No Shopping Metrô Santa Cruz existe um templo da modernidade chamado KFC. Não é Louvre, não é MASP, não é biblioteca pública. É um altar de frango empanado em cubas térmicas, iluminado por LEDs frios e patrocinado por colesterol, mas ainda assim — e talvez justamente por isso — é um retrato do Brasil urbano em estado bruto. Porque nada revela tanto sobre um povo quanto aquilo que ele faz na fila com fome e pressa.
A cena foi assim: uma criatura de uns quarenta anos, diante de um dos totens de autoatendimento, declara solenemente, em voz alta pra quem quisesse ouvir, como quem anuncia que prefere vinil ao Spotify porque “tem mais alma”:
— Eu não sei mexer nessas máquinas.
Nessas máquinas.
Disse "essas máquinas" como quem diz “reator nuclear”, “instrumento de tortura medieval”, “cabine de teletransporte experimental do governo americano”.
Era um totem de pedido de fast-food.
E eu fiquei olhando. Porque eu gosto de observar gente em ambiente de shopping como quem observa fauna em documentário da BBC. Cada indivíduo tem um comportamento ritual, territorial, uma coreografia própria, e se você não interfere, você aprende. Havia, no caso, três elementos interessantes: (1) a criatura não parecia cognitivamente incapaz de tomar decisões básicas; (2) a interface do totem era literalmente igual à de qualquer app de delivery: foto do balde, botão “+”, botão “finalizar compra”; e (3) dois minutos depois de declarar a própria impotência tecnológica, ela estava no celular — e aqui faço citação fiel — punhetando a tela com uma agressividade táctil digna de felino entediado. Toca. Arrasta. Zoom. Rola. Troca de app. Mensagem de voz. Tudo.
Então, a pergunta que resta é: como é possível que alguém que domina o smartphone — aquele cassino vertical de dopamina com WhatsApp, Pix, Shopee, Reels de gente dançando e feed infinito de humilhação pública — não seja capaz de tocar “Combo Box de Frango Picante” → “Adicionar Batata” → “Confirmar Pedido”?
A resposta óbvia seria “preguiça”. Mas preguiça é só a casca. Preguiça é diagnóstico de boteco. A verdadeira camada interessante é orgulho.
Vamos por partes.
Primeiro ponto: ninguém, absolutamente ninguém na São Paulo de 2025, é ignorante quanto a operar tela sensível ao toque. A pessoa pode não saber instalar Linux Arch no terminal, mas ela sabe tocar um botão com o dedo. Isso é fato antropológico. A espécie já se adaptou. Se você entrega um iPad para uma criança de dois anos, ela desliza o dedo como se tivesse feito cursinho. Se você entrega para uma senhora de 82 anos, ela clica no ícone errado três vezes, reclama, mas aprende — porque existe motivação. Motivação é “eu quero ver as fotos do neto”. A diferença entre “não sei” e “aprendo” é só desejo.
O autoatendimento do fast-food não é mistério técnico. É desafio simbólico. É humilhação potencial.
Porque o totem tem uma crueldade moderna: ele te faz admitir que você está sozinho. Não existe mediação humana. É você e seu pedido. É você e a sua fome. É você e a sua gramática calórica. O totem testemunha.
Quando você vai ao caixa com uma moça de boné e polo vermelha, a dinâmica é muito mais misericordiosa. Você olha pra pessoa e diz: “um balde daquele promocional mais dois molhos barbecue e sem pimenta porque minha gastrite tá atacada, viu”. É quase confissão. Você joga metade da vergonha pra ela. Ela escreve. Ela absorve. Ela passa a ser cúmplice. Você não está sozinho com suas escolhas.
Agora, tenta fazer isso no totem. O totem não te olha com empatia. O totem não ri da tua piada. O totem não diz “relaxa, é normal pedir balde de 18 tiras às 10h40 da manhã, ontem teve um cara que levou três”. O totem faz pior: o totem lista, em letras grandes e bem iluminadas, COMBO MEGA ULTRA CRUNCH 3.157 CALORIAS. E pergunta: ADICIONAR EXTRA DE MAIONESE? (+R$ 3,00). A cada toque seu, o totem registra que você é o tipo de pessoa que diz “sim” para mais gordura por mais três reais. É intimidade demais sem testemunha humana.
