(ou: Como sobreviver ganhando por palavra e morrendo por dentro)
Nota do adaptador: Este texto é uma versão sarcástica e tradutória — com licença poética e uma pitada de fel — de um original brilhante da professora Michelle (@letrasmichelle), que sigo com admiração lá no Threads. Se o mundo fosse justo, ela teria uma estátua numa sala dos professores (com ar-condicionado e aumento real). O thread original está aqui:
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Acorda cedo (ou tarde — o fuso do cliente é sempre outro), esfrega os olhos, encara o espelho e repete: “Eu sou um ser bilíngue útil para a sociedade.” E acredita. Porque tradutor é assim: otimista crônico, mesmo quando está traduzindo o contrato de aluguel de uma empilhadeira hidráulica às 23h.
Ama o que faz? Claro. Ama tanto que não consegue dormir sem pensar se “accountability” devia ser traduzido ou extirpado do idioma. Mas amor, já sabemos, não paga boletos, nem resolve o bug do CAT tool que travou às vésperas do prazo.
Senta à frente do computador como quem sobe ao cadafalso. Tela cheia de texto mal formatado, termos obscuros, frases que fariam um professor de lógica chorar. Do outro lado, um cliente sorridente dizendo: “É só adaptar rapidinho, coisa de 50 mil palavras pra amanhã.” E você, com seu vocabulário extenso, responde: “Claro, imagina.”
Carrega nas costas o peso da cultura alheia, da vírgula assassina, do verbo torturado. E também aquela culpa deliciosa de cobrar mais de R$ 0,10 por palavra — porque, veja bem, "você trabalha de casa", né?
Enquanto tenta transformar um relatório ilegível em algo que não ofenda a gramática de cinco continentes, compete com a inteligência artificial (essa prima rasa e burra), com o cliente que "já traduziu no Google" e com o revisor que reverte tudo “pro original, que tava melhor”.
No fim do dia, só resta você, um olho tremendo, a lombar gritando e um orgulho estranho de ter salvo mais um texto da autodestruição. Por dentro, exausto. Por fora, emoji sorridente.
A sociedade diz que tradutor é essencial. Tão essencial quanto o Wi-Fi público: ninguém dá valor até dar ruim. A autoria é do outro, a glória é do outro — e a culpa, claro, é sua.
O colega do lado também está na labuta. Finge entusiasmo nas redes sociais, posta “gratidão pelo job novo” enquanto mastiga a tampa da caneta em busca de um termo para “governança sustentável de stakeholders”.
A tradução virou campo minado. Mas sem medalha. Sem seguro. Sem hora extra. Ah, sim — tem “crédito na última página, se couber”.
E o mais irônico: você quer continuar. Você ama essa tortura. Quer ser ponte, ser eco, ser espírito de porco interlinguístico. Quer que alguém diga: “Ficou natural, nem parece traduzido.” E você responde: “Obrigado, vou fingir que isso foi elogio.”
Mas anote aí, caro leitor: amar traduzir e estar de saco cheio são coisas perfeitamente compatíveis. O que mata não é o trabalho. É a síndrome de invisibilidade crônica. É traduzir o mundo inteiro — e ver que ninguém traduziu você.
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