Tem gente que ouve música pra correr. Tem gente que corre pra ouvir música. E tem eu: que mal consigo ouvir a própria respiração sem perder o ritmo da contagem das repetições do exercício.
Descobri essa minha condição peculiar — que a ciência ainda não nomeou, mas que merecia um verbete próprio entre “claustrofobia” e “desejo súbito de pastel” — quando tentei fazer uma série de supino enquanto tocava Highway to Hell no fone. O resultado foi coerente com o título: terminei mesmo na estrada para o inferno, com o instrutor me olhando como quem avalia um acidente de carro.
Eis que um dia, no Threads, alguém posta uma daquelas listas com título de autoajuda tipo “As 10 músicas que farão você levantar 10 kg a mais só na marra”. Eu, crédulo como todo brasileiro que acredita que chá de boldo cura falência múltipla de órgãos, pensei: “vai que funciona”.
Spoiler: não funcionou.
O som da musculação
Existe uma crença quase mística de que música melhora o desempenho físico.
Os pesquisadores dizem que o ritmo ativa o sistema límbico, aumenta a dopamina, melhora a coordenação motora e — o mais importante — distrai você da dor.
Mas ninguém avisou o sistema límbico que o beat do funk 150 BPM não combina com o meu ritmo cardíaco de quem subiu três andares de escada com preguiça existencial.
Enquanto a galera na academia parece sincronizada com os graves, eu pareço estar tentando coreografar uma parada militar em câmara lenta.
No leg press, o sujeito ao lado empurra o peso no ritmo do refrão. Eu tento acompanhar e erro a batida, travo a perna no meio do movimento e fico parecendo uma tartaruga tentando levantar um Fusca.
A música, ao invés de me motivar, me distrai. E quando me distraio, erro a contagem. E quando erro a contagem, o instrutor me olha com aquele olhar de padre que já sabe que você vai pro inferno, mas ainda assim insiste no sermão.
— “Vamos lá, parceiro, mais dez!”
— “Já fiz quinze!”
— “Então mais cinco pra compensar a distração.”
O problema é que, quando boto o fone, cada músculo parece começar uma jam session própria. O tríceps entra em ritmo de samba, o quadríceps prefere valsa, e o abdômen, cansado, vai de bossa nova.
A síndrome do maestro interior
Há quem acredite que o corpo é uma orquestra. No meu caso, é um grupo de pagode descoordenado.
Cada movimento tem seu compasso, mas basta tocar uma música qualquer e tudo vira improviso. Se começa Eye of the Tiger, minha panturrilha tenta correr sozinha; se entra Bohemian Rhapsody, fico indeciso entre levantar o peso ou reger a banda imaginária que vive dentro da minha cabeça.
O problema é que eu sou, por natureza, um sujeito metódico. Conto repetições com a seriedade de um contador conferindo nota fiscal. E música, para mim, é arte. Ou seja: tentar unir os dois é como pedir a Nietzsche que narre a abertura do Big Brother.
Enquanto a música toca, minha mente se divide entre seguir o ritmo e refletir sobre a letra. Durante o supino reto, Phil Collins canta “I can feel it coming in the air tonight”, e eu penso: “isso é uma metáfora sobre o capitalismo tardio ou um alerta de tempestade?”. Resultado: deixo o peso cair no peito e quase provo empiricamente a teoria da gravidade.
Os tipos de ouvintes de academia
Depois de alguns meses de observação empírica — também conhecida como “ficar sentado fingindo que descanso entre séries” —, percebi que há espécies distintas de humanos que ouvem música durante o treino.
1. O Motivado Épico:
Ouve trilhas sonoras de Rocky Balboa e Gladiador. Treina como se cada repetição fosse vingar a morte da família em Esparta. Normalmente berra “boraaa!” no meio da academia. Costuma ser confundido com o professor, o que lhe causa prazer místico.
2. O DJ Espontâneo:
Usa fones gigantes, balança a cabeça, e acredita estar no Tomorrowland. Grita “uhul” entre as séries, gesticula como se manipulasse botões invisíveis. Costuma derrubar o halter no pé do próximo.
3. O Romântico Maldito
Treina ouvindo Adele, Marisa Monte ou Legião Urbana. Tem cara de quem levou um pé na bunda e decidiu malhar a dor. Chora discretamente entre uma série e outra. No final, substitui o whey por sorvete.
4. O Filosófico:
Bota podcast de Nietzsche, mas pausa na metade porque o agachamento exige mais concentração que o Zaratustra. Entre uma repetição e outra, anota reflexões no bloco de notas: “O esforço físico é o mais honesto dos niilismos”.