Então “eu não sei mexer nessas máquinas” em muitos casos quer dizer “eu não quero ser visto pela máquina”. Ou, num dialeto sociológico ligeiramente mais honesto: “não vou passar vergonha na frente de uma tela que pode expor que eu não entendi o passo três, porque se eu travar, eu viro entretenimento público sob iluminação de shopping”.
Porque existe esse terror difuso: o medo de colocar a mão e não saber sair. O medo de errar no meio. O medo de virar vídeo. A criatura de quarenta anos cresceu no Brasil pré-smartphone adolescente, mas virou adulta no Brasil pós-smartphone, que é um país onde qualquer tropeço vira conteúdo de 15 segundos com trilha engraçada. O sujeito já entendeu que a cidade inteira está sempre pronta pra rir de você. A fila do KFC é um espaço hostil. Você está cercado de gente que não dorme oito horas por noite há anos e que está a um stories de distância de te transformar em trending topic de terça-feira. Não é pouca coisa.
Mas tem outro detalhe, ainda mais sutil: o caixa humano é prestação de serviço; o totem é obediência.
No caixa, você é cliente soberano. Você fala, a pessoa digita. Você manda. Você é “patrão”. (Essa ilusão de hierarquia é um dos últimos caramelos emocionais acessíveis ao brasileiro médio em 2025.) Já no totem, você não manda nada. Você segue etapas. Se você não seguir as etapas, a máquina simplesmente não libera frango. Ela tem uma ordem lógica e você precisa se adaptar a ela. Tem gente que aceita isso sem drama — porque já se acostumou a obedecer algoritmo desde que acorda (“passe agora pela Radial Leste, trânsito leve” / “pague amanhã o mínimo do seu cartão ou você morre socialmente” / “este vídeo é perfeito pra você, veja até o fim”). Mas tem gente que ainda precisa manter um fiapo de soberania performática. Gente que precisa dizer “eu não me dobro à tirania do totem de frango”, como se isso fosse ato de resistência civil.
Essa recusa performática é importante. Repara que a frase não foi “oi, você pode me ajudar?”. Não foi “com licença, é a primeira vez que uso, como funciona?”. Não, foi um pronunciamento público: “eu não sei mexer nessas máquinas”. Em voz alta. Do tipo que chama os outros pra testemunhar. Isso faz duas coisas ao mesmo tempo: (1) cria álibi moral (“se eu não uso, não é porque sou preguiçoso, é porque a tecnologia é absurda”), e (2) convoca serviço humano obrigatório (“alguém venha aqui me resgatar, porque eu sou da era analógica e mereço deferência”).
Ou seja, o “eu não sei” é na verdade “eu não quero ter que saber”. É um ato de recusar adaptação como forma de manter status. É a última trincheira de muita gente de classe média baixa/baixa média/superior baixa/baixa superior (essas castas flutuantes do varejo paulistano) que já perdeu quase todos os outros símbolos de poder cotidiano.
Antigamente, status era “eu tenho carro”. Hoje carro é boleto. Antigamente, status era “eu pago o jantar em dinheiro vivo e ninguém parcela nada”. Hoje até farmácia parcela desodorante em 3x. Antigamente, status era “eu tenho secretária”. Hoje você grita “Alexa, timer 5 minutos pro miojo”. Então sobra o quê? Restou mandar em atendente de fast-food. O totem ameaça isso. O totem diz: “você não manda mais nem no molho”.
Claro, há também o componente teatral da incompetência. O brasileiro dominou isso com maestria: fingir desamparo estratégico para terceirizar esforço. Criança faz isso com lição de casa: “não sei matemática” (sabe, só não quer fazer sozinha). Marido clássico faz isso com máquina de lavar: “amor, esse botão aqui é qual mesmo?” (é o botão que ele aperta todo sábado desde 2019). E agora adulto faz isso com tecnologia de varejo: “não sei usar aplicativo de banco, moça, faz o Pix pra mim e eu te dou o dinheiro em espécie”. É sempre o mesmo roteiro. Tem menos a ver com ignorância e mais com transferência de carga cognitiva.
