Natália Paz, em Manobra de Autópsia, entrega um conto que alia intensidade narrativa e precisão técnica, projetando uma cena de reencontro amoroso com a minúcia de um exame forense e a febre de um romance mal resolvido. O título não é apenas sugestão, mas método: a cada seção, a autora abre, expõe, disseca — e convida o leitor a testemunhar a anatomia da saudade.
Logo no primeiro parágrafo, o gesto trivial de Catarina — traçar um coração na taça apenas para apagá-lo — estabelece o tom: tudo aqui é efêmero, mas carregado de peso simbólico. Esse detalhe cotidiano funciona como chave de leitura: o amor é aquilo que se grava e se desfaz no mesmo movimento. Ao redor dela, a festa de casamento se torna metáfora perfeita: celebração pública, mas também liturgia dos mortos-vivos, em que alianças brilham mais como algemas douradas do que como promessas de futuro.
Os personagens como corpos em dissecção
Catarina é o centro da narrativa e, de certo modo, a própria narradora secreta — não apenas porque percebemos o mundo por meio de suas observações minuciosas (o tempo medido em segundos, as rotações da aliança no dedo), mas porque sua voz interior estabelece a cadência do conto. Ela começará uma especialização em medicina legal, e sua escolha ecoa em cada escolha lexical: fala de necrópole, autópsia, exumação. Mas aqui a perícia é sentimental: o casamento morto, a juventude preservada como cadáver em formol, os amores antigos reaparecendo para serem dissecados com o mesmo rigor. Catarina é uma personagem dividida entre o impulso de viver “perigosamente viva” e o cálculo clínico da sobrevivência.
Tomás, por sua vez, é construído pela autora como fantasma e corpo, simultaneamente. Fantasma porque retorna do passado com a força de um trauma não cicatrizado, repetindo gestos e falas que ecoam em Catarina como estilhaços de memória. Corpo porque sua presença física — a gravata frouxa, o perfume que ainda resiste por baixo de novas camadas — desencadeia respostas sensoriais, como se o próprio cheiro fosse uma prova material de que o passado não se extinguiu. Tomás é simultaneamente culpado e redentor, figura de desejo e de ameaça.
O marido de Catarina, Roberto, aparece quase em negativo. Ele é uma ausência marcada por indícios: o caso extraconjugal, as noites de mentira, a indiferença às marcas do corpo da esposa. Se Tomás encarna a memória insuportavelmente viva, Roberto representa a morte lenta do cotidiano. É significativo que, no dilema final, Roberto não apareça fisicamente: resta apenas o celular com mensagens apagadas, um nome hesitado. Sua presença fantasmática é o outro polo da encruzilhada de Catarina.
Técnica narrativa e recursos formais
O domínio do tempo narrativo é um ponto alto. A autora entrelaça presente e passado sem rupturas bruscas: o olhar de Tomás no salão desliza para a escadaria do colégio; a dança atual convoca o banco traseiro do carro adolescente; o terraço frio convoca o banheiro enfumaçado da festa de aniversário. Essas transições não são meros flashbacks, mas verdadeiros cortes anatômicos, mostrando como o tecido do presente é feito de cicatrizes do passado.
A recusa da catarse
É notável que Paz se recuse a oferecer desfecho confortável. O dilema final — táxi ou BMW, lençóis previsíveis ou motor em combustão — não é resolvido, mas multiplicado. O conto se encerra na indecisão, na bifurcação que permanece em aberto. Essa suspensão é o gesto mais corajoso do texto: em vez de conduzir o leitor à redenção ou à tragédia, a autora o mantém diante da incerteza, obrigando-o a sentir a vertigem da escolha.
O lugar de Natália Paz
Num cenário em que a prosa brasileira contemporânea frequentemente oscila entre a ornamentação excessiva e a secura minimalista, Natália Paz encontra um lugar singular: sua escrita é lírica sem ser ornamental, visceral sem descambar em melodrama. A corporeidade de sua prosa — taças, alianças, suor, tecidos, cheiros — ancora a reflexão abstrata em materialidade concreta.
Manobra de Autópsia mostra que a autora domina a difícil arte de conjugar intensidade e técnica. A cada cena, Paz revela que amar, lembrar e desejar são atos inseparáveis de dissecação: abrir o peito alheio em busca de um nome gravado e, ao fazê-lo, encontrar-se diante da própria ferida.
No fim, talvez a maior virtude do conto esteja no paradoxo que ele encarna: é uma autópsia que não resulta em cadáver, mas em sopro de vida. Porque toda memória dissecada continua pulsando, mesmo sob o risco de nos destruir.
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