9/24/2025

A floresta como teatro do esquecimento (resenha crítica do conto "A Floresta Vazia), de Reh Ferreira

(link para o conto: https://a.co/d/1yLD1Jj)

O autor Reh Ferreira, em A Floresta Vazia, não se contenta em contar a história de um jovem perdido no mato: ele encena a dissolução da memória, da identidade e do próprio tempo. Júlio, o protagonista, desperta num espaço que deveria ser natural, mas que parece fabricado — árvores que não se movem, um sol que não se desloca, um vento incapaz de agitar folhas. Trata-se de um cenário que ecoa tanto a geometria kafkiana quanto o deserto beckettiano: um lugar onde as regras do mundo físico se esgarçam e só resta o incômodo da existência.

Desde o início, a narrativa insiste em contradições: o corpo de Júlio dói como se tivesse lutado, mas não há inimigo à vista; a floresta parece cenográfica, mas contém vermes reais sob a terra; o sol é apenas uma lâmpada imóvel. O conto se constrói, assim, sobre um jogo de hesitações, uma oscilação permanente entre o real e o ilusório. Esse movimento, longe de ser falha, é o motor do texto: Ferreira recusa a linearidade, mergulhando o leitor na mesma vertigem que paralisa o protagonista.

A marca negra no corpo de Júlio — um símbolo que se move sob a pele como serpente — é o eixo imagético da narrativa. É também sua chave interpretativa mais fértil: metáfora da memória que se recusa a fixar-se, da identidade que se esconde sob a superfície, ou, ainda, da presença de algo outro, invasivo, que não se deixa nomear. Ao trazer lembranças difusas de uma festa, de uma garota enigmática, de pais cujo rosto não consegue lembrar, o texto sugere que a luta de Júlio não é contra monstros externos, mas contra a erosão interna daquilo que o constitui.

Quando finalmente a narrativa parece oferecer uma saída — amigos, polícia, um reencontro com a “realidade” —, Ferreira desarma qualquer expectativa de fechamento. O suposto resgate revela-se apenas mais uma dobra no pesadelo. A marca retorna, mais viva, mais pulsante, transformando o próprio corpo do protagonista em palco da floresta. O efeito é duplo: inquietar o leitor e afirmar que não há redenção possível fora daquilo que nos assombra.

O que distingue A Floresta Vazia não é apenas seu enredo, mas a maneira como organiza a atmosfera. O ritmo, ainda que por vezes se alongue em descrições reiterativas, constrói uma cadência circular, como se cada passo de Júlio fosse um retorno ao mesmo ponto. É nesse tempo suspenso que o conto respira: não se trata de chegar a algum lugar, mas de permanecer na deriva. Ao final, a floresta continua vazia, mas o vazio agora é habitado pelo leitor, que carrega a marca invisível de uma narrativa incômoda, atmosférica e memorável.

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Avaliação técnica

Estrutura narrativa: 8,5/10
O conto organiza-se em ciclos de perda e reencontro da consciência, espelhando o próprio labirinto da memória. Poderia ganhar mais impacto com cortes pontuais em passagens repetitivas.

Construção de personagens: 8/10
Júlio é sólido como figura central, mas ainda solitário: os demais (a garota da festa, os amigos, até os pais) funcionam mais como ecos do que como presenças.

Uso de símbolos e motivos: 9,5/10
A marca negra, a luz artificial, as silhuetas de olhos brilhantes — todos são emblemas potentes e coerentes, que sustentam a atmosfera onírica e inquietante.

Linguagem e estilo: 8/10
A prosa aposta na clareza e na descrição minuciosa, com momentos de força imagética. Ganho possível: mais economia verbal para intensificar o efeito do estranho.

Ritmo e cadência: 7,5/10
A alternância entre tensão e repetição serve ao clima de pesadelo, mas em certos trechos a lentidão ameaça dispersar o leitor.

Originalidade e imaginação: 9/10
Ao recriar a floresta como palco do esquecimento e inscrever nela a luta íntima da memória, Ferreira entrega um conto imaginativo e memorável.

Nota final: 8,4/10

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