4/17/2025

Dom, Esforço e a Maldade das Hierarquias Invisíveis

Por que alguns escrevem como Romário driblava zagueiros e outros só chegam até o meio de campo.

Introdução
Volta e meia alguém pergunta: “Escrever é dom ou é treino?” A resposta curta: os dois. A resposta longa envolve Romário, Ronaldinho, Djokovic, e aquele seu colega de oficina literária que se esforça como um condenado e ainda escreve como um relatório da Receita Federal.

Essa não é uma discussão sobre talento apenas — é sobre resultados. E para entendermos por que nem todo mundo pode ser um gênio, mesmo tentando muito, precisamos aceitar uma verdade um pouco indigesta: o mundo opera sob uma hierarquia invisível. E escrever, como jogar bola ou disputar Wimbledon, também tem sua escada.


A Hierarquia dos Resultados
Para fins didáticos (e um pouco cruéis), vamos organizar os resultados humanos em cinco categorias:

Excepcional – o nível que vira referência, mito, gênio.

Ótimo – admirável, inspirador, talentoso.

Muito bom – competente, consistente, respeitável.

Bom – funcional, correto, decente.

Médio – esforçado, mas esquecível.

Agora vamos aplicar essa escala à equação: Dom + Esforço.


1. Esforço sem dom: o teto é o “muito bom”
Aqui temos o Kaká. Profissional exemplar, disciplinado, humilde. Foi o melhor do mundo em 2007, é verdade — mas raramente lembrado como um gênio criativo. Seu jogo era limpo, técnico, eficiente — mas não encantava multidões como Romário ou Ronaldinho.

Na escrita, o “Kaká” é aquele autor que trabalha duro, revisa mil vezes, estuda técnicas, segue regras. E sim, ele pode publicar livros muito bons. Mas dificilmente será aquele nome que muda a história da literatura.

No tênis, temos Thiago Monteiro. Um guerreiro em quadra, mas o máximo que consegue é flertar com o top 80. Porque, sejamos francos: falta o toque divino.


2. Dom sem esforço: o talento preguiçoso que ainda brilha
Ronaldinho Gaúcho é o caso clássico. Gênio absoluto com a bola — mas com fama de treinar menos do que deveria. Mesmo assim, jogava como se as leis da física estivessem de férias.

Entre escritores, esse é o tipo que escreve um conto genial num café, com guardanapo e caneta emprestada. Mas não termina o romance, não revisa o original, não responde e-mail de editora. E mesmo assim… quando publica, todo mundo para pra ler.


3. Dom + Esforço: o gênio imbatível
Romário é o exemplo mais cruel e fascinante disso. Dormia nos treinos? Sim. Mas no jogo… ah, no jogo, ele reinventava o espaço. E, nos bastidores, trabalhava o essencial: posicionamento, frieza, finalização. Esforço focado, silencioso.

No tênis, Djokovic é esse monstro híbrido: nasceu com dom e decidiu treinar como se não tivesse nenhum. Resultado? Um dos maiores da história, talvez o maior.

Na literatura, são os que publicam obras-primas atrás de obras-primas. Leem de tudo, escrevem sempre, estudam obsessivamente a língua, e ainda têm aquele "quê" inexplicável na voz. São poucos. São os que fazem os outros escritores considerarem abrir um food truck.


4. E você, onde entra nessa escala?
Essa é a parte que machuca. Porque a verdade é que nem todo mundo pode ser excepcional — nem ótimo. E está tudo bem.

A maior tragédia talvez não seja não ter dom, mas achar que só o esforço basta. E aqui entra o recado mais sincero (e um pouco ácido) para escritores iniciantes: o esforço é louvável, mas não é mágico. Ele é o que te tira do “ruim” e te leva ao “muito bom”. Para passar disso, você precisa daquele fator indefinível. Que, sim, às vezes é dom. Às vezes é obsessão. Às vezes é um trauma tão bem metabolizado que virou poesia.


Conclusão: o que fazer com tudo isso?
Se você não tem dom, escreva assim mesmo. Porque o mundo precisa de livros bons, muito bons e até médios. Nem toda obra precisa ser genial para ser necessária. Só não se iluda achando que basta se matar de estudar pra virar Guimarães Rosa.

E se você tem dom… pelo amor dos deuses da caneta: esforce-se. Senão, vai acabar como Ronaldinho no Flamengo: sendo gênio só no YouTube, enquanto o mundo real segue tocando sem você.

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