I. Um conto necessário
De tempos em tempos, surge uma autora que nos obriga a parar. Não por alarde, nem por hype, mas por algo mais visceral: a urgência. Sam Alves me encontrou assim. Sem aviso, sem promessas. Apenas com um título entre parênteses e uma história que atravessa o peito como uma farpa que se recusa a sair.
"(Des)amor de família" é mais do que um conto. É uma cicatriz aberta. E como toda boa cicatriz, pulsa, lateja, guarda camadas de dor, silêncio e resistência.
II. O realismo que arde, o fantástico que liberta
Sam constrói o ambiente doméstico com precisão cirúrgica. O cotidiano violento, o machismo estruturado, a mãe cúmplice, o irmão agressor — tudo é delineado com uma familiaridade incômoda. Nada aqui soa falso. A naturalidade com que os diálogos surgem — e com que a violência se instala — denuncia uma autora que entende profundamente o que está dizendo.
E então, quando já estamos sufocados pela dureza do mundo, surge o insólito: um pincel prateado, encontrado por acaso, capaz de transformar a pintura em realidade. Pode parecer um desvio, mas não é. Sam não usa o realismo mágico como fuga, e sim como instrumento de reparação. A fantasia não alivia. Ela age. Corrige. Vinga. Liberta.
III. Carla: protagonista, sobrevivente, artista do impossível
A personagem central, Carla, é daquelas que ficam. Uma mulher marcada — no corpo e na alma — que encontra na arte a única possibilidade de sobrevivência. Sua trajetória é contada sem romantização, mas também sem reducionismos. Carla é vítima, sim. Mas é também agente. Criadora. Portadora de uma força silenciosa que, quando finalmente explode, se revela quase divina.
O mais admirável é que Sam não cede à tentação do heroísmo óbvio. Carla não é perfeita. Seu desejo de justiça tangencia a vingança. Sua humanidade está justamente no desequilíbrio, na culpa, no medo e na escolha. E isso torna tudo ainda mais real.
IV. Escrita sem maquiagem: a força de quem conhece a dor por dentro
A linguagem de Sam é direta, por vezes crua, sempre eficaz. Cada linha parece escrita com os dentes cerrados. Não há concessões, floreios nem firulas. E é exatamente por isso que emociona. Há um domínio instintivo de ritmo, progressão narrativa e tensão — digno de quem já nasceu escritora.
A construção do suspense, a oscilação entre cotidiano e sobrenatural, a capacidade de dizer muito com poucas palavras: tudo isso revela uma autora madura, mesmo em sua primeira aparição. Sam Alves escreve com a urgência de quem não teve o luxo de escrever por capricho.
V. Últimas palavras e primeiras promessas
Terminei a leitura em estado de alerta. A respiração presa, a garganta seca, e um pensamento insistente: “preciso ler mais dessa mulher”.
Se esta foi a primeira história que li de Sam Alves, as próximas prometem me destruir de novas maneiras. E confesso: mal posso esperar.
Carla pinta com tinta e trauma.Sam escreve com lâmina e lirismo.E nós, leitores, saímos marcados.
Ficha Técnica — Primeira Impressão
✂️ Ritmo narrativo
O texto tem potência, mas também se estende além do necessário em certos trechos. Algumas cenas poderiam ser mais enxutas sem perder impacto. Nota: 8,5
🎭 Construção de personagem
Carla é uma criação maravilhosa. O irmão é um vilão realista — assustadoramente próximo de muita gente que conhecemos. A mãe, porém, beira o arquétipo. Faltou nuance ali, mesmo que tenha sido intencional. Nota: 9,0
💬 Diálogos e autenticidade
Um dos pontos mais fortes. Sam domina o sotaque da raiva e da omissão, o ritmo das discussões familiares, a brutalidade da fala sem afeto. Nota: 10
✨ Inserção do elemento fantástico
Funciona. É eficaz e bem amarrado. Mas ainda há espaço para refinar o simbolismo e o timing de entrada. Nota: 8,8
🫀 Impacto emocional
Intenso, genuíno, persistente. Nota: 10
🧠 Densidade simbólica
A metáfora do pincel como instrumento de reescrever o corpo, a história, a dor... é poderosa. Mas poderia ser mais sutil em certos momentos. Ainda assim, muito boa. Nota: 9,0
✍️ Estilo e voz autoral
Sam tem uma assinatura. E isso, para uma autora nova, é ouro puro. Nota: 10
🚀 Potencial de continuidade literária
Aqui não há dúvidas. Com ajustes e autocrítica, Sam pode ir longe. Nota: 10
🎯 Nova média ponderada: 9,29
Sam Alves merece, sim, o aplauso — mas também o convite ao próximo nível. E com o que ela já mostrou, esse próximo nível é só questão de tempo (e talvez de edição).
— Andy Schmid, admirado e novo admirador.
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