5. O Silencioso (meu grupo):
Treina sem fone, sem trilha, sem nada.
Sente o som da respiração, o eco dos pesos batendo, o grito primal do instrutor.
Somos os monges trapistas da academia: calados, introspectivos e ligeiramente assustadores.
A ditadura do fone de ouvido
Hoje em dia, treinar sem fone é quase subversivo. Você entra na academia e sente olhares de piedade, como se estivesse nu.
A indústria do fitness transformou o fone em símbolo de produtividade. É o amuleto tecnológico que separa o atleta do mero mortal.
Quem está de fone parece focado, determinado, conectado a uma freqüência cósmica onde o pump é eterno e o suor é sagrado.
Já quem não usa fone parece um infiltrado da década de 1980, um senhor nostálgico que ainda acredita em rádio AM.
Outro dia, uma garota me perguntou, incrédula:
— Você treina... sem música?
Respondi:
— Treino com o som da realidade.
Ela me olhou com pena, como quem observa um homem que ainda acredita em fita cassete.
O problema da batida
Meu cérebro tem um bug de fábrica: ele tenta sincronizar tudo. Se o beat é rápido, acelero o movimento; se é lento, desacelero. Na rosca direta, isso é um desastre.
Com funk, faço dez repetições em oito segundos. Com samba-canção, fico trancado na segunda.
Descobri que o único ritmo compatível com o meu metabolismo seria o tic-tac do relógio da parede. E mesmo assim, só se for um relógio preguiçoso.
O silêncio como trilha sonora
Foi então que descobri o prazer do treino silencioso.
Sem música, comecei a perceber a coreografia oculta do ambiente: o estalar dos cabos, o chiado do ar-condicionado, o barulho das anilhas se tocando — uma sinfonia industrial minimalista.
Há algo profundamente zen em ouvir o próprio corpo reclamando. O som do ar entrando e saindo, o ranger discreto das articulações, o coração batendo no ritmo do esforço.
Enquanto o sujeito ao lado faz agachamento ao som de Anitta, eu descubro o mantra interno do “levanta, respira, segura, solta”.
E percebo que a música, às vezes, não é trilha: é ruído.
O instrutor filósofo
Um dia, confessei ao instrutor minha dificuldade com música. Ele olhou pra mim, encostou o halter no chão e, com a solenidade de quem vai citar Aristóteles, disse:
— Cada um treina com o som que merece.
Achei profundo. Talvez fosse, talvez não. Mas, no fundo ele só quis dizer “pára de me encher o saco e faz o exercício direito”.
De todo modo, fiquei pensando: se o treino é pessoal, por que uniformizar o ritmo? Se cada corpo tem sua batida, cada alma tem seu silêncio.
Experimento científico (fracassado)
Resolvi testar minha hipótese. Abri um arquivo no bloco de anotações e passei uma semana anotando o desempenho com e sem música.
Segunda: rock clássico.
Resultado: quase desloquei o ombro tentando sincronizar com a guitarra do AC/DC.
Terça: MPB.
Resultado: esqueci de respirar durante Sampa, hiperventilei e comecei a filosofar sobre Caetano em plena ergométrica.
Quarta: Funk.
Resultado: tentei rebolar no leg press. Dores musculares e vergonha coletiva.
Quinta: Jazz instrumental.
Resultado: fiquei introspectivo demais. Parecia estar num film noir. Esqueci de contar as repetições.
Sexta: Silêncio.
Resultado: paz interior, foco, e a epifania de que eu não precisava de fones — só de juízo.
Conclusão científica: meu corpo rejeita trilhas sonoras externas.
A economia do silêncio
Além da paz mental, há vantagens econômicas.
Enquanto os outros gastam fortunas em fones bluetooth, assinaturas de streaming e playlists de “power hit”, eu economizo o suficiente pra pagar uma cerveja depois do treino.
O sujeito que investe 2.000 reais em fone sem fio e 300 em mensalidade de academia acha que está comprando disciplina, mas está só financiando o silêncio que eu tenho de graça.
O dia em que tentei voltar à música
Mas o vício moderno é forte. Certo dia, cedi à pressão social e voltei a colocar o fone.
Primeiro acorde de Metallica e senti a testosterona subir à cabeça. No segundo refrão, já estava levantando mais peso que o habitual. No terceiro, percebi que o peso estava apoiado no meu pescoço.
Fui salvo por um rapaz de 19 anos, tatuagem de dragão, que levantou o halter com uma mão só, me olhou e disse:
— Tá pegando leve, tiozão.
