8/04/2025

Resenha crítica do conto TRACE, de Aria Zênite

(O texto do conto pode ser lido em https://getinkspired.com/pt/story/606713/trace-pt-br/)

Na tradição da melhor ficção especulativa com alma adolescente — pense Black Mirror escrito por uma discípula de Clarice Lispector — o conto TRACE, de Aria Zênite, emerge não apenas como uma obra ganhadora de um concurso chamado “A Pintora” (da plataforma de publicações independentes Inkspired), mas como uma pequena jóia emocionalmente densa e surpreendentemente madura em seu uso do fantástico como espelho da dor. Em um mundo saturado de simulações e gadgets, o dispositivo mágico aqui não é um artifício cômico ou um truque escapista: é uma extensão da psique ferida de uma garota.

A protagonista, Nay, é apresentada com uma honestidade cortante logo nos primeiros parágrafos — abandonada no baile de formatura, exposta diante dos colegas, e emocionalmente desarmada. Há aqui uma ferida universal, e Aria Zênite a esculpe sem sentimentalismo piegas: sua dor é crua, ruidosa, íntima, e essencial. As falas iniciais — que poderiam resvalar para o dramalhão adolescente — são salvas pelo tom realista e por uma rara capacidade de ritmo e cadência nos diálogos. A autora tem ouvido.

E então vem o TRACE — o dispositivo estranho, a caixa pulsante, a metáfora tecnológica do luto emocional e da recusa em aceitar o irreversível. Não é exagero dizer que este pequeno objeto carrega em si a mesma força simbólica do espelho em Borges ou do aleph em, bem... O Aleph. Mas em vez de abrir janelas para o infinito, o TRACE oferece o convite mais perigoso de todos: o de reescrever o passado para torná-lo habitável.

É nesse ponto que o conto se expande para além de sua promessa inicial e toca em algo mais profundo: a questão da realidade subjetiva. Nay não quer apenas apagar a dor — ela quer reconstruir a si mesma por meio da arte. Cada desenho, cada floresta que brota, cada carta flutuante é uma tentativa de tornar tolerável o intolerável. Em outras palavras: arte como fuga, sim, mas também como reconquista do próprio eixo. A autora entende que o trauma raramente é superado com lógica — ele é metabolizado em camadas, com repetições, recaídas e lampejos de consciência.

A estrutura narrativa acompanha esse processo com fluidez quase cinematográfica. Aria conduz a leitura com um controle de tempo e alternância de cenários que lembram os melhores episódios de The OA ou Russian Doll, sem jamais perder o vínculo com o real. O momento em que Nay encontra o pai — vivo — e depois se dá conta da distorção temporal provocada pelos próprios desejos, é o equivalente emocional de um murro no estômago bem dirigido.

Talvez o maior mérito de TRACE seja justamente seu final. Aria Zênite, sabiamente, recusa a resolução fácil. O TRACE não é a redenção — é uma armadilha. E Nay, quando finalmente escolhe abandoná-lo, o faz não por resignação, mas por maturidade. Há algo de profundamente libertador em sua escolha de pintar, literalmente, o tablet quebrado. Como quem diz: “chega de atalhos; agora é só eu e o mundo real”.

Em termos estilísticos, a prosa é clara, fluida, e surpreendentemente lírica em certos trechos. Frases como “a dor não vai embora, filha. A gente só… constrói uma vida maior ao redor dela” soam autênticas porque foram merecidas pelo enredo — não impostas. O controle da voz narrativa é firme mesmo nas viradas mais surreais. E o ponto de vista de Nay — que envelhece emocionalmente ao longo da trama — é tratado com uma progressão notável.

É claro, o conto não está isento de tropeços menores. Certos trechos do meio ensaiam cair no didatismo, e há um ou outro diálogo onde o subtexto poderia ser mais sutil. Mas esses deslizes são marginais diante da potência emocional e conceitual do texto.

TRACE, em resumo, é um conto que honra sua premissa com coragem e inteligência. Aria Zênite demonstra domínio do gesto narrativo e entrega um texto que, embora breve, ressoa como um romance. Em tempos de distrações e narrativas ocas, eis aqui uma história que ousa perguntar: E se pudéssemos redesenhar a dor? E se a memória fosse um aplicativo? Mas, mais importante, ela responde: Sim, podemos... mas a vida de verdade só começa quando decidimos parar de editar.

Nota editorial:

O título do desafio — “A Pintora” — encontra em Nay não apenas uma personagem, mas um arquétipo moderno: a jovem que pinta para sobreviver ao naufrágio emocional e descobre que a arte não é consolo. É resistência. É escolha.

Nota crítica: 9,0 / 10

(Com direito a destaque em qualquer coletânea de contos contemporâneos sobre identidade e realidade expandida.)

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