Essa “criatura” em particular, depois de fazer o escândalo ritual “eu não sei mexer nessas máquinas”, dirigiu-se ao caixa físico. Fez o pedido com todas as especificidades (queijo extra, troco em dinheiro, copo grande). Pagou. Recebeu o número. E então, em paz consigo mesma por ter preservado seu microterritório de poder humano-cara-a-cara, encostou num pilar e começou a, tecnicamente falando, masturbar o próprio celular (“punhetar o celular” é uma expressão tecnicamente muito precisa, ainda que não conste no dicionário Houaiss). Polegar direito em frenesi. Indicador auxiliar. Scroll frenético, múltiplos aplicativos, navegação em abas, digitação com as duas mãos, envio de áudio, correção de áudio, riso digitado, sticker animado, reactions em cascata.
Era uma pessoa que poderia tranqüilamente: – escolher combo, – revisar pedido, – confirmar pagamento sem contato, – usar cupom promocional de terça.
Mas preferiu encenar a fraqueza.
Por quê?
Porque a recusa não é tecnológica. É social.
Existe uma camada de classe escondida aí. Totem de autoatendimento tem aura de “faça você mesmo”. Faça você mesmo é lindo quando é influencer nórdica montando prateleira de bambu sustentável no Pinterest. Quando é “faça você mesmo ou ninguém vai te atender porque cortamos metade do quadro de funcionários pra ganhar margem”, aí já vira precarização. Muita gente sente — com uma intuição muito correta, aliás — que a existência do totem não é pra te dar autonomia, e sim pra cortar salário de atendente. E reage a isso instintivamente: “não vou colaborar com a máquina que rouba emprego do cara”. Às vezes essa reação é sincera, às vezes é desculpa elegante. Mas ela existe.
Então, algumas pessoas não usam o totem como forma de declarar lealdade ao caixa humano (“eu valorizo o trabalhador”), o que também é uma forma de construir autoimagem moral: “eu sou bom cidadão, não terceirizo tudo pro robô”. Só que, vamos ser sinceros, geralmente essa mesma pessoa não está fazendo sindicato com o atendente, não está na rua pela CLT, não está brigando por hora extra. Ela só está reforçando o próprio conforto narrativo. Mas é um conforto legítimo: ninguém gosta de se sentir cúmplice da própria substituição futura.
E aí chegamos no ponto final, que é quase cruel: o sujeito sabe usar tecnologia quando ela lhe dá prazer; nega usar quando ela lhe cobra ação.
No celular, ele é rei. Ele decide qual vídeo ver, quem bloquear, quem xingar, qual meme mandar. É um parque de diversões coordenado pelo algoritmo, sim, mas com a ilusão plena de escolha a cada segundo. É entretenimento e autopropaganda. Já o totem do KFC não é entretenimento; é responsabilidade. Não tem feed, não tem curtida, não tem narrativa. Tem só uma pergunta objetiva: “o que você quer comer e como você quer pagar?”. E aí a coisa fica séria, porque decisão explícita cansa.
Decidir cansa muito mais do que rolar timeline. Rolando timeline você reage. Pedindo comida você assume. “Eu escolhi isso, paguei isso, vou ingerir isso.” É quase calvinista. É quase protestante. É prestação de contas dietética e financeira, ali, em público, sob luz branca. Às 14h37 de uma terça-feira, Shopping Metrô Santa Cruz, praça de alimentação. Quem é que quer esse tipo de accountability moral em plena tarde? Ninguém. É óbvio que é mais gostoso performar impotência e terceirizar.
E perceba um detalhe psicológico suculento: depois que a criatura faz o pedido no caixa humano, ela volta pro celular. Isso é lindo. Isso é poesia urbana. É como se ela dissesse: “Pronto, mundo adulto resolvido. Agora eu retorno ao útero digital, onde tudo é dedo e brilho e não tem consequência calórica rastreável.”
Esse gesto — fugir da decisão e correr pro conforto dopaminérgico — é um retrato muito honesto de todos nós, não só dela. Você acha que é diferente porque você sabe usar o totem? Não é. Você também faz teatro. Só muda o palco.