Desde então, abandonei de vez a carreira musical durante os treinos.
Reflexões de vestiário
No vestiário, enquanto os outros trocam stories de “bora ser forte”, eu fico pensando: a academia é o último templo do individualismo sonoro. Cada um trancado no próprio universo auditivo, isolado, anestesiado.
Há algo de melancólico nisso.
O som coletivo da humanidade foi substituído por playlists privadas. Ninguém ouve mais o outro — só o beat próprio.
O silêncio, que antes era vazio, virou resistência.
Filosofia de halter
No fundo, minha incapacidade de treinar com música é sintoma de uma filosofia pessoal: a de que certas atividades exigem presença absoluta.
Malhar, pra mim, é o último bastião do “aqui e agora”. Se eu estiver com a mente em outro lugar, o músculo percebe e me pune.
Enquanto a música tenta me transportar, o peso me puxa de volta pra Terra —
e, às vezes, literalmente.
Treinar em silêncio é ouvir a verdade brutal do corpo: ele não mente, não edita, não tem auto-tune.
A inveja dos outros
Não nego: às vezes invejo quem consegue. Vejo o sujeito suando, feliz, embalado no trap, e penso: “como deve ser bom ter coordenação suficiente pra não morrer no meio do refrão”.
Mas logo lembro que cada um tem sua sina. Uns nascem pra dançar; outros, pra respirar ofegantes e fazer piada depois.
Crônica sonora da academia
A academia é um zoológico de sons. O ferro batendo, o gemido heroico, o grito “boraaaa!”, o click dos fones se conectando. É uma trilha de Casseta & Planeta: cômica, absurda e involuntariamente musical.
Outro dia, o som ambiente misturava Axé com Heavy Metal e sertanejo universitário. Parecia que o Spotify surtou. Mas ninguém notava — cada um já estava no seu próprio multiverso sonoro.
Eu, ali, sem fone, era o único que ouvia o conjunto. O resultado era cômico: uma sinfonia dodecafônica com gemidos, chiados e “uhul, campeão!”
Se Villa-Lobos ressuscitasse, escreveria Bachianas Musculatórias n.º 5.
O silêncio como luxo moderno
No mundo das notificações, silêncio virou artigo de luxo. Treinar sem música é, paradoxalmente, uma forma de ouvir melhor.
Ouço o que ninguém mais ouve: o som do peso encostando no chão, o zíper do casaco, o suspiro depois da última repetição. E, acima de tudo, o pensamento que finalmente se aquieta.
Enquanto a batida externa tenta me impor ritmo, o silêncio me devolve o meu.
A epifania na esteira
Certa manhã, na esteira, sem fone, percebi algo curioso. O som dos passos criou uma cadência própria.
Ta-ta, ta-ta, ta-ta.
Era música.
Minha música.
Descobri que, no fundo, todo treino já tem trilha: o corpo é o instrumento, o ritmo é biológico.
Desde então, não precisei mais de playlists. Tenho uma orquestra interna afinada pelo esforço e regida pelo suor.
Considerações sobre o absurdo (Millôr aprovaria)
A vida moderna é um exercício de distração. A música virou o modo aceitável de fugir de si mesmo.
O sujeito que malha com fone não quer ouvir o peso cair, quer esquecer que o peso existe. Eu, que treino sem fone, prefiro encarar o barulho da realidade — ainda que desafinada.
Se Camus tivesse ido à academia, teria escrito O Mito de Sísifo Fitness: um homem empurrando o leg press infinitamente, enquanto o som do funk ecoa e ele pensa: “pra quê tudo isso?”.
Epílogo filosófico-muscular
Depois de tanta reflexão e suor, cheguei à seguinte conclusão: não é que eu não goste de música — eu só gosto dela demais pra usá-la como pano de fundo de uma flexão.
Música, pra mim, exige atenção plena. E academia exige atenção plena. Tentar fazer as duas é como querer filosofar durante uma colonoscopia.
Conclusão (com moral)
Moral da história: cada um tem o beat que merece.
Se o seu é eletrônico, dance.
Se é de rock, berra.
Se é de funk, rebola.
Mas se o seu é o silêncio — então, amigo, bem-vindo ao clube dos que levantam peso em paz e saem da academia ouvindo o barulho mais bonito do mundo: o da própria sanidade intacta.
P.S.: Já tentei ouvir música clássica também. Mas quando começou A 5ª Sinfonia, percebi que Beethoven só compôs aquilo porque nunca teve que disputar o supino numa academia lotada de segunda-feira.
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