáfora do pincel como instrumento de reescrever o corpo, a história, a dor... é poderosa. Mas poderia ser mais sutil em certos momentos. Ainda assim, muito boa. Nota: 9,0

✍️ Estilo e voz autoral

Sam tem uma assinatura. E isso, para uma autora nova, é ouro puro. Nota: 10

🚀 Potencial de continuidade literária

Aqui não há dúvidas. Com ajustes e autocrítica, Sam pode ir longe. Nota: 10

🎯 Nova média ponderada: 9,29

Sam Alves merece, sim, o aplauso — mas também o convite ao próximo nível. E com o que ela já mostrou, esse próximo nível é só questão de tempo (e talvez de edição).


— Andy Schmid, admirado e novo admirador.