(O link para a íntegra do conto está aqui: https://a.co/d/6bwSPrk)
Conheço de perto a ficção de Priscila Rodrigues e admiro sua persistente busca por costurar dramas íntimos com atmosferas fantásticas. Este conto confirma essa trajetória e amplia seu escopo: é uma narrativa que começa com a claustrofobia do luto e termina em plena vertigem mítica.
Estrutura narrativa
A história se organiza em três movimentos distintos:
1. O realismo psicológico inicial, em que Joana é apresentada como corpo e casa em decomposição;
2. A passagem para o insólito, marcada pela pousada em Minas Gerais, espaço liminar onde tudo parece possível;
3. O mergulho no horror, quando os símbolos (a pedra, o brilho azul) deixam de ser apenas sugestões e se impõem como força inevitável.
Essa tripartição é um acerto, mas também revela pontos de fragilidade: a transição entre os dois primeiros blocos é abrupta, e o leitor pode sentir falta de um intervalo mais gradual.
Personagens
Joana é a mais bem construída. Sua dor se traduz em imagens concretas (louça, cabelos, cheiro de abandono). Quando passa a ser mediada pelo brilho azul, o corpo dela se torna o lugar onde o fantástico se inscreve. É nesse ponto que a autora alcança uma rara fusão entre psicologia e símbolo.
Andrea funciona como contraponto vivo, a filha que deseja salvar, mas também como testemunha impotente. Tecnicamente, poderia ganhar mais profundidade — no fim, é quase apenas “a filha preocupada”.
Felipe, embora essencial para o contraponto temático (traição versus luto), é apresentado com excesso de informação biográfica. A fortuna, a empresa, os amigos de infância… todos esses dados alongam a exposição e pouco acrescentam à organicidade da trama. O personagem ganha força quando é capturado pelo mistério, não quando é descrito em minúcia.
Recursos simbólicos
O brilho azul é o eixo central da narrativa. Ele cumpre três funções:
1. Motivo recorrente que dá coesão;
2. Sinal ambíguo, ora de desejo, ora de morte;
3. Conector narrativo, unindo Joana e Felipe em um mesmo destino.
O artefato cortante reforça o caráter sacrificial da experiência. O sangue que ativa os símbolos é uma metáfora potente, embora a repetição do gesto (primeiro Felipe, depois Joana) possa soar didática demais.
Linguagem e ritmo
Priscila alterna dois registros:
A descrição realista é contida e precisa, como no início.
O clímax fantástico assume uma cadência febril, com frases curtas e imagens intensas (“raízes prendiam suas pernas”, “o céu vermelho sangue”). Esse contraste é eficaz, mas exige cuidado para não cair no excesso melodramático.
Um detalhe técnico: em certos trechos a autora “explica” o que já está mostrado — por exemplo, ao detalhar a empresa de Felipe ou ao reiterar que Joana estava em luto. Cortar essas redundâncias poderia intensificar a tensão narrativa.
O final
O desfecho — Joana prisioneira em um pesadelo e Felipe desaparecido — é forte justamente porque recusa explicação. Aqui, a autora encontra sua voz mais convincente: a de quem sabe que o fantástico não se resolve, apenas se abre.
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Conclusão
Priscila Rodrigues demonstra, neste conto, que domina tanto a construção atmosférica quanto a simbólica. Quando se arrisca no excesso expositivo, perde parte da força; mas quando entrega ao leitor a ambiguidade do inexplicável, alcança um nível de intensidade raro.
É uma narrativa que pede pequenas cirurgias técnicas (ritmo, contenção, economia de informação), mas que já se sustenta pela ousadia e pela imaginação. E confirma aquilo que já sabíamos de sua obra: a capacidade de transformar experiências íntimas de dor e perda em mitos narrativos de ressonância coletiva.
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Avaliação Técnica
1. Estrutura narrativa – 8,5/10
A divisão em três blocos (realismo psicológico → fantástico liminar → horror pleno) é bem concebida. O arco é nítido, mas as transições poderiam ser mais fluidas.
2. Construção de personagens – 8/10
Joana é complexa e convincente. Andrea funciona bem como contraponto, mas ainda bidimensional. Felipe é excessivamente explicado em sua biografia, o que enfraquece sua força simbólica.
3. Uso de símbolos e motivos – 9/10
O brilho azul é um recurso unificador muito eficaz. O artefato cortante e o sangue acrescentam densidade ritualística. Pequena redundância no uso repetido da cena da pedra.
4. Linguagem e estilo – 8/10
Passagens iniciais são contidas, fortes e precisas. No clímax, a prosa se torna febril, às vezes excessiva. O risco do melodrama aparece, mas sem anular o efeito poético.
5. Ritmo e cadência – 7,5/10
O texto oscila: momentos de tensão muito bem marcados, mas entrecortados por exposições longas (a fortuna de Felipe, explicações de sentimentos). Uma poda traria mais impacto.
6. Originalidade e imaginação – 9,5/10
Aqui está a marca autoral. Transformar uma pousada mineira em palco de mito gótico é ousado e bem-sucedido. O conto se destaca pela capacidade de fundir cotidiano brasileiro e fantástico universal.
Nota Final: 8,5/10
Um conto tecnicamente sólido, de imaginação vívida, com símbolos fortes e atmosfera envolvente. Peca por alguns excessos expositivos e por certa pressa em justificar emoções, mas atinge momentos de rara potência literária. Publicável com cortes cirúrgicos — e digno de atenção crítica.
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