Você faz teatro quando diz “não sei cozinhar” e pede delivery pela quinta vez no mês, mas sabe montar do zero uma planilha de imposto de renda com três abas e macro. Você faz teatro quando diz “detesto política, não entendo nada” e passa quatro horas xingando deputado nos comentários. Você faz teatro quando diz “sou tímido” mas posta vinte stories de close no espelho da academia e um reels de 1m40 explicando o segredo da sua panqueca proteica.
A diferença está só no tipo de tecnologia que você decidiu declarar impossível pra continuar sendo a pessoa que você conta pra si mesmo que você é.
“Eu não sei mexer nessas máquinas” é só o dialeto culinário de “não é meu papel fazer isso”. E “não é meu papel fazer isso” é o último escudo emocional que separa o adulto cansado da plena consciência de que, sim, na verdade, tudo já é seu papel.
Você tem que fazer pedido sozinho. Você tem que montar currículo sozinho. Você tem que marcar consulta sozinho num app que trava. Você tem que pagar conta sozinho digitando trocentos dígitos de código de barras porque a câmera não funcionou. Você tem que acompanhar o boletim do filho em plataforma gamificada que não funciona no Chrome. Você tem que atualizar o cadastro no plano de saúde senão corta atendimento. Você tem que aceitar cookies, gerenciar senhas, confirmar e-mail, clicar no link que foi pro spam, refazer senha porque o link expirou, e provar que você não é um robô clicando em todas as fotos que contêm semáforos, inclusive aquele poste duvidoso no fundo que talvez seja poste de iluminação e não semáforo mas você marca mesmo assim porque já tá irritado.
Ser adulto urbano em 2025 é basicamente resolver captchas emocionais o dia inteiro.
E aí, quando chega a hora do almoço, o sujeito olha pro totem e pensa: “não, aqui não. Aqui, pelo menos aqui, alguém vai me servir, alguém vai me ouvir, alguém vai confirmar ‘é isso mesmo, senhor?’, alguém vai validar minha existência carnívora e me entregar um número impresso num papelzinho térmico que prova que eu ainda sou atendido por seres de carbono”.
E eu, vendo isso, em vez de rir (muito), fiquei com uma pontinha de pena. Porque no fundo é melancólico. É a coreografia da resistência mínima. É a barricada de frango empanado contra a automação total.
Mas também fiquei com uma pontinha de irritação, confesso, porque existe um custo coletivo nessa birra performática. A fila anda mais devagar. O atendente que poderia estar só resolvendo exceções (alergia, cupom que não vai, nota fiscal pra PJ) acaba virando também babá emocional de adulto saudável que decidiu não “saber mexer”. E isso retroalimenta a profecia: a fila do caixa fica enorme, o totem vazio, e todo mundo na fila olha pro totem vazio e pensa “se ninguém tá usando, deve ser complicado”. E pronto, acabou. A tecnologia que era pra aliviar vira decoração futurista com cheiro de álcool isopropílico.
Tem algo de genial e de trágico nisso. A gente, como sociedade, cria um sistema em que você tem que ser usuário avançado de tudo o tempo todo: banco, transporte, comunicação, saúde, alimentação. Empurra isso goela abaixo na marra, sem apoio, sem paciência, sem didática. Aí, quando alguém resiste, mesmo que por vaidade ou encenação, a gente chama de atrasado, de burro, de dinossauro. Mas talvez, só talvez, essa pessoa esteja fazendo, do jeito torto dela, a única greve possível que ainda cabe no intervalo de almoço: “eu não vou fazer o trabalho que vocês me empurraram, eu quero humano.”
Claro que ela quer humano até a hora que o humano atrapalha o TikTok dela. Porque, terminado o pedido, ela volta imediatamente para o retângulo luminoso que é, ali, na prática, o verdadeiro “terminal de autoatendimento”: um totem portátil, eternamente desbloqueado, infinitamente indulgente, cheio de frango metafórico na forma de likes, notificações e conversinhas que não exigem nenhuma prestação de contas nutricional.
Então talvez a frase correta não seja “eu não sei mexer nessas máquinas”.
Talvez seja: “eu só mexo nas máquinas que me tratam como centro do universo.”
E aí — admitamos — quem é que pode dizer que é diferente?
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